O
episódio narrado exclusivamente por Lucas da “Cura dos 10 leprosos” (Lc 17,11-19) também pode ser designado pelo
de “O samaritano agradecido”.
Este
episódio próprio do autor do 3.º Evangelho é, sob alguns aspetos, paralelo à
parábola do bom samaritano (vd 10,29-37). Naquela parábola, um
samaritano – e não os eclesiásticos judeus (sacerdote e levita) – mostrou a genuína compaixão e
o verdadeiro amor pelo próximo. Também aqui é um samaritano – e não os restantes
9 judeus, apegados à letra das prescrições legais e rituais – que ultrapassa a
letra da Lei e, reconhecendo o benefício recebido do Senhor, mostra o seu amor
agradecido a Deus (cf v. 15) e a Jesus (cf v. 16). Por outro lado, este episódio,
que reveste a forma de parábola, está ligado tematicamente à pequena parábola
incluída na perícopa anterior dos 10 primeiros versículos deste capítulo 17. Na
verdade, após as três sentenças aparentemente não interligadas – ter cuidado
com os escândalos; repreender o irmão que te ofende e perdoar-lhe; e o desafio a
fazer crescer a fé e a pedir a Deus – vêm os versículos 7 a 10 lançar o repto
sobre o bom servidor, repto também exclusivo de Lucas:
“Qual de
vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele
regressar do campo: ‘Vem cá depressa e senta-te à mesa’? Não lhe dirá
antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e
bebo; depois, comerás e beberás tu’? Deve estar grato ao servo por ter
feito o que lhe mandou?
Assim,
também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos
servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’.” (Lc 17,7-10).
Esta
pequena parábola de tipo catequético – perguntas e resposta sentenciosa –,
dirigida aos apóstolos, constitui uma admoestação aos líderes da Igreja a que
nunca se julguem com direito ao descanso porque já trabalharam o suficiente. O
evangelho de Lucas é o Evangelho da entrega total. Além disso, se entendermos
aqui este desafio de Jesus como um recado aos fariseus seus contemporâneos ou
aos judeus-cristãos da Igreja primitiva, ele constituirá um eco do ensino
paulino sobre a justificação pela fé em Cristo e a insuficiência justificante
das obras humanas. Neste caso, teremos a relação com o dito no versículo 6 (Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis
a essa amoreira: ‘Arranca-te daí e planta-te no mar’, e ela havia de
obedecer-vos), com a
necessidade de conceder o perdão (vd vv. 3-4) e com a de evitar o escândalo (vd
vv. 1-2) – fé
perdão, cautela com o escândalo como elementos necessários à vida em Igreja.
Por
outro lado, a parábola do servo inútil parece prescindir da gratidão, ao passo
que o episódio de “O samaritano
agradecido” recomenda-a. Os vv 7-10 exigem a fé; por seu turno, os vv 11-19
exigem a fé como condição de salvação e como impulso para reencontrar o caminho
da vida, mas também a gratidão como reconhecimento do benefício misericordioso
do Senhor e testemunho da sua grandeza junto dos demais.
Ao
entrar numa aldeia, saem-lhe ao encontro 10 leprosos, que tinham de viver
isolados dos demais, mesmo nos povoados. A desgraça juntava-os para sentirem
mais leve a sorte. Porém, chegou até eles a fama de Cristo. De longe, como
impunha a Lei (vd Lv 13,45),
pedem-lhe que os cure. Ele manda-os apresentar aos sacerdotes, que eram os
encarregados de oficialmente verificarem a cura, como preceituava a Lei.
Sentindo-se curados, como lhes sucedeu ao caminharem, parecia lógico que se
dirigissem a Jerusalém, alegres por voltarem para junto dos seus para louvarem
a Deus que os reabilitou do pecado, que originara a lepra, considerada castigo
divino. No meio deste gozo, o samaritano ultrapassou a letra da Lei e voltou-se
para Aquele que lhe concedeu o benefício – a fé em Jesus e o bom senso
ultrapassaram a Lei. À boa maneira oriental, prostrado (de
joelhos) e de rosto
em terra, agradecia-Lhe. E Cristo ratifica a cura do homem pela sua fé Nele e pela
sua gratidão, mas anota como os outros nove, que eram judeus, da etnia de
Jesus, não voltaram para dar glória a Deus e agradecer-Lhe o benefício que
acabaram de receber.
A
fé-confiança é extensiva a todos, pois Cristo é o benfeitor de todos. Esta
passagem evangélica torna clara a misericórdia universal de Jesus, que se
compraz em salientar o coração do odiado e desprezado samaritano. E o tema não
é tanto o milagre como a gratidão a Deus pelas suas obras e dons. O
cristianismo primitivo via nesta perícopa uma lição para agradecer a Cristo a
escolha dos “chamados em Jesus Cristo” (Rm 1,6b), muitos deles de entre as classes
sociais mais modestas (cf 1Cor 1,26-28). Deles, retirados dum mundo
moralmente corrompido, fez Deus em Cristo o mesmo que fez no judaísmo,
escolhendo os apóstolos e demais discípulos de entre a gente humilde frente ao
farisaísmo, aos homens cultos, aos dirigentes da nação.
***
Um pouco de exegese:
O
segmento “atravessava por entre a Samaria
e a Galileia” (v. 11) – diá meson
– constitui uma referência geográfica para justificar a presença dum samaritano
no grupo dos dez leprosos. A frase, a única do Novo Testamento que inclui a
preposição “diá” a reger acusativo
com sentido locativo (através de), remete para o eventual facto de Jesus querer
passar ao largo dos limites destas duas regiões para chegar ao vale do Jordão e
descer logo para Jericó. A importância deste versículo radica no suposto facto
de Lucas ter escassa informação sobre a geografia da Palestina, sendo que as
suas referências geográficas têm uma intenção teológica.
A
expressão “dez leprosos” (v.12) contrapõe este episódio ao da
cura do leproso narrado na primeira fase do ministério de Jesus (Lc
5,12-14; Mc 1,41-44).
A
locução adverbial “ao longe (v.12) significa que os leprosos
suplicaram em voz alta, de longe, porque, devido à lei da segregação, não
podiam aproximar-se das demais pessoas (cf Lv 13,45). Ficando longe, mas juntos e
bradando juntos mostram-nos que a miséria junta as pessoas solidariamente e
fá-las clamar a uma só voz e que, apesar de terem ficado ao longe, não perdem a
confiança em quem interpelam. Mais: nem se importam com que entre eles esteja
um estranho, já que a miséria é similar.
A
frase imperativa “Mostrai-vos aos
sacerdotes” (v.14) indica a vontade e o jeito de Jesus de levar as
pessoas a cumprir o que estava prescrito na Lei. Tal como competia aos sacerdotes
declarar o estado de doença de lepra, também lhes competia declarar a cura se
ela se verificasse (cf Lv 14,2-23). Seria natural que os judeus se
mostrassem aos sacerdotes de Jerusalém e o samaritano se mostrasse aos
sacerdotes junto do monte Garizim. Além disso, antes de realizar o milagre,
Jesus colocou à prova a fé dos leprosos, mandando-os cumprir o prescrito na
Lei, até porque Deus gosta de agir através de mediações e não diretamente. Por
outro lado, Cristo evita o milagre-espetáculo, de tal modo que eles não são
curados ali diante de todos e de repente, num momento, mas quando iam a caminho.
“Sentindo se curado, voltou…” (v.
15). Tal como o
estrangeiro (sírio)
Naaman regressou a junto de Eliseu depois de se sentir curado da lepra (vd
2Rs 5,14) para – reconhecendo que não há outro Deus em toda
a Terra, senão o de Israel – oferecer presentes, que o profeta recusou,
e levar “uma quantidade de terra, tanta quanta possam carregar duas mulas, pois
doravante o teu servo não oferecerá holocaustos nem sacrifícios a outros deuses, mas só ao Senhor” (cf id v. 17).
“Dando graças” (v.16). O particípio eucharistôn, transpondo o sentido de “berak” hebraico (bendizer, abençoar) significa o mesmo que dar glória a Deus
proclamando as suas ações redentoras na própria situação pessoal.
A
frase negativa “não houve quem…” (v.
18) – à letra “não se encontraram…” – voltasse para dar glória a Deus senão este
estrangeiro”? É a admiração de Jesus a elogiar a fé e gratidão de quem
voltou e censurar a displicência dos demais pela boa nova do prodígio em suas
carnes.
A
frase duplamente imperativa “Levanta-te e
vai” (v. 19),
seguida da declarativa “a tua fé te
salvou”, conclui a narrativa do episódio, que destaca o papel desempenhado
pela fé no mecanismo da cura evangélica, facto recorrente em narrativas deste
tipo (cf
7,50; 8,48; 18,42).
O
episódio termina com uma afirmação como nas parábolas e não com o assombro dos
circunstantes como sucede nos demais casos miraculosos – o que leva alguns,
influenciados por Bultmann, a considerarem este episódio como simples parábola,
construção lucana fundada em Mc 1,40-45, tese que está longe de corresponder à
realidade. O que se passa é que Lucas consigna, em 5,12-16, o texto referido
por Marcos (cf Mt 8,1-4).
Porém, o autor do 3.º Evangelho não repete relatos e é natural que no processo
de transmissão oral, certos pormenores de parábola contaminem os relatos de
episódios. Assim a parábola de “O
samaritano agradecido” conjuga-se com a da viúva que pede justiça (vd
18,1-8), a do
publicano que reza prostrado no fundo do templo (vd 18,9-14) e a do amigo importuno (vd
11,5-8)
e sentenças
subsequentes (vd 11,9-13)
para assinalar as disposições requeridas para a oração: perseverança (batendo
e tornando a bater, sem desanimar);
gratidão e louvor; humildade; confiança; arrependimento ou compunção pelos
pecados; e pedir o bem.
***
A cura dos dez
Leprosos ocorre quando da viagem de Jesus, da Galileia para Jerusalém, para
consumar a redenção – um tempo de pedagogia e ensinamento de Jesus aos
discípulos e de contacto de proximidade com as multidões. O caminho selecionado,
o do vale do rio Jordão era o mais seguro e usual entre os judeus, para se
fazer tal percurso. O Mestre porém, ao invés de seguir para o sul, indo
diretamente para Jerusalém, escolhe passar nos confins de Samaria e Galileia,
tomando a direção leste, que levava para além do Jordão e para a região da
Pereia, evitando as manifestações de ódio dos samaritanos para com os judeus,
de modo a causar-lhes toda a espécie de vexames, como era usual sobretudo
quando se deslocavam em peregrinação a Jerusalém. Por outro lado, a razão de
Jesus modificar o seu trajeto é ir propositadamente ao encontro daqueles que
estavam abandonados e deixados à sua própria sorte.
Estavam, pois, Jesus e seus
discípulos em uma região aberta e fora das cidades, em que havia pequenas
aldeias, constituídas em sua maioria por pessoas excluídas da convivência
social, por motivos de saúde física ou religiosa. Muitos moradores daquelas aldeias
eram judeus, que duma forma ou de outra, já tinham participado do culto e da
religião judaica. Mas algo aconteceu em suas vidas, que os relegou ao
isolamento e ao esquecimento por parte das autoridades religiosas.
Praticamente ninguém passava pelo
caminho que levava àquela aldeia de leprosos, pois, se entrassem ali, os judeus
seriam considerados contaminados e impuros.
Os dez leprosos pediram misericórdia.
Ao pararem longe de Jesus, estavam a
cumprir a Lei, que mandava que mantivessem uma distância mínima de 15 metros duma
pessoa sadia. Aqueles leprosos também tinham sido religiosos. Porque foram
ensinados no caminho da lei, conheciam-na. Teriam família e amigos, mas agora ninguém
os podia ajudar.
Por isso andavam em grupo. Só um leproso
compreendia e cuidava outro leproso. E a discriminação, o sentimento da impureza
física e espiritual, de ser pecador atingido pela maldição divina, sem saber
qual o pecado que lhe originara a lepra, era um fardo pesado que ele carregava
com muita dor em seu coração. Quem sabia dos seus questionamentos, que erro havia
cometido para merecer tal “punição”? Seguira todas as receitas e prescrições
rabínicas. Cumprira todas as ações litúrgicas. Fora fiel às teologias sacerdotais,
mas nenhuma oração dogmática foi capaz de o livrar do fatídico destino de
impureza.
Assim, na aproximação de Jesus, os leprosos
mudam a usual forma de oração judaica, que tantas vezes no passado recitaram (deixaram as formalidades naquele
momento), trocando-a por
um pedido dramático e lancinante: “Levantaram
a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós” (v. 13). E o Mestre, ao vê-los em tão humilhante situação, move-se de
íntima compaixão, lança uma profética palavra de fé, em que alcançaria a cura o
que acreditasse nas suas palavras:
“E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide e
mostrai-vos aos sacerdotes. E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos.”
(v. 14).
Os dez
leprosos partiram ainda doentes, mas creram que Deus os livraria do seu cativeiro.
A ordem de Jesus
apontava para a Lei. E a Lei previa que um leproso, ao sentir-se curado,
deveria apresentar-se ao sacerdote:
“Esta será a lei do leproso no dia da sua
purificação: será levado ao sacerdote” (Lv 14,2).
Havia toda
uma prescrição na Lei, acerca do cerimonial que o sacerdote deveria fazer para
se confirmar a cura dum leproso. Mas esse ritual nunca havia sido usado, nunca
antes de Jesus se havia sabido de que algum leproso fora curado.
Apenas um
dos dez leprosos volta para agradecer ao Mestre. Enquanto iam ainda no caminho, são todos curados milagrosamente
pelo poder de Jesus, o que os deixou alegres. Nove continuaram a caminhar em
direção à Jerusalém, mas um leproso julga importante voltar e demonstrar a sua
gratidão ao seu redentor.
“E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus em alta
voz; e caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças; e este era
samaritano” (Lc
17,15-16).
Jesus já
estava habituado à ingratidão humana, porém demonstrou seu descontentamento com
o proceder dos nove leprosos judeus. O Mestre havia-os restituído à vida. Mas
os leprosos, curados, também reassumiram a sua religiosidade e deram maior
preferência a cumprir a letra da lei, do que à gratidão. Aí vemos que o leproso
estrangeiro, samaritano, de raça mestiça, de religião profana, não se deixou aprisionar
pelas formalidades, mas, agradecido, jubiloso, compreendeu que Jesus era a própria a Lei em Pessoa.
“E, respondendo Jesus, disse: Não foram dez
os limpos? E onde estão os nove? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus
senão este estrangeiro? E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.”
(Lc 17,17-19).
O leproso
sabia que tinha de cumprir a Lei; mas espiritualmente entendeu que antes de
cumprir com cerimoniais, necessitava de honrar Aquele que tinha mostrado tão
grande compaixão pela sua vida. E ele vem e prostra-se; adora-O; é perdoado; é
salvo.
Assim,
quando este samaritano, ex-leproso se prostra diante do Mestre, estava a
cumprir a maior Lei que pode existir no universo e nas dimensões
espirituais: a imensurável Lei
da gratidão e do amor. O código, a letra da Lei, por si mesma, nunca
houvera curado um leproso: era necessária a participação da Misericórdia de
Jesus. A graça e a gratidão têm um poder imensurável. A Graça faz misericórdia
a todos quantos por ela clamam.
A Graça
opera na Lei, para a Justificação e Cura. A gratidão vem em primeiro lugar, antes de qualquer ato de religioso:
“Porque eu quero a misericórdia, e não o
sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos” (Os
6,6).
Deus espera
que, como o leproso curado, entendamos a superioridade do perdão e da graça. A
Lei mostra que temos falhas; a Graça clama pela Misericórdia. A graça pratica a injustiça da misericórdia.
E muitos, como os outros leprosos, são apanhados pela graça, recebem algo de
Deus, mas esquecem-se do favor imerecido que imerecidamente receberam. E voltam
a ser religiosos, presos à letra da lei, às liturgias, aos costumes e às
teologias. Tudo isso deve servir de orientação. Porém, no final, viveremos
da fé:
“O justo viverá pela fé; e, se ele recuar, a
minha alma não tem prazer nele” (Heb 10,38).
***
Os leprosos,
juntos pela desgraça, incluindo um estrangeiro, representam-nos como Igreja Universal
e Igreja de pecadores que somos e solidários no pecado – comunidade onde todos
cabem, pois, o número “dez” para os mestres hebreus significava a totalidade. Assim,
como os 10 rezavam juntos implorando misericórdia e com confiança, mesmo à
distância, também nós devemos rezar juntos, com confiança, implorando misericórdia,
não egoisticamente só para nós e por nós, mas por todos e com todos. Depois,
devemos rezar com fé, humildade e gratidão como o samaritano, fazendo de Cristo
a nossa referência e Dele a nossa glória.
Obviamente que
devemos implorar compaixão e perdão e doar também compaixão e perdão. E temos
de levar os outros a suplicar com fé, humildade e confiança, a pedir compaixão
e perdão; a doar perdão e compaixão; e a agradecer, bendizer, adorar, louvar e
glorificar o Senhor”!
- Cf: Conferência Episcopal Portuguesa. Missal Popular Dominical. 5.ª ed. Coimbra:
Gráfica de Coimbra, pg 1024; Lancelloti, A. – Bocalli, G. (1979). Comentário ao Evangelho de São Lucas. Petrópolis:
Vozes; Stuhlmueller, C. (1971). “Evangelio segun San Lucas”, in Brown, R et
alii. Comentario Biblico ‘San Jeronimo. Madrid:
Ed, Cristiandad; Tuya, M. (1971). Biblia Comentada. Vol. V – Evangelios (2.º).
Madrid; BAC.
2016.10.10 – Louro de Carvalho
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