sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A escola tem de ser uma entidade que aprende

O título – formulado em jeito de pergunta por António Bolívar em Como Melhorar as Escolas (Ed. Asa: 2003) – parece provocatório e absurdo, já que a escola tem por missão primordial a educação e o ensino. No entanto, cada vez mais se afirma a necessidade da escola aprendente, sobretudo quando se equaciona a necessidade e a vantagem da sua avaliação quer ao nível externo quer ao nível da sua autoavaliação.
Por falar de avaliação externa, confiada às diversas equipas inspetivas com a colaboração de docentes do ensino superior, e da autoavaliação, levada a cabo pelos atores da escola e respetiva comunidade educativa, é de lamentar que muito desse trabalho sirva para a escola ficar bem na fotografia e a equipa de avaliação externa obter um pretexto para a sua existência.
Contra a avaliação externa? Não, desde que o seu objeto seja a essencialidade da escola – o espaço de aula e/ou equivalente – e se proscrevam as encenações. Abandonou-se, não sei por que motivo, o regime de avaliação por auditoria, que só pecava por ser marcadamente punitivo e vir perdendo o sentido de orientação. O sistema de avaliação externa baseado em inquéritos por questionário ou em entrevistas por painéis de participantes é imensamente falível, porque as respostas a inquéritos ou correspondem a estados de alma e subterfúgio para dizer umas coisas que não se dizem face a face ou a desejo de que a escola não seja prejudicada pelos avaliadores. Os painéis de entrevistas são ora palco de atores silenciosos e de atores ousados, ora lugar de discussão pouco mais que inútil. A leitura e análise de documentação enviada pela escola sofre os efeitos da (in)capacidade de escrita e registo. E, entre meia dúzia de pontos a melhorar que sempre se apontam, pouco ressalta para não abalar o sistema educativo.
A autoavaliação de escola será proveitosa se forem recrutados os atores mais capacitados para a coordenarem, se lhes derem meios e for suscitada a cooperação de todos. Mas isto implica que o exercício autoavaliativo não sirva de trampolim para protagonismos indevidos nem para levantamento e perseguição de putativos culpados por aquilo que funciona menos bem.
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Voltando à missão da escola, que é educar e ensinar, importa considerar que a melhor forma de ensino é a provocação de procura e seguimento de caminhos de aprendizagem. E, deixemo-nos de equívocos, hoje os professores ensinam em excesso e os alunos aprendem muito pouco. Com materiais tão bem elaborados por editores (alguns enfermam de erros ditados pela pressa), os alunos tinham de trabalhar com muito maior autonomia e interesse, devendo o professor ser mais indicador de pistas, acompanhante do trabalho de aprendizagem, fator de prestação de contas da aprendizagem e fornecedor de sínteses complementares. Para tanto, o professor precisa de recuperar a autoridade na escola e o prestígio na sociedade, o que é difícil quando os governos preferem a simpatia dos pais em detrimento da confiança dos professores, sendo que os pais hiperdiscutem conteúdos de ensino, metodologias dos docentes e calendarização das atividades. Esquecem que a cada ciência o seu método e a cada trabalhador qualificado a sua autonomia profissional. Nem se percebe como é que uma escola determina o número de testes por período e por disciplina ou como impede que se aplique mais que um teste por dia numa turma, sendo que um teste é uma aula e uma prova escrita, que não pode ser hipervalorizada. Se assim não for, não fará qualquer sentido argumentar contra exames que em 120 minutos não são fiáveis em comparação com os dois/três anos do ciclo de estudos. Tal faria sentido se a avaliação se escudasse na maioria das aulas, sendo os testes reduzidos à proporcionalidade do seu peso.
Como dizem os filósofos, ninguém dá o que não tem. Provavelmente as escolas não suscitam aprendizagens porque não as deixam saber; e elas, para continuarem a saber, têm de continuar a aprender. Por isso, o primeiro apelo a fazer é que as deixem aprender. Como? Cuidando da formação inicial dos professores, cuidando da formação contínua do pessoal docente e não docente – indispensável quando se advirta de avanços significativos no conhecimento que possam favorecer a escola e quando se introduzam novas disciplinas, novos programas, novas metodologias e novos projetos. Depois, é preciso deixar respirar a escola, deixá-la exercer autonomamente as suas funções em termos de organização, planeamento e prestação do serviço educativo, e dotá-la de dirigentes capazes, escolhidos e apoiados pela comunidade educativa. Para tal, é urgente desempresarializar a escola, que é uma organização, mas não uma empresa. E a isto, aqui, vem a necessidade da autoavaliação a lograr autoconhecimento, estimular a autorregulação, a melhorar a organização e o funcionamento, a garantir a boa aprestação do serviço educativo e a colocar as condições para a obtenção de resultados.
Depois, a dimensão educativa deve envolver toda a postura e todo o exercício de aprendizagem. E essa dimensão que consiste no saber ser e no saber estar (que também se aprendem progressivamente na interação escola/família) emoldura o perfil do aluno, que se confronta assiduamente com o dos professores – pela adesão, rejeição ou até indiferença –, facilita o processo da aprendizagem e constrói paulatinamente o cidadão autónomo, responsável e interveniente. Também aqui deveríamos ser menos securitários e mais exigentes.
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Ora, as entidades vocacionadas para suscitar a aprendizagem não têm o hábito de aprender porque os indivíduos que as integram não querem ou não veem nisso qualquer vantagem, terão outros interesses prioritários ou sentirão demasiados bloqueios, não sentem o apelo da consciência profissional, não dispõem de lideranças mobilizadoras e pró-ativas, acomodam-se à continuada certificação da menoridade intelectual, não sentem o estímulo e a pressão externa ou sentem-lhe um peso excessivo. E as organizações só aprendem através de indivíduos que aprendem. Sendo assim, para que a escola aprenda (com os seus erros, êxitos, limites, insuficiências…) é preciso induzir a maioria dos membros a querer aprender e a gerar grandes processos de ação, que Bolívar enuncia e que reapresento com adaptação à minha perspetiva:
Resolução sistemática dos problemas. Há que diagnosticar os problemas concretos e passíveis de localmente serem resolvidos ou minorados e ganhar capacidade para os resolver através da reflexão crítica e novos modos de ação, abjurando das receitas ditadas do exterior.
Experimentação com novos pontos de vista. Enfrentando novos problemas com as velhas receitas (mais ordem, mais ensino, mais planos de recuperação, mais apoios acrescidos, mais do mesmo…), nada se aprenderá. É preciso encontrar novas e adequadas respostas.
Aprendizagem a partir da experiência. Só analisando as causas dos êxitos e inêxitos, poderemos progredir. Dispensem o simulacro dos relatórios que nada dizem, adiantam, melhoram. Apenas cumprem o ritual burocrático do “como dantes, quartel-general em Abrantes”, para Inglês ver. Aprendizagem com os outros. Fechar-se nos seus próprios modos de atuar ou estribar-se na autossuficiência conduz à morte da organização. Ao invés, serão bons pressupostos de progresso a abertura, a confiança, a aprendizagem interativa e a interdependência cooperativa.
Transferência de conhecimento. O conhecimento tem mais impacto se é rápida e eficientemente divulgado entre todos os membros da organização e quando é partilhado por eles.
Para que a escola aprenda é, pois, preciso gerar ambientes propícios para a aprendizagem, criar estímulos, explicitar vantagens materiais e simbólicas; e, sobretudo, confiar, apostar, apoiar, reconhecer, contratualizar num quadro claro de direitos e deveres de todas as partes – na certeza de que não resultam as receitas decretadas ou estandardizadas.
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Pressupostos da autoavaliação da escola.
O dinamismo da autoavaliação tem de basear-se num complexo de princípios estruturantes e reguladores, que Matias Alves, no blogue terrear, aborda seguindo Pinto Machado e que eu reformulo e sintetizo:
Papel central dos professores na construção da autonomia e dos procedimentos de avaliação da escola. É papel que requer a apropriação dos fins e dos princípios, a participação e implicação de um número alargado de atores e a criação de dinâmicas de capacitação.
Avaliação como produção coletiva de sentido. Há que determinar o que avaliar, para quê, porquê, como e por onde começar. A produção de sentido decorre em processo lento, metódico, consistente, devendo evitar-se a 'febre do investigador', o correr para o terreno e nada ver.
Existência de um quadro concetual de referência. Tal quadro deve explicitar os princípios, os fins e os critérios, orientar a ação e explicitar métodos e técnicas. Uma das condições da sua eficácia é a participação livre e motivada dos atores.
Capacitação dos intervenientes. É desenvolvida através de dispositivos de formação na ação.
Internalização da avaliação. É postulada pela produção de sentido, consiste na adequação aos contextos, à realidade, às pessoas e implica uma negociação, uma participação empenhada. É impossível um modelo de avaliação “chave na mão” ou estandardizado.
Autonomia da avaliação. A autoavaliação é um exercício de escola autónoma com vista à melhoria; e não uma 'inspeção' dentro da própria escola.
Avaliação circunscrita. Avaliar com sentido não é escrutinar tudo, de qualquer modo e a todo o momento. Há que circunscrever o objeto da avaliação, diversificar métodos e técnicas e implicar todos os atores.
Avaliação teleológica. Avaliar com sentido é não perder de vista as finalidades, saber que o essencial não é medir, mas compreender e agir para melhorar. Por exemplo, fazer recair a avaliação na satisfação pode não servir de nada, pois o que faz mudar é sobretudo a insatisfação.
Avaliação “desarmadilhada”. Avaliar é evitar uma série de armadilhas: a do objetivismo, a do autoritarismo, a do tecnicismo, a da embriaguez interpretativa.
Avaliação participada. A internalização da avaliação não se deve acantonar na equipa avaliativa. Esta exerce o seu papel, suscitando o contributo dos demais para a elaboração e aprovação do programa de autoavaliação, suscitando as diversas ações avaliativas, mobilizando os demais para a participação na recolha de dados, organizando debates e coordenando (que não significa “fazer”) toda esta atividade.
Avaliação comprometedora. A autoavaliação requer o envolvimento e compromisso dos atores.
Avaliação “desritualizada”. A autoavaliação não pode ser o ritual de legitimação do instituído. Tem, pois, de cuidar da distância crítica, gerar a participação alargada, pluralizar os métodos.
Avaliação responsabilizante. A autoavaliação, para ser eficaz, tem de “contribuir para a autonomização responsável, para o acender do querer individual e coletivo, para a capacitação das pessoas e organizações”.
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A aprendizagem da escola pode cifrar-se, segundo Santos Guerra, em 10 verbos que suscitam a reflexão, a compreensão e a mudança: questionar-se, investigar, dialogar, compreender, melhorar, escrever, difundir, debater, comprometer-se e exigir.

1. Questionar-se: Se não existem perguntas, não se procuram respostas. Há que passar de um modelo baseado em rotinas e certezas para outro, sustentado em incertezas e dúvidas. As perguntas colocadas pela escola ultrapassam a linha da superfície, aprofundam as questões nucleares. Se as práticas não são postas em dúvida, se não se formulam novas perguntas, nem se reformulam as perguntas já feitas, é fácil que a rotina domine as práticas escolares.

2. Investigar: A resposta procurada não é fruto da intuição, da suposição, da arbitrariedade, da rotina, do comodismo ou dos interesses, mas da indagação rigorosa. Ora, quando o professor se questiona sinceramente acerca de uma questão e começa à procura de provas rigorosas que lhe respondam, está a investigar.
3. Dialogar: O processo de investigação gera o diálogo entre os protagonistas da escola e entre estes e a sociedade. É a aprendizagem partilhada por todas as componentes que caraterizam qualquer instituição. É a aprendizagem da escola enquanto instituição. Todos os membros da comunidade tomam parte ativa no diálogo, não por concessão generosa de autoridade, mas pelo pleno direito que lhes assiste. Para que se produza diálogo, não basta a atitude para o praticar; é necessário também dispor de estruturas organizacionais que o tornem possível.
4. Compreender: Através da investigação é possível alcançar uma compreensão dos fenómenos que é, em última análise, a finalidade de todas as explorações educativas. A compreensão é uma das chaves da transformação e da melhoria.
5. Melhorar: Se a compreensão visa favorecer a tomada de decisões, a investigação educativa procura não armazenar conhecimentos, mas melhorar a prática. Porém, é necessário distinguir entre melhoria e simples alteração – distinção que deve alicerçar-se num debate contínuo, democrático e rigoroso. Da simples alteração não se esperam melhores resultados
6. Escrever: É preciso colocar por escrito o processo e o resultado da reflexão e das investigações, para que ajudem a colocar ordem no pensamento frequentemente errático e confuso sobre a escola e a educação.
7. Difundir: Deve ser difundida a investigação feita e passada a relatório coerente para que os restantes profissionais e cidadãos a possam conhecer e exprimir a sua opinião. Para tal, é preciso que investigação e relatórios expressem a opinião dos docentes de forma sincera e clara.
8. Debater: Com a difusão da investigação, gera-se nova plataforma de discussão, de que podem beneficiar, entre outros, os investigadores, ao receberem o feedback sobre argumentações e processo metodológico. Neste debate participam não somente os membros da única comunidade educativa, mas também os membros de muitas outras que trocam opiniões entre si sobre os diferentes relatórios.
9. Comprometer-se: Longe do diletantismo vazio, o debate profissional e político sobre a educação está direcionado para um compromisso eficaz. Não se discute por razões lúdicas, mas para transformar as situações em que o ensino e a aprendizagem ocorrem. Porque a educação é uma prática ética, implica um compromisso com a ação; e, sendo uma prática política, obriga-nos a estabelecer atuações estruturais, raramente específicas de uma instituição concreta.
10. Exigir: O conhecimento adquirido e difundido induz a melhoria das práticas profissionais e a abordagem de reivindicações que permitam obter as condições estruturais, materiais e pessoais necessárias para a mudança. Não basta modificar as atitudes de cada pessoa, nem basta que cada escola inicie os respetivos processos de inovação; é necessário transformar as condições gerais. E, como muitas vezes não basta apelar à mudança e à disponibilização dos meios necessários a quem tem o dever de os implementar, é urgente exigi-los na qualidade de cidadãos. Para tanto, é preciso estar disponível para o exercício da “valentia cívica”, virtude democrática que nos leva a abraçar causas que, de antemão, parecem estar perdidas.
As atitudes expressas por estes verbos devem entrelaçar-se na coletividade proativamente e de forma concertada, ética e política. A concertação decorre da necessidade da participação de todos os membros da escola e da comunidade educativa; o enfoque ético resulta de não se tratar de melhoria técnica, mas moral; e a dimensão política explica-se pelo facto de a educação estar impregnada de compromissos ideológicos, sociais e económicos. Não basta obter a melhoria duma escola; é necessário transformar todas as situações genéricas que afetam a educação.
E esta é a batalha de todos os dias!

2016.10.28 – Louro de Carvalho

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