Refiro-me
à tradução inserida na tradução, por Frederico Lourenço, da Bíblia – volume I Novo Testamento – os quatro evangelhos (Mt
6,9-13; e Lc 11,2-4).
Recorde-se que esta oração é ensinada e recomendada por Jesus como contraponto
à tentação de tagarelice da parte dos pagãos, que pensam que serão ouvidos
pelos deuses em razão da força e da quantidade de palavras que utilizam quando
rezam. Ora, como os discípulos sabem que o Pai sabe muito bem aquilo de que
eles necessitam, não têm de multiplicar as palavras, mas alimentar a relação
com Deus e comprometer-se à consolidação e melhoria da relação com os irmãos.
Por isso, Jesus disse:
Rezai
então assim:
“Pai
nosso nos céus,
seja
santificado o Teu nome.
Venha
o Teu reino,
faça-se
a Tua vontade;
assim
como no céu, também assim na terra.
Dá-nos
já hoje o nosso pão de amanhã.
E
perdoa-nos as nossas dívidas,
tal
como nós perdoamos aos nossos devedores;
e
não nos leves para sermos postos à prova,
mas
livra-nos do iníquo”.
Mt 6,9-13
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Quando
orardes dizei:
“Pai,
seja
santificado o Teu nome.
Venha
o Teu reino.
Dá-nos
cada dia o nosso pão de amanhã.
E
perdoa os nossos erros,
Pois também nós perdoamos a quem nos está a dever.
E
não leves para a tentação.
Lc 11, 2-4
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Antes
de mais, pergunto-me porque não nos habituamos a tratar Deus por “tu” como
fazem os gregos e os romanos. Depois, nem O tratamos por “Você”, “Vossemecê, “o
Senhor”, “Vossa Excelência”, “Vossa Senhoria” e o verbo e pronomes na terceira
pessoa gramatical do singular, mas por “vós” e o verbo na segunda pessoa do
plural. É ou não verdade que o tratamento por “tu” em português europeu é
expressão duma relação de simplicidade amical, familiar e íntima? Será que Deus
deve ser tratado à distância e não como íntimo? Se hoje filhos tratam os pais por
“tu”, como os netos aos avós e os sobrinhos aos tios, porque não tratamos Deus
como Ele quer?
Os
nossos liturgistas perderam uma bela oportunidade aquando da tradução dos
livros litúrgicos. Caiu mal a resposta à saudação “O Senhor esteja convosco”
com o segmento “E contigo também”. E, em vez de terem feiro a catequização do
tratamento por “tu” ao celebrante porque também era assim que nos devíamos
dirigir a Deus – dirigiriam a Deus as orações na segunda pessoa gramatical do
singular e repunham a resposta “E com o teu espírito”. Não. Mantiveram as
orações na segunda pessoa do plural e as respostas ao padre passaram a ser
evasivas: “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”, “Ele está no
meio de nós”; e “O amor de Cristo nos uniu” – tudo verdade, mas não a
propósito. Bem senti estranho um padre que se me dirigia com o “vós”, pois, não
tinha à vontade para me “tutuar” nem distância para me tratar por senhoria.
Por
isso, me apraz dizer que Lourenço aqui apostou bem. Aliás, também a tradução da
Nova Bíblia dos Capuchinhos,
coordenada por Frei Herculano Alves, em 1998, e a Bíblia para todos, edição literária (Temas
e Debates e Círculo de Leitores, 2009)
vão nesse sentido.
Lourenço
faz advertências prévias em relação ao Pai Nosso. A partir de proseúkhesthe (rezai) inicial, refere que, ao que
tudo indica, é imperativo presente (embora a forma seja idêntica
à da 2.ª pessoa do plural do presente do indicativo do verbo proseúkhomai). Explica o tradutor:
“Da
oração que se segue, o chamado ‘Pai Nosso’, encontramos outra versão em Lucas (11:2-4),
bastante mais sintética (a de Mateus conta 58 palavras em grego; a de Lucas, 38).
De fundamental importância nesta oração são as formas de imperativo. O grego
distingue entre um imperativo de ação continuada (o imperativo presente) e o
imperativo de ação imediata (o imperativo aoristo). Todos os imperativos do ‘Pai
Nosso’ de Mateus são aoristos (portanto, de ação imediata), à exceção do
imperativo ‘rezai’, que é presente – o que confere ao seu sentido uma ideia de intemporalidade:
‘rezai assim sempre, doravante’.”.
***
De
imediato, veem-se outras diferenças: a omissão do verbo a seguir a Pai nosso e a omissão do segmento
português “a nós” depois de “venha”.
Como
já opinei em tempos, há frases nominais em que a omissão do verbo é vantajosa.
Assim, neste caso, o vocativo “Pai nosso nos céus” tem mais força entitativa e
arquetípica. O Pai cujo território é os céus – e não simplesmente o céu e/ou a
terra, mas os céus no sentido abrangente e totalizante – é a fonte de vida e de
tudo o que a ela convém, origem de todo o bem, o avaliador de toda a obra boa.
Depois,
o que interessa é que o Reino venha, se exponha, seja assumido, obviamente por
nós, mas por todos nós e não por nós só. O segmento “a nós” é excrescente e
pode ser limitativo. Até se tornou malévolo na crítica popular ao egoísmo. Para
eles, para os demais, “é tudo venha a nós” – costuma dizer-se. Até a versão
latina é “adveniat regnum tuum” sem “nobis” ou “ad nos”. Mas não é caso único a
tradução para português excrescente e desviante. Veja-se por exemplo o “Kyrie
eléison”, que traduzem por “Senhor tem piedade de nós”, quando devia ser apenas
“Senhor tem piedade” (ou: compaixão, misericórdia, pena, dó). Sem “de nós”, o objeto da
piedade divina seremos nós e todos os demais, bem como as diversas situações
humanas que fazem condoer visceralmente Deus e os seres humanos. Os gregos,
quando queriam personalizar num universo mais peculiar o objeto da piedade de
Deus, diziam “Kyrie eléison êmás”. Veja-se o “Hágios o Theós, de sexta-feira
santa:
“Hágios
o Theós, Hágios Ischyrós, Hágios Athánatos, eleison hymás (em vez de êmás).
E
a tradução “Faça-se a Tua vontade, assim como no céu, também assim na terra” é
muito mais próxima do original grego e mais consentânea com o texto latino.
Aparece o céu como lugar modelar e arquetípico da vontade divina, sendo que a
terra é o lugar da imitação. Não é um puro paralelismo. O texto grego e o texto
latino exprimem melhor aquela dimensão arquetípica do céu que a tradução
vernácula litúrgica. Aqui, Lourenço pontua.
***
Mais
audaz é a petição “Dá-nos já hoje o nosso pão de amanhã”, contra “o pão nosso
de cada dia (ou quotidiano) nos dá
hoje”. “Dós (imperativo aoristo de dídomi) êmîn
sêmeron” é dá-nos hoje (o tradutor reforça “já hoje” – não vejo
mal, antes pelo contrário).
Mas o problema está em “árton êmôn tón epioúsion”. O latim litúrgico traduziu o
adjetivo “epioúsion” por “quotidianum” (quotidiano, de cada dia), mas Augustinus Merk, SJ, em Novum Testamentum Graece et Latine, e a
edição do Vaticano traduziram por “supersubstantialem” (da
nossa subsistência ou sobrevivência).
Lourenço parece estar alinhado com o sentido dado por Merk. Mas veja-se o que
ele diz:
“Este
versículo coloca famosos pontos de interpretação. O ponto nevrálgico está no
adjetivo que traduzo por “de amanhã”: epioúsios.
Trata-se de um adjetivo que é raríssimo em grego e, por esse motivo, é difícil
determinar ao certo o seu sentido. A sua derivação mais evidente é do verbo épeimi, que, usado com referência ao
tempo, exprime a ideia de um tempo “seguinte”; por isso, o particípio deste
verbo é utilizado, justamente, para designar “o dia seguinte” (não só em
autores clássicos, nomeadamente Platão, como em Atos dos Apóstolos 16:11). No
AT na versão dos LXX, encontramos uma construção idêntica do mesmo verbo para
“o dia de amanhã” (Provérbios 27:11). Este pão epioúsios como pão de amanhã (literalmente, crástino) é pedido já (imperativo de ação imediata: dós) para hoje. Em Lucas (11:4)
encontramos o mesmo “pão de amanhã”, que, no entanto, é pedido cada dia,
mediante um imperativo de ação continuada (dídou).”.
Como
é natural, tive o cuidado de verificar a justeza do que o professor afirma. Porém,
Lucas além do aoristo presente do verbo dídomi,
utiliza as expressões “tón epioúsion” e “tó cath’ êméran”. Merk traduz por
“cotidianum” e “hodie”, respetivamente; e a edição vaticana traduz por
“cotidianum” e “cotidie”, respetivamente. E Herculano Alves e colaboradores
traduzem por “da nossa subsistência” e “em cada dia”, respetivamente.
Distribuir o pão de amanhã pelo dia de hoje faz sentido se atendermos que, segundo o livro do Êxodo, o maná era enviado diariamente e não podia
ser armazenado para o outro dia. Mas, como não era fornecido ao sábado, Deus
enviava uma quantidade maior à sexta-feira, podendo e devendo o maná ser
guardado para o sábado sem se deteriorar (cf Ex 16,22-27). Para nós o dia
seguinte é o da abundância de Deus, o do descanso do homem e da relação íntima Deus
– homem.
Lourenço
traduz o segmento lucano por “Dá-nos cada dia o nosso pão de amanhã” e diz:
“A
frase correspondente em Mateus (6:11) é “dá-nos já hoje o nosso pão de amanhã”.
Mateus usa o imperativo aoristo (que sugere uma ação mais pontual e imediata);
Lucas usa o imperativo presente, que transmite uma ideia de ação contínua.”.
***
Encontrar
o perdão das “dívidas”, “tal como perdoamos aos nossos devedores” faz-me
lembrar os catecismos antigos por onde ainda alguns mais velhos do que eu – e
eu também – aprenderam o Pai Nosso. A isto Lourenço responde:
“Os
erros (hamartíai) de Lucas são
“dívidas” (opheilémata) em Mateus (e
nalguns manuscritos de Lucas)”.
Com
efeito, o texto grego reza: “áfes (imperativo aoristo de afíêmi – lançar fora, livrar de, perdoar) êmîn tá opheilémata êmôn” –
livra-nos das nossas dívidas – “hós êmeîs afêkámen (indicativo
aoristo de afiêmi) toîs opheilétais êmôn”: como
nós perdoamos aos nossos devedores. Merk diz “debita” (tá
opheilémata) e “debitoribus”
(toîs
opheilétais).
Repare-se que em latim não há artigos. Lucas também emprega “pantí opheílonti”:
a todo aquele que nos deve. É o particípio presente do verbo opheílô no dativo do singular. Merk e o Vaticano
traduzem por “omni debenti”.
Herculano
Alves refere em Mateus:
“Como
os deveres para com Deus não são separáveis dos deveres para com o próximo,
aquele perdão é posto em ligação profunda com o perdão concedido pelo discípulo
aos irmãos”.
E
a propósito do texto de Lucas, diz:
“Lucas
traduz a imagem negativa da dívida por pecados.
Quanto ao perdão fraterno, Lc estende-o a toda a duração da vida e Mt liga-o ao
instante que precede a oração (5,23-24).”.
***
“Não
nos leves para sermos postos à prova” – difere do português “não nos deixes
cair em tentação”. O latim tem “ne inducas nos in tentationem” (Vaticano) ou “ne nos inducas in tentationem
(Merk
e Liturgia) – não
nos leves à tentação – corresponde ao grego “mê eisenénkês êmás eis peirasmón”:
não nos introduzas (verbo eisêgéomai: introduzir propor) na tentação (peirasmós). Lourenço diz “Não nos leves para
sermos postos à prova” e explica:
“O
substantivo peirasmós (aqui sem
artigo) significa à letra “prova”, pois deriva do verbo peirázô, “testar”, “pôr à prova” Assim, o sentido das palavras
gregas poderia ser “não nos leves para uma situação em que sejamos postos à
prova”. Entra aqui, de alguma forma, a realidade vivida pelos primeiros
cristãos nestas palavras porventura retrospetivamente projetadas pelo
evangelista como ditas prospetivamente por Jesus.”.
“Livra-nos
(rhûsai
êmás) do iníquo” – segundo
Lourenço, visto estar em genitivo, o género de toû ponêroû tanto pode ser masculino como neutro, pelo que seria
possível traduzir por “livra-nos daquilo <que é> iníquo”. O verbo “rhûomai”
significa retirar, afastar. Lucas não regista esta segunda parte da última petição.
Herculano Alves refere a suficiência da primeira parte, a tentação “que resume todos os perigos com origem em Satanás” para
cuja superação “o ser humano precisa da força de Deus”.
Lourenço,
verificando as omissões de Lucas em relação a Mateus, supõe:
“Tal
como sucede no caso do Sermão na Montanha com as suas bem-aventuranças no Capítulo
5 de Mateus, também aqui somos levados a suspeitar que Mateus pode ter lido
Lucas, mas Lucas não leu Mateus. Dificilmente se aceita que Lucas, tendo lido o
mais profundo e complexo ‘Pai Nosso’ de Mateus, possa ter optado por esta sua
versão; por outro lado, é bem mais verosímil que Mateus, tendo tido
conhecimento do ‘Pai Nosso’ na versão de Lucas, possa ter querido registar uma
versão mais completa.”.
Tal,
do meu ponto de vista não quer dizer que a versão de Lucas seja mais pobre. Pode
até ser mais saborosa no degustar de cada palavra sem redundâncias e pode ser
promotora de silêncios ativos e profícuos.
***
Enfim,
toda a reflexão linguístico-histórica de textos bíblicos como estes pode abrir
boas pistas para elaborações teológicas e caminhos de espiritualidade dos melhores.
Assim seja!
2016.10.25 – Louro de Carvalho
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