Para
responder a dúvidas de leitores da
revista Bíblica, que terão ouvido
falar duma “nova Bíblia”, traduzida pelo professor Frederico Lourenço, Frei
Herculano Alves, capuchinho, doutor e notável professor de Sagrada Escritura, dá
a sua opinião limitando-se ao que se conhece neste momento: o I dos seis
volumes prometidos (Os Quatro
Evangelhos); e entrevistas
publicadas em diversos jornais. Por outro lado, aduz que o tradutor se referira
ao seu nome no atinente a traduções da Bíblia em Portugal e fizera
considerações explícitas sobre a tradução que coordenara para a Difusora
Bíblica, em 1998.
Concordo com
o biblista crítico no sentido de que algumas tiradas de marketing jornalístico
criaram confusões, a meu ver desnecessárias, que têm prejudicado a obra e o seu
obreiro. Porém, concordo com Francisco José Viegas, coordenador da edição,
quando replica que a crítica de caráter técnico será válida se tiver em conta a
obra e a sua intenção. Porém, Herculano Alves não pode dizer que falta ao
tradutor “a informação e a verdade exigidas para falar de um tema como este”. Teria
razão se Lourenço pretendesse intrometer-se nos meandros da teologia
sistemática a partir da Bíblia ou da teologia bíblica – o que, de facto, o
tradutor não almeja.
Se não se vê
motivo para nos impedirem de estudarmos os objetos e a linguagem mitológica de
Gregos e Romanos ou de outras civilizações e culturas e mesmo os livros de
outras religiões – já que não professamos as crenças que veiculam –, não creio
que se possa estranhar que um leigo sem erudição académica teológica possa
trabalhar o texto bíblico em si, desde que tenha em conta os materiais e os
contextos de cada um dos livros, o tal Sitz im Leben próprio de que
fala Herculano ou o “situs in viventia”
das comunidades em que eles foram elaborados.
Por outro lado,
quem está de fora em relação a uma determinada dinâmica e mística pode ver com
olhos mais independentes determinadas situações históricas. Recordo que o livro
Filosofia do Comunismo, de Charles J MC Fadden, com prólogo de Fulton
Sheen, analisava o tema de forma séria e isenta na sua Parte I: fundo histórico,
filosofia na natureza, filosofia da inteligência, filosofia da história, filosofia
do Estado, filosofia da religião, filosofia da moralidade, filosofia da
revolução, filosofia da sociedade. Esta Parte I
foi editada nos países de leste para
elucidação geral. E, como era de supor, eliminaram
a Parte II Crítica à Filosofia do Comunismo.
***
Do meu ponto
de vista, não colhe a objeção de Lourenço ter decidido traduzir, sozinho, uma
Bíblia. De facto, como ele próprio esclarece e Herculano admite, houve
traduções feitas por um único tradutor: João Ferreira Annes d’Almeida, o padre
António Pereira de Figueiredo e, já no séc. XX, o padre Mattos Soares.
Herculano aduz que os dois últimos, católicos, traduziram da Vulgata latina e assegura
que não é qualquer pessoa que tem capacidade para contestar essas traduções e
reconhece que elas, apesar de terem defeitos, “têm as suas virtudes”. Porém,
aponta-lhes “um defeito fundamental”, serem “obras de um único tradutor”. De
João Ferreira d’Almeida diz ser duvidoso que tenha traduzido a Bíblia a partir
do hebraico e do grego – isso, sobretudo no que diz respeito ao hebraico.
Obviamente que se socorreu do material em voga ao tempo. Porém, não vejo que o
defeito seja o ser obra de um só. Ninguém tem dúvidas sobre a validade dos
trabalhos de Orígenes ou de São Jerónimo. Por outro lado, não parece líquido
que Lourenço esteja sozinho. A edição tem um coordenador e há vários
colaboradores. Leu muito e é provável que se socorra de trabalhos parcelares de
outrem, designadamente de alunos.
Sobre a
polémica da Bíblia dos Setenta, no
seu texto introdutório, o tradutor esclarece o assunto, apesar da confusão vertida
para os jornais e a que, em tempo, fiz referência. Além disso, a recensão bibliográfica
menciona as edições da Bíblia grega que segue: “Septuaginta. Id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes”
(Edidit Alfred
Ralphs. Estugarda, 1935, 2 vols.); e Novum Testamentum graece (Post
Eberhard Nestle et Erwin Nestle….. Estugarda, 1979).
É claro que
o professor-tradutor sabe que tem de vencer “a enorme distância entre a língua
e cultura cristalizadas num texto-origem e a língua e cultura atual” e que cada
livro da Sagrada Escritura “é diferente dos outros”, com o seu vocabulário técnico.
Pelas introduções que o volume tem e pelas suas notas, Lourenço mostra dar-se
conta de que o Novo Testamento possui um substrato semita e, sobretudo, mostra
capacidade para fazer uma tradução aceitável da Bíblia neotestamentária.
Sobre os
textos evangélicos Lourenço tem as mesmas dúvidas e as mesmas hipóteses que os
biblistas têm atualmente sobre datação e autoria e a mesma perspetivação sobre
destinatários, finalidade, contexto e mensagem. Pode é dizer-se que, neste
aspeto, o seu trabalho não confere uma notável mais-valia. Não obstante, tem
uma vantagem, que é sintetizar o que é diferente e próprio em cada um dos
evangelistas a nível de conteúdo, linguagem e perspetiva.
Assim, lá
nos dá conta do teor teológico e espiritual do Evangelho de João e da sua peculiar
apresentação entitativa de Jesus, da extensão e da índole perfecionista do
grego de Lucas e da forma empolgante como se inicia a narrativa vindo a
aproximar-se em simplicidade do contexto dos destinatários, da abundância dos materiais
de Mateus e da breve extensão de Marcos, sua sobriedade de linguagem,
latinismos (incluindo o nome Marcus) e aspeto fontal para Mateus e Lucas.
Deixa a nu,
sem preocupação de qualquer harmonização, os aspetos discrepantes dos
Evangelhos sobretudo no atinente à narrativa da Paixão e da Ressurreição. Reconhece
que seria mais cómodo às Igrejas apresentarem uma narrativa sem contradições,
mas salienta a lisura da apresentação dos textos divergentes, apesar de saber
que houve alguns Padres que fizeram a tentativa de apresentar um texto único
harmonizado, sem que tal se tivesse imposto à tradição. No entanto, entende que
tais divergências não se tornam obstáculo a que os livros constituam um excelente
objeto de leitura e se prestem à conveniente leitura teológica, espiritual e de
fé. E, não se esperando cultura teológica da parte de Lourenço, é interessante
notar o que escreve a propósito do bom samaritano em nota a Lc 10,33:
“Vendo-o, compadeceu-se: a
utilização aqui do verbo splankhnízomai
(condoer-se visceralmente) é
sugestiva, dando a entender que, atrás da máscara do Bom Samaritano, está a
figura do próprio Jesus. Com efeito, das 11 vezes (cf Mt 9,36*), que o verbo
aparece em Mateus, Marcos e Lucas, é sempre usado com referência a Jesus ou a
personagem que ele apresenta como alter
ego de si próprio. É o próprio caso do rei que perdoa as dívidas em Mateus
(18,27); em Lucas, além de do Bom Samaritano, temos o pai do Filho pródigo, que
se condói visceralmente ao ver o estado em que o filho regressa a casa (15,20).
– vd pg 262.
Obviamente que
as notas referidas têm um discurso concordante com este (vd Mt 9,35; 18,27).
Porém, onde
o contributo de Lourenço parece mais significativo é no entendimento próprio que
dá aos textos em si. Em primeiro lugar, ressalta a afirmação que a língua do
Novo Testamento é mesmo língua grega, tão grega como a dos clássicos, a ponto de
ver nalguns segmentos textuais a mesma cadência que vê em Homero. Todavia,
chama a tenção para a evolução normal da língua ao longo do tempo e para as diferentes
realizações culturais. Por outro lado, embora veja, por exemplo, no prólogo de
João, forte arroubo poético, refere que se desvia da poesia grega clássica em termos
da estrutura formal. Mas, para si, o grego do Novo Testamento não é uma língua
à parte. Não tenho, entretanto, como seguro que ele tenha captado o sentido
exato de diversos termos na dinâmica evangélica como, por exemplo, no caso do
significado do verbo kharitóô. Chamar
a Maria “favorecida” parece pouco ou não perceber a força do semitismo
importado do Antigo Testamento pela via do midrash
e do agadah. Algo parecido se deve
dizer do significado do vocábulo parthénos,
que efetivamente, tal como a correspondente hebraica almá, não significa “virgem”, mas uma jovem solteira, ou do vocábulo
adelphoi, que, embora signifique “irmãos
uterinos”, não tem sido assim entendido pelos católicos. Aqui, o tradutor pode legitimamente
esquecer o entendimento que os Padres Apostólicos e os Padres da Igreja deram a
este e a outros vocábulos bíblicos no contexto da economia da Salvação.
Porém, em
segundo lugar, é preciso dizer que estes aspetos mais críticos não invalidam o
precioso contributo que Lourenço dá aos estudos da Bíblia. Assim é de ter em
conta a vasta informação que dá sobre a filologia e a história do texto com
base no significado helenista – embora imbuído de algum fumo hebraico – das
palavras e nos respetivos contextos e na abertura aos diversos sentidos, que é
bom assumir. Dou, a título de exemplo, o duplo sentido que dá ao termo lógos, no prólogo de João, ou o múltiplo
sentido que dá à palavra amartía (erro,
dívida, desvio, pecado) ou o
comentário que faz ao hebraico amen. Mas
salienta as marcas de oralidade expressas na abundância e diversidade de elementos
de ligação (vg: e, porém, eis que, sucedeu que,…) e ritmo
oralizante, já que os textos foram escritos para serem lidos em voz alta e
serem ouvidos.
***
Tem, depois,
um útil quadro alfabético-temático dos Evangelhos. Como é natural, apesar da
sua utilidade, não está imune de falhas. Por exemplo, não localiza nos Evangelhos,
pelo menos dois, a flagelação ou açoitamento de Jesus (Marcos
15,15; e João 19,1) e deslocou
para Lucas o episódio da adúltera, que é de João 8,1-11. No entanto, não deixa
de ser um interessante quadro sinótico.
Finalmente,
há que dizer que Lourenço faz uma tradução tanto quanto possível fora do comum,
mas o mais perto possível do texto grego, para que se sinta melhor o ritmo e o
fluir semita do texto. Estranho, mas não percebo por que motivo se criticaria este
tradutor quando, por exemplo Dom António Couto, um dos nossos melhores
biblistas, também o faz em relação aos textos no Novo Testamento e à Bíblia
hebraica. Aliás, aprecio em Lourenço as omissões do verbo em alguns segmentos
em que ele não está expresso no grego, por exemplo, em Pai nosso nos céus (Mt 6,9), Paz para vós (Jo 20,19.21.26), Deus connosco (Mt 1,23). Não vejo, porém, porque não refere para Maria, O Senhor contigo (Lc 1,28) em vez de O
Senhor está contigo, embora está
venha entre < >, <está>.
***
Ora, apesar
de a tradução em causa não ter o valor duma Bíblia cristã propriamente dita,
pois esta é “o livro da fé de um povo, dirigido a um povo de fé”, nem por isso
se pode considerar obra pequena esta tradução cultural da Bíblia, podendo
mesmo constituir um contributo excecional, mas válido para o estudo e a
divulgação da Bíblia. De facto, é de salientar a sua fidelidade à filologia, ao
valor denotativo das palavras, bem como a semântica, género literário, conotações,
simbologia e até, sem ser este o escopo, a muitas das palavras da linguagem
cristã, usadas através dos séculos para transmitir as verdades da fé. Vale a
pena ler!
2016.10.22 – Louro de Carvalho
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