Em tempos
idos, o cónego José Cardoso de Almeida, da diocese de Lamego, surpreendeu os
seus circunstantes – crianças e pré-adolescentes – quando lhes dizia no tom que
somente ele sabia utilizar: “O ‘Dominus vobiscum’, que palavra tão linda e tão terna! Levai-a
para vossa casa, minhas meninas e meus meninos!”
Os seus
amigos gozavam-no e imitavam-lhe a voz, a fisionomia e os gestos. Eu era um
deles. E um dia interpelei a sua bonomia aparentemente leve e ele fez o favor
de me elucidar sobre a profundeza da saudação litúrgica com raízes bíblicas.
Entretanto,
houve dois marcos recentes que suscitam a presente reflexão: o conhecimento que
tive de que foi São Ponciano (Papa de 230 a 235) quem
ordenou o canto dos salmos nas igrejas, prescreveu o “Confiteor” no início da Missa e introduziu na Liturgia a fórmula
salutatória “Dominus vobiscum”;
e a releitura de Bocalli Lancellotti, “Comentário
ao Evangelho de São Lucas” (Ed. Vozes, Petrópolis: 1979) sobretudo o comentário à expressão “Dominus tecum” (Ho Kýrios metá soû
– Ὁ Κύριος μετα σου), dirigido pelo Anjo Gabriel a Maria (Lc 1, 28), traduzido habitualmente por “O Senhor é contigo” ou “O
Senhor está contigo” (convosco, no português
litúrgico europeu) e que eu prefiro traduzir por o “Senhor contigo”, como
adiante explicitarei.
***
É relevante
pesquisar sobre o material litúrgico em torno da saudação Dominus vobiscum – O Senhor (esteja) convosco – (e similares) e a resposta Et
cum spiritu tuo, que se traduzia “E com o teu espírito” e passou a
traduzir-se por “E contigo também” e agora a tradução litúrgica em vigor, entre
nós, é “Ele está no meio de nós”. Obviamente, em si as palavras, Et cum spiritu tuo, significam:
“Contigo”. Mas João Crisóstomo já entende pela palavra “espírito” o Espírito
Santo, que pela ordenação é comunicado ao sacerdote. A Igreja favorece esta
explicação, pois podem usar esta saudação só os que, pela imposição das mãos do
Bispo, receberam o Espírito Santo.
Convém
referir que a tradução portuguesa da resposta (Et cum
spiritu tuo – Kai metá tou pnéumatos sou – E com o teu espírito), assim tão rebuscada – “Ele está no
meio de nós” – não
era necessária, por a originária estar consagrada tradicionalmente, ter sido
adotada por outras línguas latinas e por a palavra hebraica correspondente a
espírito, ao evocar o elemento imaterial, abranger o ser humano todo (nephesh, “a tua
pessoa”). “E contigo
também” faz lembrar a linguagem coloquial, mas para alguns ouvidos puritanos
não deixa de se tornar uma expressão incómoda ao tratar o reverendíssimo
saudante por “tu”. E este é bispo, presbítero ou diácono!
“Ele está no meio de nós” é uma
tradução rica enquanto ato de fé na presença de Jesus, o Senhor, na assembleia
dos irmãos reunidos em seu nome. Todavia, haveria outros momentos para o
afirmar. E, além de parecer um desconversar por não corresponder empaticamente
ao teor do enunciado proferido pelo saudante e revestir um certo grau de
autossuficiência, é insuficiente no sentido, deixando-nos alheios às origens e
significados da saudação e sua resposta. Ora, também na Divina Liturgia de São
João Crisóstomo a expressão em grego é “Και μετά του πνεύματος σου” (kai meta tou
pneumatos sou), que
significa exatamente “E com o teu espírito”.
Na Liturgia,
o papel do Dominus vobiscum e da sua resposta Et cum
spiritu tuo é de tão grande importância como o Aleluia. Se
o Aleluia configura uma
aclamação de louvor a Deus e, na Missa, de predisposição a escutar com alegria
e ação de graças a proclamação da Palavra do Evangelho, como especial mensagem
do Senhor e mensagem de salvação, o Dominus vobiscum e sua
resposta em consonância estabelecem a empatia entre o presidente da celebração
ou o ministério diaconal da proclamação do Evangelho e o povo de Deus já
reunido em nome de Cristo, efetivamente com Ele presente no seu meio. É uma
fórmula que estabelece o contacto do emissor com o recetor coletivo e o retorno comunicacional deste ao emissor
litúrgico. Ou, para responder à Roman Jakobson, a fórmula salutatória
estabelece o contacto, corrige o contacto e restabelece o contacto. É a função
fática da linguagem tornada comunicação. Por outro lado, a fórmula “O Senhor convosco” é uma saudação de
benevolência e de reconhecimento duma realidade: o Senhor está efetivamente
presente, connosco, entre nós, dentro de nós.
O “Dominus
vobiscum” (Ho Kýrios met’ ymôn – Ὁ Κύριος μετ’ υμων) reveste para o
povo de Deus a réplica dirigida a Maria, sendo que esta, enquanto Mãe do
Senhor, faz do discípulo e do povo de Deus (Ela é
a primeira discípula e o tipo e modelo do povo de Deus) um inundado
pelo Senhor. É, assim, a
tradução realizadora, aqui e agora, do termo hebraico Emmanuel, que
significa Nobiscum Deus – Met’ emôn ho Theós (Μετ’ εμων
ο Θεός) – Deus connosco (cf Mt 1,23; Is 7,14).
Com feito,
os hebreus usavam a expressão que se traduz por “Deus connosco” ou “O Senhor convosco/contigo” como uma forma de
saudação. Booz saudou os ceifeiros com as palavras: “O Senhor convosco”. E eles
responderam-lhe: “O Senhor te abençoe” (Rt 2,4). Esta saudação é encontrada no Antigo Testamento também sob outras
expressões: “o Senhor, vosso Deus, esteja convosco” (1Cr 22,18); “o Senhor convosco” (2Cr 15,2); “o Senhor estará convosco” (2Cr 20,17); “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob esteja
convosco” (Tb 7,15); “o Senhor Deus dos Exércitos estará convosco” (Am 5,14); “eu convosco, diz o Senhor” (Ag 1,13), etc.
No Novo
Testamento, além do anjo Gabriel, que saúda Maria com estas palavras: “O Senhor
contigo” (Lc 1,28). Em Mateus
Jesus diz: “Ecce ego vobiscum sum” (Mt 28,20); Paulo assim expressa esta saudação: “a graça de
nosso Senhor convosco" (Rm 16,20); “o Deus
de amor e paz estará convosco” (2Cor 13,11); “o Deus
da paz estará convosco” (Fl 4,9); e “a
graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito
Santo convosco (2 Cor 13,13).
O uso
litúrgico do Dominus vobiscum com a respetiva resposta é
recorrentemente encontrado em todas as liturgias. Nada poderia haver de mais
expressivo e solene que essas palavras quando usadas no lugar apropriado. Com
esta fórmula o sacerdote saúda os fiéis na assembleia cristã. O presbítero ou o
bispo (este pode no
início da missa utilizar a formula “Pax
vobis – “a paz convosco” ou “a paz para vós”, sendo a resposta a mesma) fala em nome de todos, reúne os seus pedidos e é o
pontífice que oferece as orações da assembleia a Deus. Antes de agir como
representante deles, portanto, volta-se para eles dizendo: Dominus
vobiscum. E eles respondem: “E com o teu espírito” (já que tu
apresentas as nossas orações). E quando
o pontífice conclui a oração em alta voz, o povo responde Amen,
como para dizer: “Certo. Assim seja. Tu exprimes bem a nossa oração”.
O Dominus
vobiscum encontra, pois, naturalmente, um lugar no início da missa ou
do Ofício Divino, antes do Prefácio e antes do Evangelho (di-lo o
diácono se o proclamar ele), antes da
bênção e antes de algumas orações sobretudo em responsórios.
A
sua origem é evidentemente bíblica, como
se referiu. O uso eclesiástico data provavelmente da era apostólica, embora
introduzido na missa mais tarde com Ponciano. Menção dela é feita no Concílio
de Braga (563). Aparece no "Sacramentarium
Gelasianum", do século VI (ou VII). A frase comporta um profundo significado religioso e expressa
intensamente um dos mais altos e santos desejos, pois a presença do Senhor – Fonte
de todo bem e Autor de todos os dons – é a garantia certa da proteção divina e
a certeza da posse de toda paz e consolação espiritual.
Entre os
Gregos há uma forma correspondente “Pax omnibus” (Liturgia de
São Basílio). O
Concílio de Braga, já mencionado, ordenou que os presbíteros, como os bispos, a
quem os hereges priscilianistas a queriam restringir, adotassem esta fórmula.
A fórmula
dialogante, “O Senhor convosco. E com o teu espírito”, tirada do livro de Rute
2,4 e da 2.ª Carta a Timóteo (Tm 2,22), e outras similares foram provavelmente tomadas
pelos cristãos diretamente da sinagoga. Há uma clara evidência, por exemplo, em
Justino, mártir (100-165), de que os
cristãos utilizavam estas expressões desde muito cedo. O facto de desde os tempos mais antigos os cristãos conservarem estas
frases em sua forma original, apesar de serem alheias à mentalidade grega e
latina, deveria constituir bom argumento para as mantermos intactas nas
traduções atuais. Assim, preservaríamos um vivo elo com as origens históricas
do Cristianismo, como fazemos ao conservar formas e expressões hebraicas, como Amen, Alleluia, Hosanna
e Shalom.
***
Lancellotti
comenta o Dominus tecum que integra a
saudação angélica à Virgem de Nazaré dizendo que não se trata nem de “um voto”
nem de “uma saudação de cortesia”, mas a verificação de uma realidade, de um
facto. Na verdade, Maria achou graça diante de Deus, pelo que Ele está com Ela
e Nela. Diriam os habitantes do campo que Ela se deixou empapar no Senhor a
ponto de poder dizer como Paulo, Já não
sou eu que vivo, é Ele que vive em mim (cf Gl 2,3). Deus olhou para ela com o
olhar de ternura e complacência com que a Eleusa (ou Eleousa, em grego: Ἐλεούσα – “terna” ou “misericordiosa”) fita o seu menino que tem ao
colo. E Maria responde ao Senhor com o mesmo olhar, o gesto de mão o rosto
colado ao de Deus como o do menino do ícone da Virgem ao rosto da mãe.
Por outro
lado, o Dominus tecum e expressões
similares, no Antigo Testamento, sempre se dirigem a uma pessoa ou pessoas
escolhida ou escolhidas para uma missão superior à forças humanas. Foi assim,
por exemplo, com Moisés (Ex 3,12), Gedeão (cf Jz 6,12) e Jeremias (cf Jr 1,8;
15,20). Indicam uma especial presença e proteção de Deus a infundir força e
eficácia divinas nas ações do homem, sempre com uma finalidade salvífica. Vinda
de Deus, a que pareceria uma simples saudação ou até um piropo dirigida a uma
mulher, torna-se a chamada a um ofício especial e consigna uma prerrogativa
excecional (alguns
manuscritos gregos acrescentam a Lc1,28 ”Bendita
entre as mulheres”, como em Lc 1,42).
Ora, a missão confiada à Virgem de Nazaré é a conceição de um
filho na sua virgindade, “Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho”
(Lc 1,31), pois o Deus da
redenção achou naquela que recebe a saudação o excecional, mas pleno cumprimento
das suas promessas. E corresponde àquilo que Isaías considera um sinal
prodigioso para a casa de David: “A jovem conceberá e
vai dar à luz um filho, e há de pôr-lhe o nome de Emmanuel” (Is 7,14) – sinal recordado a
José como cumprido em Maria (vd Mt 1,23). E aquele filho é exatamente o “Deus connosco, expressão paralela à do anjo “Deus contigo”. Oxalá que o Deus connosco fosse uma réplica perfeita
da expressão “Deus contigo”. Para
isso, temos muito que andar como pessoas e em Igreja, na atenção a Deus e ao
mundo.
***
Apesar
de aceitar a gramática de valências e
a gramática dependencial em que o
verbo chama e comanda, devo fazer jus às emblemáticas frases nominais em que o
verbo mais do que elucidar, estorva, restringe. E então na língua portuguesa abusamos.
Distinguimos semanticamente “ser” e “estar”, como se o “estar” fosse
transitório e o “ser” fosse permanente, próprio ou mesmo essencial. Assim,
muitos não querem ser doentes,
políticos, ministros, professores ou militares, mas estar doentes, políticos, ministros, professores ou militares.
Alguns até querem ser ex-governantes, ex-militares, etc. Já agora, uma crítica
à expressão “ex-mulher”, em vez de ex-esposa,
quando ninguém diz “ex-homem”, em vez de ex-marido. E prezam a questão de género.
Ora
se ser é próprio, permanente e até
essencial em tantos casos, estar (do
latim stare – estar de pé) deve significar e ser assumido
como como se fosse para sempre (enquanto se está), aplicar-se com zelo e
dedicação, firmeza, caráter inabalável.
A
omissão do verbo em Pax vobis, Dominus tecum, Dominus vobiscum, Dominus
nobiscum é vantajosa. Em formas litúrgicas só vejo o verbo em “Pax Domini
sit semper vobiscum” a seguir à oração subsequente ao embolismo. Mas lá figura
o advérbio sempre, a compaginar a
permanência e a essencialidade da paz que o Senhor gratuitamente oferece.
Porém, a tradução oficial em vigor, embora verdadeira do ponto de vista
teológico, é desconcertante, pois é evasiva, “O amor de Cristo nos uniu”, em vez de “E com o teu espírito”.
Assim,
entendo que a junção sem verbo copulativo entre os nomes Dominus ou Pax e o
respetivo pronome pessoal complemento com a conotação de companhia ou de
proveito confere à frase a semântica da essencialidade, a relação entitativa,
desnudada dos circunstancialismos e contingências. Tem mais força, ternura e
encanto. É verdadeira pérola da misericórdia e da condescendência divina.
Pretende fazer-nos mergulhar no abismo gozoso de Deus e a Deus assumir a nossa humanidade
– habitar entre nós (cf Jo 1,14), cear connosco (cf Ap 3,20).
Por
tudo, devo o pedido de desculpas póstumas, embora solicitadas como muito atraso
ao Cónego José e recomendo que se alguém vos saudar, fora da liturgia, com “o
Senhor convosco”, respondei “E com o teu espírito”!
2016.10.07 – Louro de Carvalho
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