domingo, 2 de outubro de 2016

A (in)transparência da ONU

O embaixador Seixas da Costa disse hoje, dia 2 de outubro, ao JN on line, que a vice-presidente da Comissão Europeia Kristalina Georgieva vai amanhã, dia 3, defender a sua candidatura à liderança da ONU na Assembleia Geral (AG), mas a decisão caberá aos EUA e à Rússia.
Está assim na reta final o percurso da escolha do sucessor de Ban Ki-moon, que entrará na sua fase decisiva no próximo dia 5, quando Georgieva for ouvida pela 1.ª vez no Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. E a AG voltará a pronunciar-se sobre o próximo secretário-geral quando houver apenas um candidato proposto pelo CS – sublinha o antigo embaixador português junto das Nações Unidas, que refere que “nunca haverá impasses nesta decisão”, que será praticamente do CS, sendo que a AG somente cumprirá a formalidade da escolha. Se a AG, por hipótese, não escolhesse o candidato proposto pelo CS, sobre este órgão recairia o ónus de encontrar e apresentar um outro candidato único.
Seixas da Costa fala benignamente em CS para “utilizar uma fórmula muito normativa, porque na realidade, quem decide é um acordo entre os Estados Unidos e a Rússia”, explicitando taxativamente que “sobre isso, não há a mais pequena dúvida”. Refere que no passado foi sempre assim: “o candidato escolhido é sempre alguém que o ocidente propõe e a quem a Rússia diz que sim”.
Seixas da Costa, que foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus, segundo o qual “les jeux sont faits”, como costumam dizer os franceses, insiste:
“A AG terá formalmente a última palavra, mas será só sobre um candidato, que é o que o CS vai produzir. E não há nenhuma dúvida de que o CS acabará por produzir um candidato, que, neste momento, e olhando para os equilíbrios em cima da mesa, será Georgieva ou Guterres.”.
Porém, ainda que lançados, os dados não param de rolar. Ao apresentar-se ao CS, no dia 5, a candidata do Governo Búlgaro, da alemã Angela Merkel e do português Mário David, da União Europeia, vai ser sujeita aos mesmos votos que qualquer um dos outros candidatos. Terá de contar com um mínimo de 9 votos (dois terços) no conjunto global dos 15 membros do CS.
O mencionado diplomata admite que poderá não os ter, mas seguramente que esta candidatura tardia joga uma cartada que deve dispor de algumas garantias ou, pelo menos, da convicção da certeza da “não-oposição de princípio de qualquer Estado ou membro permanente e, em particular, da Rússia”, se não mesmo de uma concertação explícita entre EUA e Rússia.
Alguns perguntam por que razão Georgieva solicitou um mês e só um mês de licença sem vencimento na Comissão Europeia. A isto alvitram uns que ela própria não acredita que vencerá a corrida. Porém, outros, mais sabidos, opinam que a Rússia, provavelmente, deve ter dado sinal de que deixaria o processo avançar no quadro do CS com Georgieva lá dentro sem, pelo menos no início, lhe opor o veto. E Seixas da Costa sublinha que é difícil conceber que “esta candidatura se tivesse feito num pressuposto da posição que os russos assumiram ao colocarem reticências ao modo como [a chanceler alemã] Angela Merkel, à margem da reunião do G20 [em Hangzhou, na China, em 4 e 5 de setembro], tentou promover a candidatura de Georgieva” (vd JN on line).
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As reações ao aparecimento tardio da candidatura não se fizeram esperar. Os observadores nem deram conta de que se trata de uma candidatura de substituição, pois, esta surge na sequência da desistência da também búlgara Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO (Organização da ONU para a Educação, Ciência e Cultura).
Seixas da Costa pensa que “questão a saber é em que medida uma candidata que surge de um conjunto de países que tem atrás de si nos últimos meses um histórico de tensões com a Rússia pode, ao mesmo tempo, satisfazer a Rússia”.
O rival até agora mais bem colocado, o português António Guterres, mostrou não querer abordar a troca de Irina Bokova por Kristalina Georgieva. Abordado pelos jornalistas durante uma homenagem póstuma à antiga presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, Maria Barroso, que decorreu, na manhã do dia 28 de setembro pp., no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, o antigo primeiro-ministro e ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os refugiados fez sinal de que não tencionava falar na ocasião. E, questionado diretamente à saída sobre a candidatura de Kristalina Georgieva, Guterres respondeu, em inglês: “No comments”.
Numa reação à nova candidatura nesta ulterior fase do processo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva disse diplomaticamente ver “com serenidade” a entrada na corrida de Kristalina Georgieva, mas salientou, por contraste, a altura e a forma como a candidatura de Guterres foi apresentada, declarando à Lusa:
“Apresentámos a candidatura do engenheiro António Guterres no fim do mês de fevereiro. Fizemo-lo a tempo, com toda a transparência e de forma a que António Guterres fosse sujeito a todas as provas e passos que o processo de seleção a secretário-geral das Nações Unidas hoje exige.”.
O Presidente da República considerou, no passado dia 1, que a eleição do próximo secretário-geral das Nações Unidas é “uma situação importante para o mundo”, além de ser também importante para Portugal por causa da candidatura de Guterres. Marcelo fez estas declarações quando foi questionado se, ao ter chamado o assunto da eleição do secretário-geral das Nações Unidas para o Conselho de Estado, pretendia que tivesse reflexos internacionais.
Lembrando que, na reunião de 29 de setembro do Conselho de Estado, o órgão de consulta política do Presidente da República, o tema era a análise da situação política, económica e financeira internacional e os reflexos na economia portuguesa, Rebelo de Sousa considerou “natural” que a escolha do próximo secretário-geral da ONU também tivesse sido abordada, vincando que seria “muito estranho” que, ao analisar o mundo, não se falasse duma questão que é “particularmente importante”, pois, segundo justificou:
“Não é uma situação qualquer, é uma situação importante para o mundo e é uma situação em que existe uma candidatura portuguesa apoiada por Portugal, por todos os partidos políticos portugueses e por todos os órgãos de soberania”.
Quanto ao aparecimento da novel candidatura, Marcelo obviamente estranhou; e a referência à Maratona, aduzindo a metáfora da entrada da candidata nos últimos cem metros e vencer a corrida, o que faz supor que Marcelo sente que terá perdido o latim quando no discurso ante a AG das Nações Unidas tentou um perfil de secretário-geral à maneira de Ghandi ou de Mandela encaixável no candidato português.
Por seu turno, o Conselho de Estado, em que esteve presente também o conselheiro nomeado pelo Presidente da República, saudou a candidatura de António Guterres a secretário-geral das Nações Unidas, considerando que é, “a todos os títulos, uma candidatura exemplar” e salientando que cumpriu “todas as etapas do processo”.
Depois, há várias reações na imprensa: umas verberam o facto; outras consideram-na normal.
Os portugueses que a todo o custo queriam ver um português eleito para o cargo ficaram seriamente enervados e enraivecidos pelo facto de Mário David, um outro português, ter apadrinhado a candidatura da Bulgária.
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Não é pelo facto de ser português que Guterres merece ir a secretário-geral Nações Unidas. Nem todos os portugueses deixaram bem colocado o país no desempenho internacional. Por outro lado, também não pode ser arredado por ser português.
Ora, tanto quanto se sabe, Guterres tem um passado de trabalho internacional pelas causas em que se empenha a ONU e para isso mandatado: foi, durante 10 anos, Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), cargo a que chegou por concurso e prestação de provas, não por mero convite, como aconteceu com Barroso para a UE. No exercício do cargo, levou com todas as cambiantes da crise, mesmo as decorrentes do inêxito da invasão militar de Terras do Médio Oriente por forças ocidentais ou do apoio político-militar às pseudorrevoluções na Tunísia, no Egito, em Chipre, na Ucrânia e na Síria. Nem vale a pena aduzir a eventual insuficiência da gestão dos refugiados. Por mim, gostaria de saber como é gerir bem o drama dos refugiados! Diz-se que não foi bom primeiro-ministro. Todavia pode dizer-se que houve outros bem piores, talvez até tenha sido dos menos maus, sendo verdade que desanuviou o espectro político do país do ar pesado de 10 anos que o antecessor deixou, sem diálogo e concertação. Alguns até o consideraram como uma espécie de Marcelo Caetano de Cavaco.
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Quanto à ONU, digo que é muito melhor não ter regras do que as ter e proclamar e fazer gato-sapato delas. Quis romper com o passado e promoveu audições dos candidatos na AG. O CS procedeu a cinco votações (Para quê cinco?). Dos 12 candidatos iniciais, três já renunciaram, pelo que com a entrada de Kristalina Georgieva são 10 os aspirantes ao cargo.
Guterres venceu as 5 votações por escrutínio secreto obtendo pelo menos dois terços dos votos. Seguir-se-á uma nova votação em que os votos dos 5 membros permanentes serão notados pela cor. Só a aí se verá a posição dos 5 membros permanentes do CS (Rússia, EUA, China, França, Reino Unido). Além disso, o mais votado, mesmo que tenha a maioria de dois terços dos votos pode ser vetado por qualquer um dos 5 membros permanentes do CS.
Já não falta muito para se saber se Georgieva avançou com as garantias de que nenhum membro do Conselho de Segurança a vetará. Quanto a António Guterres, o diplomata português acima mencionado crê que “será difícil para um país como a França ou como o Reino Unido, ou mesmo como os Estados Unidos, darem um voto negativo”, que o afaste. Porém, a grande incógnita é a posição da China ou da Rússia. E veremos dentro de pouco tempo qual é o candidato que mais convém à Rússia, dentro do leque daqueles que lhe são apresentados pelo ocidente. Quando aos membros não permanentes do CS, vais ser complicado perceber como vão votar. Já no passado várias mudanças de posição houve, não se podendo, pois, excluir em absoluto que haja até ao final algumas mudanças de posição.
Em democracia plural, não faz sentido o veto de quem quer que seja num órgão colegial; e o concurso não pode ser viciado. Abriu-se o período de apresentação de candidaturas, cujo termo não admite novas entradas, a menos que o número seja insuficiente, podendo prorrogar-se o prazo. Só depois se fazem audições e se vota; e respeitam-se regras e resultados. Não é assim?

2016.01.02 – Louro de Carvalho

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