O título – formulado em
jeito de pergunta por António Bolívar em Como Melhorar as Escolas (Ed. Asa: 2003) – parece provocatório e absurdo, já que
a escola tem por missão primordial a educação e o ensino. No entanto, cada vez
mais se afirma a necessidade da escola aprendente, sobretudo quando se
equaciona a necessidade e a vantagem da sua avaliação quer ao nível externo
quer ao nível da sua autoavaliação.
Por falar de avaliação
externa, confiada às diversas equipas inspetivas com a colaboração de docentes
do ensino superior, e da autoavaliação, levada a cabo pelos atores da escola e
respetiva comunidade educativa, é de lamentar que muito desse trabalho sirva
para a escola ficar bem na fotografia e a equipa de avaliação externa obter um
pretexto para a sua existência.
Contra a avaliação externa?
Não, desde que o seu objeto seja a essencialidade da escola – o espaço de aula
e/ou equivalente – e se proscrevam as encenações. Abandonou-se, não sei por que
motivo, o regime de avaliação por auditoria, que só pecava por ser marcadamente
punitivo e vir perdendo o sentido de orientação. O sistema de avaliação externa
baseado em inquéritos por questionário ou em entrevistas por painéis de
participantes é imensamente falível, porque as respostas a inquéritos ou
correspondem a estados de alma e subterfúgio para dizer umas coisas que não se
dizem face a face ou a desejo de que a escola não seja prejudicada pelos
avaliadores. Os painéis de entrevistas são ora palco de atores silenciosos e de
atores ousados, ora lugar de discussão pouco mais que inútil. A leitura e análise
de documentação enviada pela escola sofre os efeitos da (in)capacidade de
escrita e registo. E, entre meia dúzia de pontos a melhorar que sempre se
apontam, pouco ressalta para não abalar o sistema educativo.
A autoavaliação de escola
será proveitosa se forem recrutados os atores mais capacitados para a
coordenarem, se lhes derem meios e for suscitada a cooperação de todos. Mas
isto implica que o exercício autoavaliativo não sirva de trampolim para
protagonismos indevidos nem para levantamento e perseguição de putativos
culpados por aquilo que funciona menos bem.
***
Voltando à missão da
escola, que é educar e ensinar, importa considerar que a melhor forma de ensino
é a provocação de procura e seguimento de caminhos de aprendizagem. E, deixemo-nos
de equívocos, hoje os professores ensinam em excesso e os alunos aprendem muito
pouco. Com materiais tão bem elaborados por editores (alguns enfermam de erros ditados pela
pressa), os alunos
tinham de trabalhar com muito maior autonomia e interesse, devendo o professor
ser mais indicador de pistas, acompanhante do trabalho de aprendizagem, fator
de prestação de contas da aprendizagem e fornecedor de sínteses complementares.
Para tanto, o professor precisa de recuperar a autoridade na escola e o prestígio
na sociedade, o que é difícil quando os governos preferem a simpatia dos pais
em detrimento da confiança dos professores, sendo que os pais hiperdiscutem
conteúdos de ensino, metodologias dos docentes e calendarização das atividades.
Esquecem que a cada ciência o seu método e a cada trabalhador qualificado a sua
autonomia profissional. Nem se percebe como é que uma escola determina o número
de testes por período e por disciplina ou como impede que se aplique mais que
um teste por dia numa turma, sendo que um teste é uma aula e uma prova escrita,
que não pode ser hipervalorizada. Se assim não for, não fará qualquer sentido
argumentar contra exames que em 120 minutos não são fiáveis em comparação com
os dois/três anos do ciclo de estudos. Tal faria sentido se a avaliação se
escudasse na maioria das aulas, sendo os testes reduzidos à proporcionalidade
do seu peso.
Como dizem os filósofos,
ninguém dá o que não tem. Provavelmente as escolas não suscitam aprendizagens
porque não as deixam saber; e elas, para continuarem a saber, têm de continuar
a aprender. Por isso, o primeiro apelo a fazer é que as deixem aprender. Como?
Cuidando da formação inicial dos professores, cuidando da formação contínua do
pessoal docente e não docente – indispensável quando se advirta de avanços significativos
no conhecimento que possam favorecer a escola e quando se introduzam novas
disciplinas, novos programas, novas metodologias e novos projetos. Depois, é
preciso deixar respirar a escola, deixá-la exercer autonomamente as suas
funções em termos de organização, planeamento e prestação do serviço educativo,
e dotá-la de dirigentes capazes, escolhidos e apoiados pela comunidade
educativa. Para tal, é urgente desempresarializar a escola, que é uma
organização, mas não uma empresa. E a isto, aqui, vem a necessidade da
autoavaliação a lograr autoconhecimento, estimular a autorregulação, a melhorar
a organização e o funcionamento, a garantir a boa aprestação do serviço
educativo e a colocar as condições para a obtenção de resultados.
Depois, a dimensão educativa
deve envolver toda a postura e todo o exercício de aprendizagem. E essa
dimensão que consiste no saber ser e no saber estar (que também se aprendem progressivamente na interação escola/família) emoldura o perfil do aluno, que se confronta
assiduamente com o dos professores – pela adesão, rejeição ou até indiferença –,
facilita o processo da aprendizagem e constrói paulatinamente o cidadão autónomo,
responsável e interveniente. Também aqui deveríamos ser menos securitários e
mais exigentes.
***
Ora, as entidades vocacionadas
para suscitar a aprendizagem não têm o hábito de aprender porque os indivíduos
que as integram não querem ou não veem nisso qualquer vantagem, terão outros
interesses prioritários ou sentirão demasiados bloqueios, não sentem o apelo da
consciência profissional, não dispõem de lideranças mobilizadoras e pró-ativas,
acomodam-se à continuada certificação da menoridade intelectual, não sentem o
estímulo e a pressão externa ou sentem-lhe um peso excessivo. E as organizações
só aprendem através de indivíduos que aprendem. Sendo assim, para que a escola
aprenda (com os seus
erros, êxitos, limites, insuficiências…) é preciso induzir a maioria dos membros a querer aprender e
a gerar grandes processos de ação, que Bolívar enuncia e que reapresento com
adaptação à minha perspetiva:
Resolução
sistemática dos problemas. Há que
diagnosticar os
problemas concretos e passíveis de localmente serem resolvidos ou minorados e
ganhar capacidade para os resolver através da reflexão crítica e novos modos de
ação, abjurando das receitas ditadas do exterior.
Experimentação
com novos pontos de vista. Enfrentando novos problemas com as
velhas receitas (mais
ordem, mais ensino, mais planos de recuperação, mais apoios
acrescidos, mais do mesmo…), nada se aprenderá. É preciso encontrar novas e adequadas respostas.
Aprendizagem
a partir da experiência. Só analisando as causas dos êxitos e inêxitos,
poderemos progredir. Dispensem o simulacro dos relatórios que nada dizem,
adiantam, melhoram. Apenas cumprem o ritual burocrático do “como dantes,
quartel-general em Abrantes”, para Inglês ver. Aprendizagem
com os outros. Fechar-se nos seus próprios modos
de atuar ou estribar-se na autossuficiência conduz à morte da organização. Ao
invés, serão bons pressupostos de progresso a abertura, a confiança, a
aprendizagem interativa e a interdependência cooperativa.
Transferência
de conhecimento. O conhecimento tem mais impacto se é
rápida e eficientemente divulgado entre todos os membros da organização e
quando é partilhado por eles.
Para que a escola aprenda
é, pois, preciso gerar ambientes propícios para a aprendizagem, criar
estímulos, explicitar vantagens materiais e simbólicas; e, sobretudo, confiar,
apostar, apoiar, reconhecer, contratualizar num quadro claro de direitos e deveres
de todas as partes – na certeza de que não resultam as receitas decretadas ou estandardizadas.
***
Pressupostos da autoavaliação da escola.
O dinamismo da
autoavaliação tem de basear-se num complexo de princípios estruturantes e
reguladores, que Matias Alves, no blogue terrear, aborda seguindo Pinto Machado
e que eu reformulo e sintetizo:
Papel central dos professores na construção da autonomia e dos
procedimentos de avaliação da escola. É papel que requer a apropriação dos
fins e dos princípios, a participação e implicação de um número alargado de
atores e a criação de dinâmicas de capacitação.
Avaliação como produção coletiva de sentido. Há que determinar o que
avaliar, para quê, porquê, como e por onde começar. A produção de sentido
decorre em processo lento, metódico, consistente, devendo evitar-se a 'febre do
investigador', o correr para o terreno e nada ver.
Existência de um quadro concetual de referência. Tal quadro deve
explicitar os princípios, os fins e os critérios, orientar a ação e explicitar
métodos e técnicas. Uma das condições da sua eficácia é a participação livre e
motivada dos atores.
Capacitação dos intervenientes. É desenvolvida através de
dispositivos de formação na ação.
Internalização da avaliação. É postulada pela produção de sentido,
consiste na adequação aos contextos, à realidade, às pessoas e implica uma
negociação, uma participação empenhada. É impossível um modelo de avaliação “chave
na mão” ou estandardizado.
Autonomia da avaliação. A autoavaliação é um exercício de escola
autónoma com vista à melhoria; e não uma 'inspeção' dentro da própria escola.
Avaliação circunscrita. Avaliar com sentido não é escrutinar tudo,
de qualquer modo e a todo o momento. Há que circunscrever o objeto da avaliação,
diversificar métodos e técnicas e implicar todos os atores.
Avaliação teleológica. Avaliar com sentido é não perder de vista as
finalidades, saber que o essencial não é medir, mas compreender e agir para
melhorar. Por exemplo, fazer recair a avaliação na satisfação pode não servir
de nada, pois o que faz mudar é sobretudo a insatisfação.
Avaliação “desarmadilhada”. Avaliar é evitar uma série de
armadilhas: a do objetivismo, a do autoritarismo, a do tecnicismo, a da
embriaguez interpretativa.
Avaliação participada. A internalização da avaliação não se deve
acantonar na equipa avaliativa. Esta exerce o seu papel, suscitando o
contributo dos demais para a elaboração e aprovação do programa de
autoavaliação, suscitando as diversas ações avaliativas, mobilizando os demais
para a participação na recolha de dados, organizando debates e coordenando (que não significa “fazer”) toda esta atividade.
Avaliação comprometedora. A autoavaliação requer o envolvimento e
compromisso dos atores.
Avaliação “desritualizada”. A autoavaliação não pode ser o ritual de
legitimação do instituído. Tem, pois, de cuidar da distância crítica, gerar a
participação alargada, pluralizar os métodos.
Avaliação responsabilizante. A autoavaliação, para ser eficaz, tem
de “contribuir para a autonomização responsável, para o acender do querer
individual e coletivo, para a capacitação das pessoas e organizações”.
***
A aprendizagem da escola pode cifrar-se, segundo Santos Guerra, em 10
verbos que suscitam a reflexão, a compreensão e a mudança: questionar-se, investigar, dialogar, compreender, melhorar, escrever,
difundir, debater, comprometer-se e exigir.
1. Questionar-se: Se não existem
perguntas, não se procuram respostas. Há que passar de um modelo baseado em
rotinas e certezas para outro, sustentado em incertezas e dúvidas. As perguntas
colocadas pela escola ultrapassam a linha da superfície, aprofundam as questões
nucleares. Se as práticas não são postas em dúvida, se não se formulam novas
perguntas, nem se reformulam as perguntas já feitas, é fácil que a rotina
domine as práticas escolares.
2. Investigar: A resposta procurada não é fruto da
intuição, da suposição, da arbitrariedade, da rotina, do comodismo ou dos
interesses, mas da indagação rigorosa. Ora, quando o professor se questiona
sinceramente acerca de uma questão e começa à procura de provas rigorosas que lhe
respondam, está a investigar.
3. Dialogar: O processo de investigação gera o diálogo
entre os protagonistas da escola e entre estes e a sociedade. É a aprendizagem
partilhada por todas as componentes que caraterizam qualquer instituição. É a aprendizagem
da escola enquanto instituição. Todos os membros da comunidade tomam parte
ativa no diálogo, não por concessão generosa de autoridade, mas pelo pleno
direito que lhes assiste. Para que se produza diálogo, não basta a atitude para
o praticar; é necessário também dispor de estruturas organizacionais que o
tornem possível.
4. Compreender: Através da investigação
é possível alcançar uma compreensão dos fenómenos que é, em última análise, a
finalidade de todas as explorações educativas. A compreensão é uma das chaves
da transformação e da melhoria.
5. Melhorar: Se a compreensão visa favorecer a
tomada de decisões, a investigação educativa procura não armazenar
conhecimentos, mas melhorar a prática. Porém, é necessário distinguir entre
melhoria e simples alteração – distinção que deve alicerçar-se num debate
contínuo, democrático e rigoroso. Da simples alteração não se esperam melhores
resultados
6. Escrever: É preciso colocar por escrito o
processo e o resultado da reflexão e das investigações, para que ajudem a
colocar ordem no pensamento frequentemente errático e confuso sobre a escola e
a educação.
7. Difundir: Deve ser difundida a investigação
feita e passada a relatório coerente para que os restantes profissionais e
cidadãos a possam conhecer e exprimir a sua opinião. Para tal, é preciso que
investigação e relatórios expressem a opinião dos docentes de forma sincera e
clara.
8. Debater: Com a difusão da investigação,
gera-se nova plataforma de discussão, de que podem beneficiar, entre outros, os
investigadores, ao receberem o feedback
sobre argumentações e processo metodológico. Neste debate participam não
somente os membros da única comunidade educativa, mas também os membros de
muitas outras que trocam opiniões entre si sobre os diferentes relatórios.
9. Comprometer-se: Longe do diletantismo vazio, o
debate profissional e político sobre a educação está direcionado para um
compromisso eficaz. Não se discute por razões lúdicas, mas para transformar as
situações em que o ensino e a aprendizagem ocorrem. Porque a educação é uma
prática ética, implica um compromisso com a ação; e, sendo uma prática
política, obriga-nos a estabelecer atuações estruturais, raramente específicas
de uma instituição concreta.
10. Exigir: O conhecimento
adquirido e difundido induz a melhoria das práticas profissionais e a abordagem
de reivindicações que permitam obter as condições estruturais, materiais e
pessoais necessárias para a mudança. Não basta modificar as atitudes de cada
pessoa, nem basta que cada escola inicie os respetivos processos de inovação; é
necessário transformar as condições gerais. E, como muitas vezes não basta
apelar à mudança e à disponibilização dos meios necessários a quem tem o dever
de os implementar, é urgente exigi-los na qualidade de cidadãos. Para tanto, é
preciso estar disponível para o exercício da “valentia cívica”, virtude
democrática que nos leva a abraçar causas que, de antemão, parecem estar
perdidas.
As atitudes expressas por
estes verbos devem entrelaçar-se na coletividade proativamente e de forma
concertada, ética e política. A concertação decorre da necessidade da
participação de todos os membros da escola e da comunidade educativa; o enfoque
ético resulta de não se tratar de melhoria técnica, mas moral; e a dimensão
política explica-se pelo facto de a educação estar impregnada de compromissos
ideológicos, sociais e económicos. Não basta obter a melhoria duma escola; é necessário
transformar todas as situações genéricas que afetam a educação.
E esta é a batalha de
todos os dias!
2016.10.28 – Louro de Carvalho
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