sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O “Dominus vobiscum”!

Em tempos idos, o cónego José Cardoso de Almeida, da diocese de Lamego, surpreendeu os seus circunstantes – crianças e pré-adolescentes – quando lhes dizia no tom que somente ele sabia utilizar: “O ‘Dominus vobiscum’, que palavra tão linda e tão terna! Levai-a para vossa casa, minhas meninas e meus meninos!
Os seus amigos gozavam-no e imitavam-lhe a voz, a fisionomia e os gestos. Eu era um deles. E um dia interpelei a sua bonomia aparentemente leve e ele fez o favor de me elucidar sobre a profundeza da saudação litúrgica com raízes bíblicas.
Entretanto, houve dois marcos recentes que suscitam a presente reflexão: o conhecimento que tive de que foi São Ponciano (Papa de 230 a 235) quem ordenou o canto dos salmos nas igrejas, prescreveu o “Confiteor” no início da Missa e introduziu na Liturgia a fórmula salutatória Dominus vobiscum”; e a releitura de Bocalli Lancellotti, “Comentário ao Evangelho de São Lucas” (Ed. Vozes, Petrópolis: 1979) sobretudo o comentário à expressão “Dominus tecum” (Ho Kýrios metá soû – Ὁ Κύριος μετα σου), dirigido pelo Anjo Gabriel a Maria (Lc 1, 28), traduzido habitualmente por “O Senhor é contigo” ou “O Senhor está contigo” (convosco, no português litúrgico europeu) e que eu prefiro traduzir por o “Senhor contigo”, como adiante explicitarei.
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É relevante pesquisar sobre o material litúrgico em torno da saudação Dominus vobiscum  – O Senhor (esteja) convosco – (e similares) e a resposta Et cum spiritu tuo, que se traduzia “E com o teu espírito” e passou a traduzir-se por “E contigo também” e agora a tradução litúrgica em vigor, entre nós, é “Ele está no meio de nós”. Obviamente, em si as palavras, Et cum spiritu tuo, significam: “Contigo”. Mas João Crisóstomo já entende pela palavra “espírito” o Espírito Santo, que pela ordenação é comunicado ao sacerdote. A Igreja favorece esta explicação, pois podem usar esta saudação só os que, pela imposição das mãos do Bispo, receberam o Espírito Santo.
Convém referir que a tradução portuguesa da resposta (Et cum spiritu tuo – Kai metá tou pnéumatos sou – E com o teu espírito), assim tão rebuscada – “Ele está no meio de nós” – não era necessária, por a originária estar consagrada tradicionalmente, ter sido adotada por outras línguas latinas e por a palavra hebraica correspondente a espírito, ao evocar o elemento imaterial, abranger o ser humano todo (nephesh, “a tua pessoa”). “E contigo também” faz lembrar a linguagem coloquial, mas para alguns ouvidos puritanos não deixa de se tornar uma expressão incómoda ao tratar o reverendíssimo saudante por “tu”. E este é bispo, presbítero ou diácono!
“Ele está no meio de nós” é uma tradução rica enquanto ato de fé na presença de Jesus, o Senhor, na assembleia dos irmãos reunidos em seu nome. Todavia, haveria outros momentos para o afirmar. E, além de parecer um desconversar por não corresponder empaticamente ao teor do enunciado proferido pelo saudante e revestir um certo grau de autossuficiência, é insuficiente no sentido, deixando-nos alheios às origens e significados da saudação e sua resposta. Ora, também na Divina Liturgia de São João Crisóstomo a expressão em grego é “Και μετά του πνεύματος σου” (kai meta tou pneumatos sou), que significa exatamente “E com o teu espírito”.
Na Liturgia, o papel do Dominus vobiscum e da sua resposta Et cum spiritu tuo é de tão grande importância como o Aleluia. Se o Aleluia configura uma aclamação de louvor a Deus e, na Missa, de predisposição a escutar com alegria e ação de graças a proclamação da Palavra do Evangelho, como especial mensagem do Senhor e mensagem de salvação, o Dominus vobiscum e sua resposta em consonância estabelecem a empatia entre o presidente da celebração ou o ministério diaconal da proclamação do Evangelho e o povo de Deus já reunido em nome de Cristo, efetivamente com Ele presente no seu meio. É uma fórmula que estabelece o contacto do emissor com o recetor coletivo e o retorno comunicacional deste ao emissor litúrgico. Ou, para responder à Roman Jakobson, a fórmula salutatória estabelece o contacto, corrige o contacto e restabelece o contacto. É a função fática da linguagem tornada comunicação. Por outro lado, a fórmula “O Senhor convosco” é uma saudação de benevolência e de reconhecimento duma realidade: o Senhor está efetivamente presente, connosco, entre nós, dentro de nós.
O “Dominus vobiscum” (Ho Kýrios met’ ymôn – Ὁ Κύριος μετ’ υμων) reveste para o povo de Deus a réplica dirigida a Maria, sendo que esta, enquanto Mãe do Senhor, faz do discípulo e do povo de Deus (Ela é a primeira discípula e o tipo e modelo do povo de Deus) um inundado pelo Senhor. É, assim, a tradução realizadora, aqui e agora, do termo hebraico Emmanuel, que significa Nobiscum Deus – Met’ emôn ho Theós (Μετ’ εμων ο Θεός) – Deus connosco (cf Mt 1,23; Is 7,14).
Com feito, os hebreus usavam a expressão que se traduz por “Deus connosco” ou “O Senhor convosco/contigo” como uma forma de saudação. Booz saudou os ceifeiros com as palavras: “O Senhor convosco”. E eles responderam-lhe: “O Senhor te abençoe” (Rt 2,4). Esta saudação é encontrada no Antigo Testamento também sob outras expressões: “o Senhor, vosso Deus, esteja convosco” (1Cr 22,18); “o Senhor convosco” (2Cr 15,2); “o Senhor estará convosco” (2Cr 20,17); “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob esteja convosco” (Tb 7,15); “o Senhor Deus dos Exércitos estará convosco” (Am 5,14); “eu convosco, diz o Senhor” (Ag 1,13), etc.
No Novo Testamento, além do anjo Gabriel, que saúda Maria com estas palavras: “O Senhor contigo” (Lc 1,28). Em Mateus Jesus diz: “Ecce ego vobiscum sum” (Mt 28,20); Paulo assim expressa esta saudação: “a graça de nosso Senhor convosco" (Rm 16,20); “o Deus de amor e paz estará convosco” (2Cor 13,11); “o Deus da paz estará convosco” (Fl 4,9); e “a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo convosco (2 Cor 13,13).
O uso litúrgico do Dominus vobiscum com a respetiva resposta é recorrentemente encontrado em todas as liturgias. Nada poderia haver de mais expressivo e solene que essas palavras quando usadas no lugar apropriado. Com esta fórmula o sacerdote saúda os fiéis na assembleia cristã. O presbítero ou o bispo (este pode no início da missa utilizar a formula “Pax vobis – “a paz convosco” ou “a paz para vós”, sendo a resposta a mesma) fala em nome de todos, reúne os seus pedidos e é o pontífice que oferece as orações da assembleia a Deus. Antes de agir como representante deles, portanto, volta-se para eles dizendo: Dominus vobiscum. E eles respondem: “E com o teu espírito” (já que tu apresentas as nossas orações). E quando o pontífice conclui a oração em alta voz, o povo responde Amen, como para dizer: “Certo. Assim seja. Tu exprimes bem a nossa oração”.
Dominus vobiscum encontra, pois, naturalmente, um lugar no início da missa ou do Ofício Divino, antes do Prefácio e antes do Evangelho (di-lo o diácono se o proclamar ele), antes da bênção e antes de algumas orações sobretudo em responsórios.
A sua origem é evidentemente bíblica, como se referiu. O uso eclesiástico data provavelmente da era apostólica, embora introduzido na missa mais tarde com Ponciano. Menção dela é feita no Concílio de Braga (563). Aparece no "Sacramentarium Gelasianum", do século VI (ou VII). A frase comporta um profundo significado religioso e expressa intensamente um dos mais altos e santos desejos, pois a presença do Senhor – Fonte de todo bem e Autor de todos os dons – é a garantia certa da proteção divina e a certeza da posse de toda paz e consolação espiritual.
Entre os Gregos há uma forma correspondente “Pax omnibus” (Liturgia de São Basílio). O Concílio de Braga, já mencionado, ordenou que os presbíteros, como os bispos, a quem os hereges priscilianistas a queriam restringir, adotassem esta fórmula.
A fórmula dialogante, “O Senhor convosco. E com o teu espírito”, tirada do livro de Rute  2,4 e da 2.ª Carta a Timóteo (Tm 2,22), e outras similares foram provavelmente tomadas pelos cristãos diretamente da sinagoga. Há uma clara evidência, por exemplo, em Justino, mártir (100-165), de que os cristãos utilizavam estas expressões desde muito cedo. O facto de desde os tempos mais antigos os cristãos conservarem estas frases em sua forma original, apesar de serem alheias à mentalidade grega e latina, deveria constituir bom argumento para as mantermos intactas nas traduções atuais. Assim, preservaríamos um vivo elo com as origens históricas do Cristianismo, como fazemos ao conservar formas e expressões hebraicas, como AmenAlleluiaHosanna e Shalom.
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Lancellotti comenta o Dominus tecum que integra a saudação angélica à Virgem de Nazaré dizendo que não se trata nem de “um voto” nem de “uma saudação de cortesia”, mas a verificação de uma realidade, de um facto. Na verdade, Maria achou graça diante de Deus, pelo que Ele está com Ela e Nela. Diriam os habitantes do campo que Ela se deixou empapar no Senhor a ponto de poder dizer como Paulo, Já não sou eu que vivo, é Ele que vive em mim (cf Gl 2,3). Deus olhou para ela com o olhar de ternura e complacência com que a Eleusa (ou Eleousa, em grego: Ἐλεούσα – “terna” ou “misericordiosa”) fita o seu menino que tem ao colo. E Maria responde ao Senhor com o mesmo olhar, o gesto de mão o rosto colado ao de Deus como o do menino do ícone da Virgem ao rosto da mãe.
Por outro lado, o Dominus tecum e expressões similares, no Antigo Testamento, sempre se dirigem a uma pessoa ou pessoas escolhida ou escolhidas para uma missão superior à forças humanas. Foi assim, por exemplo, com Moisés (Ex 3,12), Gedeão (cf Jz 6,12) e Jeremias (cf Jr 1,8; 15,20). Indicam uma especial presença e proteção de Deus a infundir força e eficácia divinas nas ações do homem, sempre com uma finalidade salvífica. Vinda de Deus, a que pareceria uma simples saudação ou até um piropo dirigida a uma mulher, torna-se a chamada a um ofício especial e consigna uma prerrogativa excecional (alguns manuscritos gregos acrescentam a Lc1,28 ”Bendita entre as mulheres”, como em Lc 1,42).
Ora, a missão confiada à Virgem de Nazaré é a conceição de um filho na sua virgindade, Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho (Lc 1,31), pois o Deus da redenção achou naquela que recebe a saudação o excecional, mas pleno cumprimento das suas promessas. E corresponde àquilo que Isaías considera um sinal prodigioso para a casa de David: A jovem conceberá e vai dar à luz um filho, e há de pôr-lhe o nome de Emma­nuel” (Is 7,14) – sinal recordado a José como cumprido em Maria (vd Mt 1,23). E aquele filho é exatamente o “Deus connosco, expressão paralela à do anjo “Deus contigo”. Oxalá que o Deus connosco fosse uma réplica perfeita da expressão “Deus contigo”. Para isso, temos muito que andar como pessoas e em Igreja, na atenção a Deus e ao mundo.
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Apesar de aceitar a gramática de valências e a gramática dependencial em que o verbo chama e comanda, devo fazer jus às emblemáticas frases nominais em que o verbo mais do que elucidar, estorva, restringe. E então na língua portuguesa abusamos. Distinguimos semanticamente “ser” e “estar”, como se o “estar” fosse transitório e o “ser” fosse permanente, próprio ou mesmo essencial. Assim, muitos não querem ser doentes, políticos, ministros, professores ou militares, mas estar doentes, políticos, ministros, professores ou militares. Alguns até querem ser ex-governantes, ex-militares, etc. Já agora, uma crítica à expressão “ex-mulher”, em vez de ex-esposa, quando ninguém diz “ex-homem”, em vez de ex-marido. E prezam a questão de género.
Ora se ser é próprio, permanente e até essencial em tantos casos, estar (do latim stare – estar de pé) deve significar e ser assumido como como se fosse para sempre (enquanto se está), aplicar-se com zelo e dedicação, firmeza, caráter inabalável.
A omissão do verbo em Pax vobis, Dominus tecum, Dominus vobiscum, Dominus nobiscum é vantajosa. Em formas litúrgicas só vejo o verbo em “Pax Domini sit semper vobiscum” a seguir à oração subsequente ao embolismo. Mas lá figura o advérbio sempre, a compaginar a permanência e a essencialidade da paz que o Senhor gratuitamente oferece. Porém, a tradução oficial em vigor, embora verdadeira do ponto de vista teológico, é desconcertante, pois é evasiva, “O amor de Cristo nos uniu”, em vez de “E com o teu espírito”.
Assim, entendo que a junção sem verbo copulativo entre os nomes Dominus ou Pax e o respetivo pronome pessoal complemento com a conotação de companhia ou de proveito confere à frase a semântica da essencialidade, a relação entitativa, desnudada dos circunstancialismos e contingências. Tem mais força, ternura e encanto. É verdadeira pérola da misericórdia e da condescendência divina. Pretende fazer-nos mergulhar no abismo gozoso de Deus e a Deus assumir a nossa humanidade – habitar entre nós (cf Jo 1,14), cear connosco (cf Ap 3,20).
Por tudo, devo o pedido de desculpas póstumas, embora solicitadas como muito atraso ao Cónego José e recomendo que se alguém vos saudar, fora da liturgia, com “o Senhor convosco”, respondei “E com o teu espírito”!

2016.10.07 – Louro de Carvalho   

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