quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Portugal na vanguarda do movimento sufragista

O facto é do contexto das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte da I República. Portugal ficou à frente do movimento sufragista sobretudo na sua vertente feminista. E a primeira mulher a exercer o direito de voto em toda a Europa Central e do Sul foi Carolina Beatriz Ângelo, médica, viúva e chefe de família.
O repto, “Que está escrito na Lei? Como a lês?”, lançado por Jesus ao doutor da lei que lhe perguntava, para o experimentar, o que havia de fazer para possuir a vida eterna (cf Lc 10,26), faz sobressair a relevância da leitura e da interpretação da lei. E a feminista, para exercício pleno da cidadania, forçou a leitura ousada da lei portuguesa no atinente ao sufrágio eleitoral, situação que os ‘homens’ republicanos não foram capazes de prever. Para tanto, recorreu à Justiça e conseguiu recensear-se, pois o juiz João Baptista de Castro proferiu sentença revolucionária e ela foi a única mulher a votar.
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O percurso de Carolina foi influenciado pelo ambiente familiar em que nasceu e cresceu: o casamento dos progenitores ocorreu depois do nascimento do primeiro filho, o que representa uma certa quebra intempestiva dos costumes; e os pais permitiram e patrocinaram a inscrição da filha na Escola Médico-Cirúrgica, precursora da Faculdade Medicina da futura Universidade de Lisboa, tendo concluído o curso em 1902. Nesse mesmo ano, casou-se com Januário Barreto, seu primo e ativista republicano. Tornou-se a primeira médica portuguesa a operar no Hospital de São José, dedicando-se mais tarde à especialidade de ginecologia.
Ora, na primeira década do século XX, eram muito poucas as mulheres que frequentavam o ensino superior. 
Há anos que travava os mesmos combates que os republicanos que estavam no poder, pelo que iria lutar para que o novo regime fosse sinal de mais direitos e melhores condições de vida para mais de três milhões de mulheres portuguesas: salário igual para trabalho igual, direito ao voto, direito a administrar os próprios bens, proteção na família e maternidade, a par do direito à educação, já que a taxa de analfabetismo ultrapassava os 70% (para homens e mulheres).
A militância cívica explícita iniciou-a em 1907, em conjunto com outras médicas, vindo a aderir a movimentos femininos em prol da paz e da implantação da República e à Maçonaria, tornando-se defensora dos direitos das mulheres, nomeadamente o de votar. Por toda a Europa, e não só, havia anos que as sufragistas reivindicavam ruidosamente este direito para as mulheres; e Nova Zelândia tornara-se o primeiro país a reconhecê-lo e a concedê-lo em 1893.
Combativa e detentora duma rara inteligência, aproveitou a recente mudança de regime, e a visibilidade mediática que as mulheres tinham conquistado nos últimos anos da Monarquia, para interpretar, como nós a leríamos hoje, a lei eleitoral que foi produzida pelo novo regime.
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Após a revolução através da qual foi implantado o regime republicano a 5 de Outubro de 1910, era de elaborar uma constituição que estabelecesse os fundamentos do novo regime político.
A Assembleia Nacional Constituinte foi eleita em sufrágio em que só houve eleições em cerca de metade dos círculos eleitorais e, no caso de não haver mais candidatos do que lugares a preencher em determinada circunscrição eleitoral, esses eram proclamados “eleitos” sem votação. Foi, pois, afastado o horizonte do sufrágio em todo o território nacional e ainda o sufrágio universal, tendo votado apenas os cidadãos alfabetizados e os chefes de família, maiores de 21 anos. Porém, trouxe uma inovação: foi um sufrágio onde, pela primeira vez, se utilizou o método da representação proporcional de Hondt na conversão dos votos em mandatos, embora apenas nas cidades de Lisboa e Porto.
Carolina Beatriz Ângelo ainda não era viúva há um ano, quando decidiu não abrir mão duma promessa feita pelos republicanos, quando eram oposição, e explorar a redação da lei eleitoral da autoria material de António José de Almeida (a autoria formal era do Governo Provisório), que pretendia manter o voto no masculino. Foi assim que entrou numa cruzada “quase solitária, ainda que amparada pela recentemente fundada Associação de Propaganda Feminista e pelo reconhecimento das suas pares, seguramente não mais do que umas dezenas”, como lembra o historiador João Esteves, autor de vários estudos sobre as primeiras feministas portuguesas e o papel das mulheres na I República, que insere nos seus trabalhos palavras de Carolina, proferidas em maio de 1911 ao jornal “O Tempo”: “Os meus ideais são mais avançados, mas acompanho a República como medida transitória”. Carolina estava ciente de que aquele era o momento de forjar um novo caminho para as mulheres do país.
A 25 de março de 1911, precisamente 11 dias depois publicação da lei eleitoral, declarou ao vespertino “A Capital” que não queria pedir ao governo “que introduza modificações na lei”, que as mulheres se propunham tomar parte no sufrágio eleitoral, mas sem que para isso fosse necessário alterar uma vírgula ao texto do normativo, pois o decreto, “conquanto não nos abra a porta, também nos não dá com ela na cara”. Por isso, dizia ela o Ministro do Interior:  
“Esse facto é que talvez o senhor não tenha notado e por isso se admira tanto. Pois leia a lei e verá. Encontram-se ali artigos e parágrafos para determinar quem pode ser eleitor e artigos e parágrafos para mostrar quem pode ser elegível; explica-se ali que tal e tal não pode votar porque é menor ou não tem folha corrida, e que tal e tal não pode ser eleito porque desempenha determinados cargos. O que, porém, ali se não diz é que tal e tal não pode ser eleito ou eleitor... pelo facto de ser mulher. Ora, se assim é, porque motivo hão de as mulheres ser excluídas da urna?”.
No dia 4 de abril, Carolina entregou um requerimento dirigido ao presidente da Comissão Recenseadora do 2.º Bairro de Lisboa para ser incluída no recenseamento em curso; o referido presidente negou e remeteu o pedido para o Ministro do Interior, António José de Almeida.
Sem a resposta que tanto esperava e desejava, fez entrar, a 24 de abril, um recurso no Tribunal da Boa-Hora, ciente de que o desfecho poderia ser desfavorável. De acordo com a prática, foi sorteada a distribuição do processo... que recaiu no juiz João Baptista de Castro, da 1.ª Vara Cível. E, 4 dias depois, a 28 de abril, Castro proferiu uma sentença histórica, favorável às pretensões de Carolina e de muitas outras feministas, já que ordenava que
“Ela fosse incluída no recenseamento em preparação, porque a lei eleitoral (...) estabelecia que eram eleitores elegíveis os portugueses maiores de vinte e um anos, residentes em territórios nacionais, soubessem ler e escrever e fossem chefes de família”.
Com efeito, Castro entendeu que, ao referir “cidadãos portugueses”, a lei abrangia homens e mulheres, “pois se o legislador tivesse intenção de as excluir tê-lo-ia manifestado de forma clara”.
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A decisão de Castro ultrapassou fronteiras, tendo Portugal sido notícia em quase toda a imprensa internacional. Por exemplo, o jornal inglês “The Globe” destacou o voto de Carolina e mencionou o distintivo dos 3 cravos brancos, símbolo utilizado pelas sufragistas portuguesas; e a publicação “Votes for Women” publicou parte da sentença na sua edição de 9 de junho.
A 28 de maio de 1911, Carolina exerceu o direito de voto na freguesia de São Jorge de Arroios,
Nesta vitória sobre o poder republicano, que quase a privara desse direito, fez-se acompanhar por Ana de Castro Osório, filha dileta do juiz Castro, que era também marido de uma paciente de Carolina, e acompanhara o luto da médica sufragista desde a morte do seu marido, Januário Gonçalves Barreto Duarte.
Carolina e Januário eram primos; ele tinha ficado órfão muito cedo e foi casapiano. Um ano mais velho do que a esposa, era médico como ela. Casaram em 1902, e ele morreu súbita e precoce a 23 de junho de 1910, sem ter tido o gosto de assistir à queda da Monarquia. Para contornar a dor da viuvez aos 32 anos, Carolina dedicou-se mais ao consultório e à atividade maçónica e republicana. Cada vez mais cansada, redigiu uma declaração em que mostrava o desejo ser enterrada civilmente, a qual seria tornada pública no ano seguinte, aquando das respetivas exéquias. Tomou ainda providências quanto ao futuro da filha de 8 anos, Maria Emília Ângelo Barreto, pedindo aos membros sobreviventes da família que se dispensassem do convencional luto e que não obrigassem a menina ao luto pela mãe. Morreu aos 33 anos, a 3 de outubro de 1911, pela 1 hora da madrugada, no regresso de uma reunião da Associação de Propaganda Feminista. Tendo-se sentido mal durante a viagem de elétrico, faleceu de congestão, duas horas depois, apesar de ter sido ainda assistida pelo Dr. Luís Baptista, como se pode ler num texto de Dulce Borges e João Esteves.
Por um triz, não assistiu ao 1.º aniversário da Implantação da República, mas foi pioneira na conquista do voto para as mulheres em Portugal e em toda a Europa Central e do Sul. Em 1911, a Finlândia era o único país europeu que reconhecia o sufrágio feminino. No Reino Unido, a fundadora do Movimento Sufragista, Emmeline Pankhurst, só viu o governo britânico fazer algumas concessões no direito de voto das mulheres em 1918, como forma de agradecer o empenhamento feminino no esforço de guerra.
Porém, em Portugal, os legisladores republicanos, que não queriam dar o voto às mulheres, foram apanhados pela Justiça. Para evitar que houvesse mais mulheres a votar, mudaram a lei em 1913, fazendo entrar a expressão “cidadãos portugueses do sexo masculino”.
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Carolina era apenas uma entre muitas outras mulheres que pretendiam o voto, acreditavam na governação e as promessas republicanas, sempre as palavras e promessas, foram, passado pouco tempo, colocadas à prova e contraditas pela prática política dos governantes.

Moderada, defendia o direito ao voto com “restrições, ao contrário da sua companheira de luta Maria Veleda, que queria o voto para todas as mulheres.
A bandeira içada no dia 5 de Outubro de 1910 na Câmara Municipal de Lisboa foi bordada por Carolina Beatriz Ângelo e por Adelaide Cabete.

- (Cf A Assembleia Nacional Constituinte http://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/APrimeiraRepublica5.aspx, aced a 5-10-2016; Soares, Manuela Goucha in Expresso on line, de 5-10-2016; Wikipédia, a enciclopédia livre https://pt.wikipedia.org/wiki/Carolina_Beatriz_%C3%82ngelo, aced a 5-10-2016
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Foi precisa a eclosão da revolução abrilina em 1974, para que a lei eleitoral consagrasse a partir de 1975, o direito de voto a todos os cidadãos e cidadãs maiores de 18 anos.

2016.10.05 – Louro de Carvalho

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