domingo, 13 de novembro de 2016

“Tabacaria”, um poema de Álvaro de Campos

No próximo dia 23, a editora Guerra & Paz vai lançar no mercado uma edição monumental deste poema do heterónimo de Fernando Pessoa indicado em epígrafe, numa caixa de madeira, com 25 fotografias inéditas. Segundo o que explicou o editor:
“A caixa em que a obra de Fernando Pessoa fica agora depositada é de madeira de álamo ou choupo (populus alba), revestida de uma orla em madeira de ‘maple’ (aceraceae), duas faces da madeira, capa e contracapa, têm impressão direta UV e a lombada da caixa foi impressa a laser 50W, com acabamento final com proteção de verniz mate”.
Transcreve-se o poema em verso livre e branco (com estrofes irregulares e assimétricas a exprimir o estado conturbado e desesperado do poeta) e se tecem considerações com a respetiva análise.
***
Tabacaria
Não sou nada. 
Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E, se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.  
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,  
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça,  
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.  
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,  
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.  
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.  
A aprendizagem que me deram,  
Desci dela pela janela das traseiras da casa,  
Fui até ao campo com grandes propósitos.  
Mas lá encontrei só ervas e árvores,  
E quando havia gente era igual à outra.  
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,  
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,  
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.  
Crer em mim? Não, nem em nada.  
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,  
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.  
Escravos cardíacos das estrelas,  
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;  
Mas acordámos e ele é opaco,  
Levantámo-nos e ele é alheio,  
Saímos de casa e ele é a terra inteira,  
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;  
Come chocolates!  
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.  
Come, pequena suja, come!  
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!  
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,  
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos,  
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,  
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,  
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,  
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,  
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,  
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,  
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,  
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,  
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!  
Meu coração é um balde despejado.  
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada.  
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.  
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,  
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,  
Vejo os cães que também existem,  
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,  
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,  
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);  
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube, 
E o que podia fazer de mim não o fiz.  
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.  
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho,  
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.  
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,  
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. 
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, 
Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,  
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,  
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),  
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.  
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,  
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.  
Sigo o fumo como uma rota própria,  
E gozo, num momento sensitivo e competente,  
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando.  
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).  
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.  
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)  
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.  
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

***
Considerações e Análise
Álvaro de Campos, apesar de considerar Alberto Caeiro como o seu mestre, é radicalmente diferente dele, bem como de Ricardo Reis. A angústia e lucidez não permitem ser inocente, natural. Retornar à natureza torna-se utopia inútil. Assim, o poeta volta a opor a fantástica capacidade de sonhar à limitação do mundo exterior. Mas a sensação de euforia com o sonho não dura muito: o poeta toma efetivamente consciência de que o sonho nada vale, pois as aspirações altas e nobres e lúcidas talvez nem vejam a luz do sol, nem atinjam ouvidos de gente. Com efeito, “O mundo é para quem nasce para o conquistar / E não para quem sonha que pode conquistá-lo”, ainda que lhe assista a razão. Por isso, apesar de ter conquistado mais do que Napoleão, de ter amado mais do que Jesus Cristo e de ter filosofado mais que Kant, isso de nada vale, visto que tudo se processou na imaginação (Note-se a antítese nada/tudo). Para expressar essa impotência perante a realidade, Campos serve-se da imagem do homem que espera que lhe abram a porta numa parede sem porta ou a do homem que tenta fazer chegar a sua voz até Deus, cantando de dentro dum poço tapado. É o desespero niilista vertido em inconformismo supino! 
Nestes termos, o poeta sente-se como “escravo cardíaco de estrelas” ou como pessoa que sonha com as estrelas e sofre de doença cardíaca a impedi-lo de passar por emoções fortes ou, ainda, como quem só conquista tudo em sonhos. Como resultado, vem o distanciamento cada vez maior da realidade, do mundo visível. E essa consciência causa-lhe um cansaço e um sofrimento tais que passa a ter inveja da menina que inocentemente come chocolates. Nesse momento, Campos toca um aspeto que é uma constante na obra pessoana: pensar dói, faz doer, por impedir o homem de ser feliz. E, ao sentir dentro se si o vazio, o poeta procura algo que o inspire. Recorre então a musas do passado, mas a sensação de vazio persiste, já que o seu “coração é um balde despejado”.  Na realidade, Campos expressa a angústia do homem moderno, que jamais encontra ponto de apoio para lhe alavancar as inquietações e, por isso, entrega-se ao desespero. Essa consciência da inutilidade leva-o a sentir-se um exilado, um ser marginal à humanidade. Imagina o mundo como se fosse o teatro onde todos representam e o “eu” é o único que não sabe nem pode representar. Assim, o seu lugar é no vestiário e nunca no palco.
Os versos finais do poema colocam frente a frente o “eu” poético e o dono da tabacaria, um homem comum, sem inquietações metafísicas. Ao vê-lo, o poeta vive uma estranha sensação de desconforto e passa a ter a noção da absoluta inutilidade de tudo, incluindo a própria poesia. O poema fecha com a absoluta solidão do poeta, que tem consciência de que nada vale a pena, enquanto o dono da tabacaria, sem consciência do que o rodeia, apenas sorri. 
***
Datado de 15 de janeiro de 1928, o poema situa-se na “fase pessoal” (Jacinto Prado Coelho) ou “fase pessimista” ou “fase intimista” – a 3.ª fase poética de Campos, que vai de 1916 a 1935 (ano da morte de Fernando Pessoa). Desiludido das vicissitudes das fases “sensacionista” e “futurista” (anteriores), o poeta prostra-se num pessimismo intenso, marcado pelo regresso das memórias de infância e pela consciência de que ficou (e está) sozinho no mundo.
Com uma linguagem bem mais moderada que dantes, mas repleta de anáforas, interrogações e exclamações, Campos considera-se agora o poeta desiludido da vida, e “Tabacaria”, como aliás muitos dos seus outros poemas desta fase, apresenta um ritmo deliberadamente lento e retrospetivo, em clara contraposição com as Odes da fase futurista, por exemplo.
Será talvez este o poema mais apreciado de Álvaro de Campos. Ao nível do tema, deparamo-nos com a vertente da solidão interior do “eu” lírico ante à imensidão do Universo exterior. A tabacaria passa por símbolo sem valor próprio, mas que induz em Álvaro de Campos a necessidade de analisar a própria vida face à existência da Tabacaria como coisa fixa e real.
Enclausurado – imaginária ou realmente – no seu quarto da Rua Coelho da Rocha, o poeta lança no papel a ligação do imanente e do transcendente, do real e do ideal, do “eu” uno e do diverso.
A simbologia do quarto (espaço fechado e exíguo) e da janela (a abrir para um espaço aberto) versus rua e Tabacaria, marca o contraste entre o “dentro” e o “fora”, uma oposição dialética que parte em demanda da síntese de compreensão. Solitário, o eu-poético contempla uma rua, onde percebe um mistério, que é a morte e o destino que ninguém vê. Essa perceção extraordinária das coisas dá-se por via da sua capacidade imaginativa, que o faz ver o que os outros não podem ver.
Oscilando entre o seu mundo interior e a realidade externa, cósmica e universal, o poeta trata, simultaneamente, da angústia com o quotidiano e dos sonhos de libertação – o que pode ser observado logo a partir dos primeiros versos, cujo sentido se constitui como a base de todo o poema. O poeta revela-se absolutamente niilista em relação a si próprio (“não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada”), mas, em compensação, ele sabe que tem “todos os sonhos do mundo”. E, vivendo os seus sonhos, tenta esquecer toda a aprendizagem (tudo o que aprendeu com os homens) e parte em busca da natureza; contudo, essa solução não o satisfaz, na medida em que se sente desconfortável em qualquer lugar em que esteja (“estrangeiro aqui, como em toda parte”, dirá o poeta em outro poema). As metáforas da tabacaria, rua, janela e quarto servem bem esta situação.
Mesmo sem personagens presentes, está subjacente ao longo do poema um dinamismo de narrativa e diálogo (visível nos versos parentéticos e nos acenos e gritos) a quebrar o monólogo em que o emissor lírico fala consigo mesmo e para si mesmo: intercala-se complementarmente o discurso racional e visualizante com momentos de delírio momentâneo, irracionais, emocionais.
***
O poema pode dividir-se em quatro partes:
A primeira funciona como introdução e corresponde à estrofe inicial, onde é assumido um vazio ontológico e fenomenológico – “não sou nada”, e a antítese entre o nada exterior e o tudo interior (“tenho em mim...”). De facto, o vazio ontológico é ilusório e o “nada” é o assumir de não ser nada exteriormente – a nulidade, ansiada e desfeita que foi a possibilidade de ser tudo.
Na 2.ª parte (estrofes 2-6), o poeta define a sua condição atual e mostra-nos a sua localização: está no seu quarto. E a metáfora do quarto é a metáfora da sua condição humana. Ele é a mente presa no quarto que olha a realidade do dia a dia por uma janela. Esta simbologia simples e delicada, marcante nestas estrofes, leva-nos à definição do “eu” poético enquanto ser só e abandonado à sua sorte. Ao expressar em metáforas reais os sentimentos, Campos materializa poeticamente uma análise impossível através do raciocínio simples. Porém, o que fica é sobretudo o sentido da antítese entre a realidade (a rua, a Tabacaria) e irrealidade (a vida do poeta, o quarto), ligadas apenas por uma janela, permitindo uma interação limitada, mas não uma passagem concreta de uma para a outra. O “eu” lírico é um “falhado”, mesmo sentindo-se um génio. Enfim, é, em última análise, Fernando Pessoa a falar pela voz e a escrever com a pena de Campos. Está vencido e sabe que nunca conseguirá ser feliz. Fica perdido nos pormenores!
A 3.ª parte (estrofes 7-13) mostra o poeta a justificar para si mesmo o rumo que tomou na vida e, deixando ainda tomar-se pelo desespero, a olhar as alternativas que lhe restavam para ser feliz. Aqui, o contraste já não é entre o real e o ideal, entre o fora e o dentro, mas entre ele e os outros, entre a sua condição e a condição dos outros. Chocam-no sobretudo os que vivem a vida numa inconsciência plena (o que se verifica em muitas das passagens de Pessoa, o ideal inatingível de felicidade) porque os vê precisamente como as suas próprias némesis – adversários de quem pensa e se preocupa. Começa com a rapariga que come chocolates, suja, perdida na gula. É uma passagem marcante e simples de entender: “Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! / Mas eu penso”. Sabe, porém, que tal está fora do seu alcance (não vai deixar de pensar). Resta-lhe um recurso nobre: os poemas – recurso nobre que ele espera que o salve, sem saber como, duma intensa mediocridade que lhe vem de nada lhe fazer sentido na vida.  
A 4.ª parte (estrofe 8 e seguintes) configura o regresso da realidade. Campos deixa de “filosofar” quando um elemento real se intromete entre ele e a Tabacaria. Tudo se desmorona, porque tudo estava apenas no seu pensamento e nunca poderia ser real do mesmo modo que o Esteves é real. (Haverá afinal um nome mais real do que Esteves?). Passando subitamente a interveniente na realidade que analisava, o poeta, mal vê um conhecido e que depois lhe acena, deixa de poder estar fora da realidade para ser puxado violentamente para o meio dela. É assim que o Universo se reconstrói subitamente, sem metafísica, sem dar mais azo ao pensamento e à análise; é só a verdade dos sentidos e não a idealização do pensamento: 
“Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.” 
***
Finalmente, dois temas que permeiam o poema: a cidade e o existencialismo.
O tema da cidade permeia-o todo, o que se deve a ter sido construído por um poeta cuja profissão é de engenheiro, embora engenheiro naval. Mas não é apenas como engenheiro que Álvaro de Campos descreve o mundo que o circunda, mas como “poeta moderno, século XX, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge à sua condição de homem sujeito à maquina...” (MOISÉS, 2004:244). Como poeta que é, em “Tabacaria”, deixa de parte o olhar matemático de engenheiro e lança em muitos versos a literariedade em que exprime a condição do homem da época inserido no progresso emergente das cidades. “Janelas do meu quarto”, elemento físico que dá para o autor observar o “vai e vem” da cidade. Aliás, a janela até hoje, em muitas localidades, é por onde se mira o movimento dos forasteiros e as atividades dos vizinhos. “Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada”“A fileira de carruagens de um comboio e uma partida apitada”. Este último verso particulariza o tema cidade. É um anúncio do crescimento citadino, da efervescência das cidades (é a era do comboio). É só lembrar que a aglomeração de carruagens evoluiu para as aglomerações que hoje presenciamos. É que hoje “a partida apitada” acontece nos portos, nos estádios e nos quartéis de bombeiros.
Temos também aqui a presença da corrente filosófica do Existencialismo, que a arte utilizou para desvendar o enigma da existência humana. Como sustenta SARAIVA e LOPES (2001:1000) “o espírito reflexivo de Pessoa, acaba, em certos momentos, por desvalorizar a sua própria razão humana”. Isso, logo desde o início: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada...”. Importa lembrar que, embora Campos não seja o próprio Pessoa, mesmo assim a luta interna pelo desvendamento da condição existencial do homem também lhe é peculiar. A afirmação de ser nada (vazio), de que nunca será nada e de que não pode ser nada converge para o paradoxo de que só mesmo numa reflexão existencialista se poderá encontrar uma resposta. A mesma ideia vem presente nos versos: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?/ Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!”. Estes versos configuram “uma terrível estranheza de existir, um acordar para a misteriosa importância de viver, que preludia o existencialismo de meados do século” (id et ib) e que a poesia pessoana deixa visualizar.
Ainda temos, neste poema, um verso que explora claramente o conceito existencialista na poesia pessoana: “Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nadaNeste verso vemos o dilema conflituoso existencial do “eu”. O poeta age como o filósofo Sartre no seu livro “O Ser e o Nada”. Mas Pessoa busca uma resposta para esta existência paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que o tudo é tudo, ele se faz em nada. E o destino, personagem responsável por muitas de nossas indagações, é o condutor principal desta vida existencialista.
(cf: A. Veríssimo, Ser em Português-12 B, Areal Editores, 199; A.J. Saraiva e O. Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 2001; Massaud Moisés, Fernando Pessoa – o espelho e a esfinge, Ed. Cultrix, 2004; blogue “Novos Navegantes”; Lima Reis, Apontamentos; blogue “Sentir português”)

2016.11.13 – Louro de Carvalho

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