O Presidente da República devolveu, sem promulgação (forma eufemística de dizer que “vetou politicamente”), o diploma do Governo que pretendia
regular a troca automática de informações financeiras no domínio da fiscalidade.
Diz-se apressadamente, embora com verdade, que se trata da primeira vez
que o Presidente exerceu o direto de veto político a um decreto do Governo,
que, se promulgado, seria um decreto-lei, cuja apreciação o Parlamento poderia
suscitar, depois de entrar em vigor. E compara-se com a postura assumida já por
duas vezes em que Marcelo opôs o veto político a decreto da Assembleia da
República, que, uma vez promulgado, seria lei. A lei da gestação por
substituição (vulgo: das barrigas de aluguer) foi vetada, mas a
Assembleia da República confirmou-a, embora com a observância de alguns dos
reparos do Presidente. Já a lei que regulava a concessão dos transportes
públicos do Porto não recebeu confirmação e não sei se o Parlamento vai ou não
legislar sobre a matéria, embora o PS tenha que iria voltar à carga.
Os comentários de muitos vão no sentido de o presidente Marcelo ter
aberto as hostilidades com o Governo de Costa neste momento. Não o creio. Vetar
politicamente um diploma do Parlamento ou um diploma do Governo, dados os termos
em que Marcelo o tem feito, não tem significado falta de solidariedade
institucional para com o Parlamento ou para com o Governo. Marcelo viu-se voluntariamente
condenado a aceitar da melhor forma possível a maioria arquitetada no Parlamento
a que o seu antecessor se resignou não totalmente e com muita dificuldade. Por outro
lado, apesar das simpatias, por vezes, avinagradas com o Primeiro-Ministro, a
solução governativa encontrada pelo Parlamento não é solução que encante o Presidente.
Porém, se Mário Soares foi capaz de coabitar com a governança de Cavaco até à
rebelde organização do Congresso que ia encavacando o país, se Jorge Sampaio conviveu
com Barroso até que este se evadiu para a presidência da Comissão Europeia e
aceitou passar um calvário de oito meses, bem mal digeridos mutuamente, com
Santana Lopes e se Cavaco foi capaz da cooperação institucional com Sócrates –
sempre em nome do respeito pelas maiorias estabelecidas na Assembleia da
República, também Marcelo é capaz de suportar com estoicidade e ataraxia a
geringonça e trocar galhardetes de simpatia, ora sincera, ora artificiosa, com
o Governo das trapalhadas, que vai aguentando, com a habilidade de Costa e a
muita sorte do tempo, o tripé das promessas eleitorais, compromisso com a
Europa e protoacordos com os parceiros de maioria.
Mas o Presidente não quer o Governo nem a maioria que o apoia. Todavia,
como o partido de que é originário está órfão de pais vivos e entregue a líder
que ainda não reencontrou o cortejo de acesso ao poder ou o sítio certo donde
pode pregar oposição e gizar alternativas, a alternativa a gosto não surge com
a prontidão requerida. E Marcelo gere os tempos. Definiu um horizonte para cá
de cuja linha não se toleram crises políticas: as autárquicas de 2012 – meia legislatura.
Depois, logo se vê. Marques Mendes dizia que o Presidente nacionalizou as
eleições locais, a meu ver mal, pois, um acérrimo defensor institucional da Constituição
não a pode subverter com declarações, mesmo que justificáveis. Mas já Maquiavel,
segundo se diz (eu não li assim O Príncipe), advogava que os fins justificam os meios. E Marcelo
quer um partido popular democrático no poder e não o partido de Costa, pois
Costa não é Guterres nem Tó Zé Seguro; é Costa! E o Presidente tem a mesma atitude
para com o Parlamento e para com o Governo. Explica por antecipação o seu
pensamento sobre toda e qualquer matéria; volta atrás quando lhe parece ter
pisado o risco, mas o que foi dito ficou dito; de algum modo, pronuncia-se
antecipadamente sobre o que pensa duma lei ou decreto em preparação, embora, se
questionado, assegure que a decisão final será tomada a seu tempo; explica o porquê
do veto – é obrigado a isso nos termos constitucionais, quando se trata de
diplomas do Parlamento, e pelas normas da cortesia, quando se trata de diplomas
do Governo – e muitas vezes explica porque promulga, deixando no ar a dúvida se
fez bem ou se fez mal. É que, ao explicar demais, explica menos (Nihil probat quod nimis probat). Sampaio tinha dúvidas, mas
dormia com elas; Marcelo tem dúvidas e deixa-as a pairar porque não dorme.
***
Um diploma do Governo que foi fustigado pelo veto presidencial cai automaticamente,
não é passível de confirmação. Ora, o diploma do Governo que pretendia regular
a troca automática de informações financeiras no domínio da fiscalidade “é fundado em autorização legislativa concedida pela Lei
do Orçamento do Estado para 2016”, diz Marcelo na carta enviada ao Primeiro-Ministro.
Sendo assim, o veto configura genericamente uma atitude política contra o Parlamento
e contra a maioria que o constitui. Não tem é as consequências constitucionalmente
previstas; e esta é a força da fraqueza do Presidente ante PS, BE, PCP e PEV.
O Presidente
até reconhece que o diploma é indiscutível,
“na parte em que cumpre obrigações resultantes de transposição de regras
europeias” (Diretiva 2014/107/UE, do Conselho, de 9 de dezembro, a aplicar a partir de
1 de janeiro de 2106 pelos Estados-Membros) “ou do
acordo com os Estados Unidos da América” (Foreign Account Tax Compliance Act) e “corresponde a fundamentais exigências de maior
transparência fiscal transfronteiriça, defendidas pela OCDE, visando controlar
quem tenha contas bancárias em Estados diversos daqueles em que reside ou
declara residência fiscal”. Porém, entende que o diploma ultrapassa aquela diretiva
e o acordo com os EUA, aplicando o regime de comunicação automática às contas
em Portugal de portugueses e outros residentes fiscais no País, embora “não
tenham residência fiscal nem contas bancárias no estrangeiro”.
Depois,
limita a comunicação automática “a saldos de mais de 50.000 euros”, sem exigir,
qualquer invocação, pela ATA (Autoridade Tributária e Aduaneira), de
“Indício de prática de crime fiscal, omissão ou inveracidade ao Fisco ou
acréscimo não justificado de património”.
E, escudado em
várias objeções, colocadas por variados quadrantes políticos e institucionais à
2.ª parte do diploma, aduz: o alargamento a portugueses ou outros residentes não
é imposto por nenhum compromisso externo; existem muitas situações em que a ATA
pode aceder a informação abrangida pelo sigilo bancário, sem necessidade de
autorização judicial; a CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) questionou a sua conformidade com o princípio
constitucional da proporcionalidade, “ou seja, o uso de meios excessivos – por
falta de regras especificadoras de indícios ou riscos justificativos” – no
sacrifício de direitos fundamentais, num contexto em que já existem “outros
meios de atuação da ATA, sem necessidade de decisão de juiz”; e o regime
instituído para residentes em Portugal, sem residência fiscal ou qualquer conta
bancária no estrangeiro, é “mais irrestrito do que o vigente na maioria dos Estados-membros
da UE”. Além disso, afirma que tal inovação legislativa “não foi precedida do
indispensável e aprofundado debate público, exigido por uma como que presunção
de culpabilidade de infração fiscal”.
***
Pensava-se
que estes seriam argumentos de peso. Porém, inconsequente e displicentemente
Marcelo não os segue, pois, “a decisão tomada quanto a este decreto baseia-se,
antes do mais, na sua patente inoportunidade política”, ou seja num tempo em
que se vivem “dois problemas cruciais, entre si ligados”, que “dominam a
situação financeira e económica nacional”: o processo em curso da “muito
sensível consolidação do nosso sistema bancário”; e “o da confiança dos
portugueses, depositantes, aforradores e investidores”, essencial para o
difícil arranque do investimento, sem o qual não haverá nem crescimento e
emprego, nem sustentação para a estabilização financeira duradoura”.
Ora não me
parece que um saldo de 50 mil euros seja tão irrisório para o efeito como
parece fazer crer, mas, se o era, que usasse da sua influência junto de Costa
nas entrevistas de quinta-feira, em que pode dar um murro na mesa, já que em
relação ao Parlamento só lhe cabe agir através de mensagens escritas ou em
discursos protocolares (pouquíssimos no Parlamento). E, se o fator externo não é determinante como ponto
de imposição, pergunto-me por que motivo andamos sempre atrelados a diretivas
da UE e acordos internacionais que enformam a nossa legislação, renunciando a
legislar à nossa moda.
A devassa fiscal
sem mandato judicial é má e inética para os contribuintes e depositantes, mesmo
para os contemplados nos instrumentos internacionais citados, como é má e violadora
das normas da proteção dos pessoais e dos direito à privacidade a existente
possibilidade de devassa à vida do contribuinte por praticamente qualquer funcionário
da ATA, sem que tenha havido autorização expressa. Mas para quando fica o
combate à corrupção, à evasão fiscal e ao branqueamento de capitais. Por que é que
o banco me inquire quando preciso de transferir mais que 5 mil euros de conta a
prazo para conta à ordem, eventualmente para pintar a casa?
É certo que o
princípio constitucional da proporcionalidade é relevante, mas o da igualdade não
o é menos?
Quanto ao debate prévio, o Governo antecipou
no texto do diploma: consultas junto
do Banco de Portugal, da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, da
Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, da Associação
Portuguesa de Bancos, da Associação Portuguesa de Seguradores e da Associação
Portuguesa de Fundos de Investimentos, Pensões e Patrimónios e a AEM (Associação de
Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado); e o acolhimento das recomendações específicas de alteração do texto
formuladas pela CNPD.
Mais: o Governo
visava cumprir os compromissos internacionais do Estado na matéria e reforçar os
mecanismos de combate à fraude e evasão fiscal, de natureza nacional e
transfronteiriça, ao branqueamento de capitais e ao financiamento da
criminalidade organizada e do terrorismo.
Finalmente,
o Presidente argumenta com a oportunidade política. Não serve qualquer tempo
para combater o crime? Ou, de outro modo, quando é que o Presidente vê
chegaremos tempos da indiscutível saúde financeira do país, mormente a bancária,
e a confiança dos investidores e depositantes? Porque não
solicitou a fiscalização prévia da constitucionalidade do diploma? Porque passaria,
dados antecedentes da devassa consentida e legitimada?
A política
de Belém continua a ser a política de Belém: o Presidente tem de mostrar que
existe, não lhe bastando a hiperverbalidade nem a hiperlocomoção nem a simpatia
popular!
2016.10.01 – Louro de Carvalho
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