O mês de novembro – que na linguagem popular é o mês dos Santos, o mês do
Vinho Novo, o mês das Castanhas, o mês do São Martinho – começa efetivamente
com a Solenidade de Todos os Santos. Porém, logo depois de se ter cantado a
bem-aventurança daqueles e daquelas que veem a Deus face a face, a Liturgia
consagra o segundo dia de novembro à memória dos fiéis defuntos. Na sequência
destas duas celebrações, o mês é considerado o Mês das Almas e muitas paróquias são convidadas a celebrar o
jubileu das almas, que se concretiza na receção do sacramento da Reconciliação,
no canto de uma das horas canónicas do Ofício divino e na celebração
eucarística pelos defuntos com a comunhão por eles e com eles in spiritu.
Desde o século II, alguns cristãos rezavam pelos falecidos,
visitando os túmulos dos mártires para rezar aos e pelos que morreram. No
século V, já a Igreja dedicava um dia do ano para rezar por todos os mortos, sobretudo
por aqueles pelos quais ninguém rezava e dos quais ninguém se lembrava. Também
o abade Odilo de Cluny, em 998, pedia aos monges que orassem
pelos mortos. Desde o século XI os Papas Silvestre II (999-1003), João XVII (1003) e Leão IX (1049-1054) levaram a Comunidade a dedicar um dia aos
mortos. E, no século XIII, o
dia anual passa a ser comemorado em 2 de novembro, porque o dia 1 de novembro é a Festa
de Todos os Santos.
Assim, o dia
2 de novembro, o da Comemoração de Todos
os Fiéis Defuntos, é a sequência lógica da solenidade de Todos os Santos,
pois, se nos limitássemos a cultuar os nossos irmãos Santos, a comunhão dos
crentes em Cristo não seria completa. Quer os que vivem na glória, quer os que
vivem na purificação ansiando pela visão beatífica de Deus, são membros de Cristo
pelo batismo e ficam unidos a nós. A Igreja que peregrina neste mundo a caminho
do Pai, ao lembrar e celebrar a Igreja celeste, não podia esquecer a Igreja que
se purifica.
É certo que
todos os dias a Igreja, ao tornar sacramentalmente presente o Mistério Pascal na
Missa, lembra “aqueles que nos precederam na fé e dormem agora o sono da paz” (vd Oração Eucarística I e segmentos similares
nas demais orações eucarísticas). Por outro lado, a Liturgia prevê formulários próprios para as missas
especiais pelos defuntos e vários conjuntos de orações, leituras bíblicas e patrísticas,
salmos, responsórios, hinos e preces pelos defuntos, nomeadamente para as
exéquias, missa, ofício divino, procissões e celebrações da palavra.
Porém,
entende a Igreja que estes irmãos merecem um dia de comemoração especial, com a
possibilidade de o sacerdote celebrar três missas com formulários diferentes. E
este dia não é de luto ou de tristeza, mas de viva esperança e da mais íntima
comunhão com aqueles que “não perdemos”, porque, no dizer de São Cipriano, “simplesmente
mandamos à frente”. Com efeito, sabemos que eles e nós ressurgiremos em Cristo
para uma vida nova. Este dia é sobretudo dia de oração, que se reveste de
especial eficácia se a unirmos ao sacrifício de reconciliação, a Eucaristia e,
eventualmente, ao sacramento da Penitência. Na verdade, no Sacrifício da Missa,
o Sangue de Cristo lava as culpas e alcança a misericórdia divina para os irmãos
que adormeceram na sua paz, de modo que, consumada a sua purificação, serão
admitidos no Reino dos Céus.
***
Todo o ordenamento
litúrgico e devocional em torno dos fiéis defuntos se apoia na doutrina compendiada
no Catecismo da Igreja Católica (CIC) e
nos fundamentos bíblicos que a justificam: Tobias 12,12, sobre o enterramento
dos defuntos; Job 1,18-20, por contraste com a sorte dos ímpios; Job
19,1-23-27, sobre a certeza de que “o meu defensor está vivo” e “eu próprio o
verei”; 2.º livro dos Macabeus 12,41-47, onde se diz que Judas Macabeu fez uma
coleta e promoveu um sacrifício pelos defuntos, graças à sua crença na
ressurreição dos mortos; Mateus 12,32, sobre o perdão dos pecados; 2.ª carta
aos Coríntios 4,14 – 5,1, em que se porfia a fé na ressurreição dos mortos (“desfeita esta tenda onde moramos,
receberemos de Deus outro corpo para habitarmos nos Céus”); 1.ª acarta aos Tessalonicenses
4,13-14.17b-18, em que se promete que Deus levará com Jesus aqueles que tiverem
morrido em união com Ele. E, para reforço da fé na ressurreição e da esperança
na vida eterna, a Liturgia do dia 2 de novembro, ainda apresenta Mt 11,25-30,
em que Jesus revela que o Pai revelou os mistérios do Reino aos simples e aos
humildes, ocultando-os aos autossuficientes, e convida a que tomemos o seu jugo
para aliviar as nossas almas; Lc 7,11-17, a relatar a compaixão de Jesus pela
viúva de Naim cujo filho falecera e Ele o ressuscita; e Jo 6,37-40, com a
promessa de que Jesus não perderá nada daquilo que o Pai Lhe entregou.
***
Depois
deste enquadramento histórico-litúrgico, convém fazer o excursus doutrinal à luz do CIC, com suporte escriturístico.
Assim,
falando do poder de Deus, o n.º 298, ensina:
“Uma
vez que Deus pode criar ‘do nada’, também pode, pelo Espírito Santo, dar a vida
da alma aos pecadores, criando neles um coração puro e a vida do corpo aos defuntos, pela ressurreição. Ele que ‘dá a vida aos mortos e chama o que não
existe como se já existisse’ (Rm 4,17).
E como, pela sua palavra, pôde fazer que das trevas brilhasse a luz, pode
também dar a luz da fé aos que a ignoram”.
O
n.º 335, sobre a invocação da assistência dos anjos, cita a oração “In paradisum deducant te angeli – conduzam-te
os anjos ao paraíso”, da Liturgia dos Defuntos.
No
âmbito da comunhão dos santos e, em particular, na comunhão com os defuntos, o
n.º 958 esclarece:
“Reconhecendo
claramente esta comunicação de todo o Corpo místico de Cristo, a Igreja dos que
ainda peregrinam venerou, com muita piedade, desde os primeiros tempos do
cristianismo, a memória dos defuntos; e, ‘porque é um pensamento santo e salutar rezar pelos mortos, para que sejam
livres de seus pecados (2 Mac 12,46), por eles ofereceu também sufrágios’. A nossa oração
por eles pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão
em nosso favor.”
Sobre
a doutrina da “purificação final” ou “purgatório”, o n.º 1032, ensina:
“Esta
doutrina apoia-se também na prática da oração pelos defuntos, de que já fala a
Sagrada Escritura: ‘Por isso, [Judas Macabeu] pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres das
suas faltas’ (2 Mac 12,46).
Desde os primeiros tempos, a Igreja honrou a memória dos defuntos, oferecendo
sufrágios em seu favor, particularmente o Sacrifício eucarístico para que,
purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus. A Igreja recomenda também
a esmola, as indulgências e as obras de penitência a favor dos defuntos”.
Assim,
“Socorramo-los
e façamos comemoração deles. Se os filhos de Job foram purificados pelo
sacrifício do seu pai por que duvidar de que as nossas oferendas pelos defuntos
lhes levam alguma consolação? [...] Não
hesitemos em socorrer os que partiram e em oferecer por eles as nossas orações.”.
Comentando
os elementos das Orações Eucarísticas (formulários do Cânone da Missa), o CIC, na segunda parte do n.º 1354 refere:
“Nas intercessões, a Igreja manifesta que a Eucaristia é celebrada em
comunhão com toda a Igreja do céu e da terra, dos vivos e dos defuntos, e na comunhão com os pastores da Igreja: o Papa, o
bispo da diocese, o seu presbitério e os seus diáconos, e todos os bispos do
mundo inteiro com as suas Igrejas”.
Glosando o
tema “o memorial sacrificial de Cristo e do seu corpo, a Igreja”, o n.º 1371,
estabelece:
“O
sacrifício eucarístico é também oferecido pelos fiéis defuntos, ‘que morreram em Cristo e
não estão ainda de todo purificados’ (Concílio de Trento, DS 1743), para que
possam entrar na luz e na paz de Cristo:
‘Enterrai
este corpo não importa onde! Não vos dê isso qualquer cuidado! Tudo o que vos
peço é que vos lembreis de mim diante do altar do Senhor, onde quer que
estejais’ (Santa Mónica, antes de morrer, a Santo Agostinho e a seu irmão,
Conf. 9,11,27).
‘Depois [na
anáfora], nós rezamos pelos santos
padres e bispos falecidos, e em geral por todos aqueles que morreram antes de
nós, certos de que isso será de grande proveito para as almas em favor das
quais tal súplica se faz, enquanto está presente a vítima santa e temível
[...]. Apresentando a Deus as nossas súplicas pelos que morreram, tenham embora
sido pecadores, nós [...] apresentamos Cristo imolado pelos nossos pecados,
tornando assim propício, para eles e para nós, o Deus que é amigo dos homens”
(São Cirilo de Jerusalém, Catequese Mist. 5,9,10).
Sobre
a indulgência de Deus mediante a Igreja, aplicável aos defuntos, o n.º 1479,
esclarece:
“Uma
vez que os fiéis defuntos, em vias de
purificação, também são membros da mesma comunhão dos santos, nós podemos
ajudá-los, entre outros modos, obtendo para eles indulgências, de modo que
sejam libertos das penas temporais devidas pelos seus pecados”.
E,
no quadro do respeito pelos mortos, o
CIC apresenta o n.º 2299, que nos que se refere aos que se encontram às portas
da morte, recomenda:
“Aos
moribundos deve dispensar-se toda a atenção e cuidado, para os ajudar a viver
os últimos momentos com dignidade e paz. Devem ser ajudados pela oração dos que
lhes são mais próximos. Estes velarão por que os doentes recebam, em tempo
oportuno, os sacramentos que os preparam
para o encontro com o Deus vivo.”.
No atinente
aos corpos dos defuntos, o n.º 2300, preceitua:
“Os corpos dos defuntos devem ser tratados com
respeito e caridade, na fé e esperança da ressurreição. Enterrar os mortos
é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do
Espírito Santo.”.
Sobre a autópsia
de cadáveres e doação de órgãos post mortem,
o n.º 2301 entende:
“A autópsia
dos cadáveres pode ser moralmente admitida por motivos de investigação legal ou
pesquisa científica. O dom gratuito de órgãos depois da morte é legítimo e até
pode ser meritório.”.
E,
no respeitante à cremação, o mesmo n.º 2301 legitima-a nos termos que se
seguem:
“A Igreja permite a cremação a não ser que esta
ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos”.
Em
relação a este último ponto, é de reter o teor da instrução ‘Ad resurgendum
cum Christo’ da
Congregação para a Doutrina da Fé a propósito da sepultura dos defuntos e da
conservação das cinzas no caso de cremação. O documento, citando o
Código de Direito Canónico (Can
1176 § 3.) estabelece:
“A Igreja recomenda vivamente que
se conserve o piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas não
proíbe a cremação, a não ser que tenha sido preferida por razões contrárias à
doutrina cristã”.
Porém sobre a conservação das cinzas, a instrução determina:
“Quaisquer que sejam as motivações
legítimas que levaram à escolha da cremação do cadáver, as cinzas do defunto
devem ser conservadas, por norma, num lugar sagrado, isto é, no cemitério ou,
se for o caso, numa igreja ou num lugar especialmente dedicado a esse fim
determinado pela autoridade eclesiástica.”
Assim, segundo o documento,
“A conservação das cinzas em casa
não é consentida. Somente em casos de circunstâncias graves e excepcionais, o
Ordinário, de acordo com a Conferência Episcopal ou o Sínodo dos Bispos das
Igrejas Orientais, poderá autorizar a conservação das cinzas em casa. As
cinzas, no entanto, não podem ser divididas entre os vários núcleos familiares
e deve ser sempre assegurado o respeito e as adequadas condições de conservação
das mesmas.”
Além disso,
“Para evitar qualquer tipo de
equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não é permitida a dispersão das
cinzas no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar.
Exclui-se, ainda a conservação das cinzas cremadas sob a forma de recordação
comemorativa em peças de joalharia ou em outros objetos.”.
***
Tudo isto para acautelar, afervorar e manter a piedade
pelos defuntos a quem devemos respeito, memória e culto, com base na solidariedade
humana, na comunhão dos santos e na esperança da ressurreição.
Lá nos encontraremos!
2016.11.03 – Louro de Carvalho
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