O
Jornal de Notícias (JN), de 6 de outubro, ostenta, logo em
primeira página, uma pequena manchete com o título “Padre despede funcionária
que foi a Fátima a pé sem licença”. Como pós-título, refere “Empregada de
centro social diz ter sido autorizada a gozar cinco dias de férias”. E remete para a página 16 onde em carateres
maiores titula “Padre despede funcionária por ir a Fátima sem licença”. Mas
aqui o título é precedido de um antetítulo que especifica: “Alpendurada.
Trabalhadora rejeita alegação de justa causa e diz que deu como certa
autorização para gozar férias e cumprir promessa. Caso decidido em tribunal”.
Compreende-se
que os jornais pretendam vender papel e as estações de rádio e televisão
queiram disputar e ganhar a guerra das audiências. Até se percebe que entendam
dever e poder construir títulos apelativos mesmo à custa de exagero. Porém,
levar levemente o leitor ou o recetor/espectador a consumir informação distorcida
ou errada não é admissível. Se a primeira função de um órgão de comunicação social
é informar, impõe-se a verdade nua e crua.
Dizer
que um padre despede funcionária por ir a Fátima sem licença é absurdo. Desde quando
é que um cidadão precisa de licença do padre para ir a Fátima? Será verdade que
um padre pode despedir uma funcionária por ir a pé sem licença? Ou para ir a pé
a Fátima é precisa autorização especial do padre?
É
óbvio que, ao lermos o desenvolvimento da notícia, ficamos quase esclarecidos,
mas os leitores têm o direito de ler o texto na íntegra como têm o direito de
ler apenas os títulos ou o direito de não lerem nada. Porém, se lerem apenas títulos
e parágrafos-guia têm o direto de não serem induzidos em erro.
O
sacerdote não pode proibir o cumprimento de uma promessa, a satisfação de um
gosto ou a consumação de um sacrifício mortificador. Deve urgir o cumprimento
das promessas, pois quem promete cumpre; e deve sugerir a comutação ou mesmo a
dispensa da promessa se o promitente sentir dificuldade em cumprir como prometeu
ou se prometeu algo que não devia ter prometido. A promessa feita a Deus, à
Virgem Maria e aos santos, além de obrigar pela fidelidade à palavra, obriga
também pela virtude da religião ou piedade.
É
sabido que os sacerdotes não recomendam longas peregrinações a pé nem o Santuário
de Fátima as recomenda. No entanto, sugerem pequenas caminhadas que inspirem o
sentido de peregrinação, que marca o ser da Igreja e espelha a vida do homem
que passa por este mundo. Aquilino Ribeiro considerava a sua vida como a
peregrinação a Compostela.
Seja
como for os sacerdotes e outros servidores de santuário têm de respeitar,
apoiar e acolher os desejos dos crentes e não lhes criar obstáculos, vigiando e
orientando a caminhada de fé e sua expressão. E melhor que a imposição, surge a
pedagogia da fé e da espiritualidade.
***
Ora,
o que se passou em Alpendurada configura um problema na relação laboral e não
um problema religioso, o que o antetítulo do texto da pg. 16 do JN deixa entreler.
A
funcionária, depois de conversa informal com uma diretora técnica, fez
desanexar do mapa de férias um bloco de cinco dias úteis para a sua vida particular,
que era, no caso, uma simples peregrinação a Fátima a pé. Como é óbvio, as
férias são irrenunciáveis e intransissíveis, mas o período em que as férias são
gozadas tem de ser acertado e aprovado pela entidade que dirige o serviço ou
empresa, sobretudo quando se trata de uma fração diminuta de dias de férias. Normalmente,
os serviços elaboram em tempo oportuno, um mapa de férias, que deve contemplar tanto
quanto possível as pretensões dos funcionários, mas sem impedir o regular funcionamento
das organizações, que pode ser alterado a contento das partes.
A
direção do Centro Social Paroquial de Alpendurada, segundo reza o JN, presidida pelo pároco da freguesia,
como é usual nestes casos, recusou a pretensão da funcionária que pretendia ser
peregrina, justificando com o facto de duas funcionárias terem antes solicitado
o mesmo período para gozo de férias e por haver outras que se encontravam em
licença de maternidade. No entender da direção, havia que colocar em primeiro lugar
o bom funcionamento da instituição.
Não
concordante com a decisão superior, a funcionária insistiu na sua pretensão escrevendo
uma carta endereçada ao Presidente da Direção, que entregou à predita diretora
técnica, explicando os motivos e solicitando a compaixão do sacerdote.
A
partir deste ponto, divergem as versões. A funcionária alega ter-se avistado
com o padre que terá dito que a carta não fora aberta, mas que o pedido seria
reanalisado e que ela propusera uma voluntária que ali dava apoio, prometendo
pagar-lhe o serviço feito em sua substituição – o que é no mínimo bizarro, não
cabendo ao funcionário propor substituto “voluntário” e pagando. A distribuição
de serviço e respetivo pagamento é da competência da direção.
O
Centro Social Paroquial alega que a funcionária fora logo avisada, na reunião que
tivera com o presidente, de que o novo pedido de férias não seria autorizado,
sendo que a predita diretora técnica enviara vários sms à funcionária “peregrina”.
Regressada
ao serviço a 16 de maio, foi informada, de imediato, que estava suspensa preventivamente
de funções porque lhe fora instaurado um processo disciplinar com vista ao
despedimento por justa causa (trabalhava ali desde 2001), uma vez que lhe fora enviado
um sms sobre o motivo por que não viera trabalhar, a que não houvera resposta.
A
funcionária, partindo da presunção de autorização daquele tempo de férias,
intentou um processo no Tribunal de Trabalho da área.
Ora,
o antetítulo do JN a pgs. 16 é ambíguo: o caso não está “decidido”, pois ainda
não há decisão do tribunal. Está, pois, para “decidir”.
***
Se
devemos considerar a autonomia das realidades terrestres, também devemos saber
que o dirigente de um serviço, mesmo que seja sacerdote, tem de se pautar pelas
regras laborais consignadas no respetivo código, devendo os funcionários e demais
colaboradores perceber isso também. É, pois, abusivo misturar os dois campos e sê-lo-ia,
mesmo que a relação laboral se desenvolvesse numa instituição religiosa. Por isso,
a funcionária fez mal em misturar as coisas; e o jornalista fez pior. É que a funcionária
fê-lo no seu próprio interesse e expõe a sua verdade, ao passo que o jornalista
que tem responsabilidades públicas e um código deontológico específico, fá-lo
para confundir a verdade da informação ao serviço de interesses empresariais.
Para
melhor ilustrar o raciocínio, lembro o caso de uma organização em que um padre responsável
pela sua gestão não renovou um contrato a termo certo que uma funcionária tinha
com a dita estrutura, porque a mesma funcionária assinou um contrato de
prestação de serviços com a Misericórdia local, sem autorização da sua entidade
patronal, quando o dito padre, ao saber que isso estava para acontecer a avisou,
insistindo, de que ela deveria solicitar autorização à entidade patronal para
acumular – o que ela não fez por achar desnecessário.
E
recordo o caso de um seminarista que o professor de História repreendeu por ele
numa aula ter tentado abrir a bíblia à socapa. O professor era um padre prestigiado.
Lá
diz o povo: primeiro a obrigação, depois
a devoção, ou não se deve navegar em águas turvas – coisa de que os jornalistas
gostam de “fazer fazer” aos outros.
2016.10.12 – Louro de Carvalho
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