O Evangelho
do 30.º Domingo do Tempo Comum, Ano C (Lc 18,9-14) é uma parábola de Jesus a propósito de alguns que se
julgavam justos e desprezavam os demais. Vem na sequência da parábola do juiz
iníquo que não fazia justiça a uma pobre viúva, que é apresentada pelo Senhor
para ilustrar a necessidade de rezarmos sempre e sem desfalecer, ou seja, com
perseverança (vd Lc 11,1-8). A presente
parábola do fariseu e do publicano ilustra a necessidade de rezar com humildade.
“O fariseu,
de pé, rezava assim em seu íntimo”:
“Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens,
que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o
dízimo de tudo quanto possuo.” (Lc 18,11).
O publicano (ou cobrador de
impostos), mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu,
mas batia no peito, dizendo:
“Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador” (Lc 18,13).
Nesta
parábola, Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade epocal: o fariseu,
expressão máxima da piedade e da moralidade; e o publicano, que pela sua
profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.
Ambos vão ao templo para orar; e, na oração, cada um revela a sua vida e
sentimentos. De facto, é na oração que o ser humano exprime o que é mais íntimo
e mostra como se relaciona com os outros e com Deus.
O fariseu é-nos
apresentado como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma e cuja
segurança se estriba no cumprimento minucioso das normas. Na sua oração, o
fariseu não pede nada, mas dá graças a Deus e informa-O do seu legalismo: na
realidade, não é Deus o centro da sua existência, mas o seu “eu”. Dá graças
pela sua conduta alegadamente perfeita e exemplar. Ao ter-se por “justo”,
refere ante Deus um rol de pessoas indesejáveis, que censura e condena,
particularizando a acusação no miserável do publicano ali também a orar. O
grave risco do “farisaísmo” é trepar ao pedestal da “perfeição” e do
“legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; e, com isso,
cai no orgulho, tornando-se incapaz de se converter a Deus no seu íntimo. Na
sua oração, o fariseu considera-se “justo” e julga agradar a Deus com as observâncias
e práticas legais. Não adverte que não é nada elegante colocar-se ante Deus com
as credenciais de “justo”, esquecendo-se de que só Deus pode justificar o ser
humano e desconhecendo que a autoglorificação impede a humanização. Quer entrar
no sagrado sem deixar que o sagrado penetre nele. Petrifica-se no legalismo e
ritualismo.
Na sua
cegueira, não se dá conta de que é pecador, dependente da misericórdia de Deus.
Não reconhecendo a sua realidade pobre e limitada afasta da sua oração o sincero
pedido de perdão. Incapacitado de olhar para si próprio, encobre com o véu da
hipocrisia os próprios pecados, fazendo de conta que não existem. Incensurável,
respeitador e cumpridor das leis, porém, cheio de si e da sua autossuficiência,
voltou para casa com um pecado a mais. Como consequência persiste na
duplicidade de vida: a fachada externa perfeita a esconder um interior insensível
e frio, incapaz de perceber a própria fragilidade, resistente à mudança.
Na sua
autossuficiência e com sua blasfema oração, o fariseu está de pé, para dar
espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. Pensa que pode “ficar de pé”
ante Deus a estabelecer o confronto sem problemas, como de igual para igual. O
fariseu não suplica nem tem necessidade de ouvir Deus nem ninguém. Eliminou as
distâncias com as suas palavras e ilude-se pensando ter uma linha direta com o
Altíssimo. Deus é simples pretexto para a sua autoafirmação. Na prática, a oração farisaica significa
submeter Deus a si mesmo, cobrando a remuneração pelas boas ações.
Agradece porque não tem vícios, e não por se sentir amado por Deus. O seu
louvor e agradecimento é mero pretexto para se louvar a si próprio, inflar o
próprio ego; na sua oração, Deus não
tem o lugar que Lhe é devido; a oração é monólogo vazio e presunçoso de quem
“celebra” o seu “eu” e os seus méritos. E, porque fala só consigo mesmo, encontra-se
sozinho com os méritos e pretensões. O seu monólogo é palavreado vazio,
exibicionismo enganoso dum “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo.
Tendo méritos, nada deve a Deus; Deus é quem lhe deve. A enumeração das boas
obras implica a pretensão de recompensa. Acha que impressiona Deus com as suas
qualidades, sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar do coração
o orgulho e o desprezo pelos outros.
Outro aspeto
pertinente da parábola é que o fariseu,
como se considera perfeito e não vê nenhuma falha em si, se acha
diferente e melhor que todos. “Ó Deus,
dou-te graças porque não sou como o resto dos homens” (Lc 11,11). Ao mesmo tempo que se autoelogia, critica e
despreza os demais. Não descobre o projeto divino sobre si, basta-lhe saber que
é melhor que os outros. O certo é que os grandes “observantes” são os maiores
desprezadores, pois não se interessam pelas pessoas e menosprezam que não pense
e viva como eles. A agravante é que quem assim vive não se apercebe do que faz,
porque o faz de jeito tão dissimulado, sob formas tão “espirituais” e com
argumentos tão “religiosos” que nem ele mesmo tem consciência das agressões com
que atinge as pessoas que não se encaixem no seu modo de ser. Não se pode discutir
com um fariseu, já que ele tem sempre razão. Ademais, é um hipócrita, porque
substitui a Vontade de Deus por leis humanas. Na prática, são pessoas que mostram
ser ateus, porque, na realidade, o que lhes importa é sua própria honra e não a
honra de Deus. O que lhes interessa é brilhar diante dos homens; a única coisa
que os preocupa é sua boa imagem: querem ser vistos, apreciados, louvados. Não
têm outro Deus a não ser eles mesmos. O que realmente envenena a vida destas pessoas não é a vaidade ou a
soberba, mas o ateísmo real e prático.
Jesus
destrói o conceito de “autojustificação” baseada no cumprimento da lei quando,
no publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, mas sente
a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente da sua indigência e fragilidade,
o publicano entrega-se a Deus sem reservas, confia-lhe o futuro e espera na Sua
misericórdia. A misericórdia é a
resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a
força capaz de o deter no processo de autodivinização farisaica. O publicano
não tinha esperanças: sentindo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e
dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da
grandeza e transcendência de Deus, sente a necessidade instintiva de se
retirar, se deter, pedindo desculpa por ousar entrar no templo. Nada tendo para
apresentar a Deus, de nada se orgulha e nada exige. Resta-lhe a pobreza da
oração dos descartados e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e
humildes.
O “fariseu”
que todos aninhamos no nosso interior realiza o seu trabalho silencioso com uma
eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina
e petrifica a nossa compaixão na relação com os outros. O publicano que devemos
ser revela-nos que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), no fundo de nós, o lugar da oração. E quanto mais
baixo for o ponto de partida, tanto mais alto subiremos. A salvação a esperar não é fruto
do nosso trabalho e penitência, da nossa prática legal e da nossa virtude; é dom de Deus, divino presente do seu
coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.
***
Quem eram os Fariseus? A origem deste movimento tem como
ponto de partida a classe trabalhadora. O seu aparecimento provém dos
“piedosos” que pertenciam à luta armada de Judas Macabeu. Provinham, na época
de Jesus, das camadas sociais dos artesãos, pequenos comerciantes e gente
pertencente à classe média. Eram nacionalistas e odiavam os estrangeiros, mas
no tempo de Jesus eram moderados e aceitavam a política da convivência imposta
pelos romanos; e, na Judeia, faziam a política dos sacerdotes e das classes
ricas de Jerusalém.
Conseguiam
manipular o povo e exercer autoridade sobre ele. Aparentemente apresentavam-se
como o partido das massas populares contra a aristocracia. O povo respeitava-os,
pois não tinha alternativa, e eles possuíam peso político embora sem exercerem
o poder real.
Ideologicamente os fariseus alimentavam o ideal de expulsão dos estrangeiros, que
queriam acabar com a religião e com a cultura judaica; organizaram as Sinagogas
depois da destruição do Templo (70 DC) e passaram a
ter grande poder; por causa da sua conduta moral eram respeitados pelo povo;
conheciam e estudavam a lei e as prescrições de Moisés.
Doutrinalmente
acreditavam na ressurreição; tinham a crença de que Deus interviria e salvaria
Israel; esperavam o Messias que expulsaria os Romanos; e preparavam o dia de
Javé com orações e jejuns.
Quanto
à prática religiosa, consideravam-se, na época de Jesus, os donos da consciência do povo; e,
porque, ao debaterem com Jesus, eram recorrentemente reduzidos ao silêncio,
queriam a morte de Jesus – por exemplo: após, o incidente na sinagoga de
Nazaré, queriam lançá-Lo no precipício (cf Lc 4,29-30); praticavam uma religião individualista; centralizavam
a prática religiosa na convicção de que a salvação é individual, no quadro duma
religião extremamente fechada. Quanto à sua prática religiosa e social, Jesus
critica-os quando ensina os discípulos, em relação à esmola (“Quando, deres
esmola, não permitas que toquem a trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens” –
Mt 6,2); em
relação à oração (“Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de
rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos
homens” – Mt 6,5); e, em relação ao jejum (“Quando jejuardes, não mostreis um ar
sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam
que eles jejuam” – Mt, 6,16).
No
âmbito da obediência
cega e escrupulosa à lei, conheciam e queriam que todos praticassem mais de 600
leis minuciosas. Voltavam-se mais para o outro mundo que para a realidade.
Desprezavam os que não praticassem essas leis. Mais: defendiam a estrutura
opressiva do Templo e o Sacerdócio; e recomendavam o pagamento dos dízimos e de
múltiplas taxas.
***
Jesus condena os fariseus hipócritas. Na Judeia, aceita o convite para
tomar uma refeição com um fariseu (cf Lc 11,37-38; 14,1-14). Antes de comer, os fariseus seguem o ritual de lavar as
mãos até aos cotovelos, coisa que Jesus não faz (cf Mt 15,1-2). Lavar assim as mãos não é uma violação da Lei de Deus,
mas não é algo que Deus exija. O fariseu ficou surpreendido por Jesus não
seguir a tradição. E, Jesus percebendo, diz:
“Vós,
fariseus, limpais por fora o copo e o prato, mas por dentro estais cheios de
ganância e de maldade. Insensatos! Aquele que fez o exterior também fez o
interior, não fez?” (cf Lc 11,39-40).
Ora, lavar as mãos antes de comer não é o problema, mas é-o a hipocrisia
religiosa. Os fariseus e outros que seguem o ritual de lavar as mãos não
purificam o coração da malícia. Por isso, Jesus aconselha-os: “Dai aos pobres do que está no íntimo, e
então tudo a respeito de vós ficará limpo” (Lc 11,41). Assim, a ação de dar deve ser motivada por um coração
amoroso, não pelo desejo de impressionar outros por fingir ser justo. Jesus não
diz que aqueles homens não praticam o dar, mas observa:
“Vós dais o
dízimo da hortelã, da arruda e de todas as outras ervas, mas desconsiderais a
justiça e o amor a Deus! Vós tínheis a obrigação de fazer estas coisas, mas sem
desconsiderar as outras.” (Lc 11,42).
A Lei de Deus exige o pagamento do dízimo (a décima parte) da colheita (Dt 14,22), que inclui a hortelã e a arruda, ervas ou plantas usadas como tempero.
Os fariseus pagam rigorosamente o décimo dessas ervas. Mas os requisitos
mais importantes da Lei, como praticar a justiça e ser modestos perante Deus? (Mq 6,8). E Jesus continua:
“Ai de vós,
fariseus, porque procurais os primeiros assentos nas sinagogas e os
cumprimentos nas praças públicas! Ai de vós, porque sois como as sepulturas que
não são facilmente vistas e os homens andam sobre elas sem saber!” (Lc
11,43-44).
As pessoas podem tropeçar nelas e ficam ritualmente impuras. Jesus disse
isto para deixar claro que a impureza dos fariseus não é evidente: são
sepulcros caiados (cf Mt
23,27).
Um homem perito na Lei de Deus reclama: “Mestre, dizendo essas coisas, também nos insultas a nós” (Lc 11,45). Mas, como precisavam de entender que não estavam a
ajudar as pessoas, Jesus avisa:
“Ai de vós também, peritos na Lei, porque
pondes sobre os homens cargas difíceis de levar, mas vós mesmos não tocais nessas
cargas nem com um só dedo! Ai de vós, porque construís os túmulos dos profetas,
mas os seus antepassados os mataram!” (Lc 11,45-47).
As cargas de que Jesus falava eram as tradições orais e a interpretação
da Lei pelos fariseus. Aqueles homens não facilitavam a vida das pessoas.
Insistiam que todos deviam seguir as tradições, que se tornam cargas pesadas
para o povo. Os antepassados mataram os profetas de Deus, desde Abel. Agora,
estes constroem sepulturas para os profetas, fazendo parecer que os honram
quando, na verdade, imitam a atitude e as ações dos antepassados. Querem até
mesmo matar o principal Profeta de Deus. Jesus diz que Deus vai ajustar contas
com essa geração. E isso iria acontecer uns 38 anos depois, no ano 70. Então
Jesus invectiva:
“Ai de vós,
peritos na Lei, porque vos apoderastes da chave do conhecimento. Vós mesmos não
entrais e tentais impedir os que estão a entrar!” (Lc 11,52).
Estes homens, que deviam ensinar o significado da Palavra de Deus, tiravam
a oportunidade de as pessoas a conhecerem e entenderem.
Os fariseus e os escribas ficam furiosos com as invectivas de Jesus. E,
enquanto Jesus sai, opõem-se-lhe e enchem-no de perguntas. Mas não lho fazem
por quererem aprender. Querem, antes, induzi-Lo a dizer algo que lhes dê motivo
para o prenderem (cf Lc
11,53).
Quanto farisaísmo não estará nas nossas vidas e quanto défice de resposta
à justificação pela fé em Cristo!
2016.10.21 – Louro de
Carvalho
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