segunda-feira, 10 de outubro de 2016

De dez leprosos curados só o samaritano voltou para agradecer

O episódio narrado exclusivamente por Lucas da “Cura dos 10 leprosos” (Lc 17,11-19) também pode ser designado pelo de “O samaritano agradecido”.
Este episódio próprio do autor do 3.º Evangelho é, sob alguns aspetos, paralelo à parábola do bom samaritano (vd 10,29-37). Naquela parábola, um samaritano – e não os eclesiásticos judeus (sacerdote e levita) – mostrou a genuína compaixão e o verdadeiro amor pelo próximo. Também aqui é um samaritano – e não os restantes 9 judeus, apegados à letra das prescrições legais e rituais – que ultrapassa a letra da Lei e, reconhecendo o benefício recebido do Senhor, mostra o seu amor agradecido a Deus (cf v. 15) e a Jesus (cf v. 16). Por outro lado, este episódio, que reveste a forma de parábola, está ligado tematicamente à pequena parábola incluída na perícopa anterior dos 10 primeiros versículos deste capítulo 17. Na verdade, após as três sentenças aparentemente não interligadas – ter cuidado com os escândalos; repreender o irmão que te ofende e perdoar-lhe; e o desafio a fazer crescer a fé e a pedir a Deus – vêm os versículos 7 a 10 lançar o repto sobre o bom servidor, repto também exclusivo de Lucas:
“Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo: ‘Vem cá depressa e senta-te à mesa’? Não lhe dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e beberás tu’? Deve estar grato ao servo por ter feito o que lhe mandou? Assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’.” (Lc 17,7-10).
Esta pequena parábola de tipo catequético – perguntas e resposta sentenciosa –, dirigida aos apóstolos, constitui uma admoestação aos líderes da Igreja a que nunca se julguem com direito ao descanso porque já trabalharam o suficiente. O evangelho de Lucas é o Evangelho da entrega total. Além disso, se entendermos aqui este desafio de Jesus como um recado aos fariseus seus contemporâneos ou aos judeus-cristãos da Igreja primitiva, ele constituirá um eco do ensino paulino sobre a justificação pela fé em Cristo e a insuficiência justificante das obras humanas. Neste caso, teremos a relação com o dito no versículo 6 (Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a essa amoreira: ‘Arranca-te daí e planta-te no mar’, e ela havia de obedecer-vos), com a necessidade de conceder o perdão (vd vv. 3-4) e com a de evitar o escândalo (vd vv. 1-2) – fé perdão, cautela com o escândalo como elementos necessários à vida em Igreja.
Por outro lado, a parábola do servo inútil parece prescindir da gratidão, ao passo que o episódio de “O samaritano agradecido” recomenda-a. Os vv 7-10 exigem a fé; por seu turno, os vv 11-19 exigem a fé como condição de salvação e como impulso para reencontrar o caminho da vida, mas também a gratidão como reconhecimento do benefício misericordioso do Senhor e testemunho da sua grandeza junto dos demais.
Ao entrar numa aldeia, saem-lhe ao encontro 10 leprosos, que tinham de viver isolados dos demais, mesmo nos povoados. A desgraça juntava-os para sentirem mais leve a sorte. Porém, chegou até eles a fama de Cristo. De longe, como impunha a Lei (vd Lv 13,45), pedem-lhe que os cure. Ele manda-os apresentar aos sacerdotes, que eram os encarregados de oficialmente verificarem a cura, como preceituava a Lei. Sentindo-se curados, como lhes sucedeu ao caminharem, parecia lógico que se dirigissem a Jerusalém, alegres por voltarem para junto dos seus para louvarem a Deus que os reabilitou do pecado, que originara a lepra, considerada castigo divino. No meio deste gozo, o samaritano ultrapassou a letra da Lei e voltou-se para Aquele que lhe concedeu o benefício – a fé em Jesus e o bom senso ultrapassaram a Lei. À boa maneira oriental, prostrado (de joelhos) e de rosto em terra, agradecia-Lhe. E Cristo ratifica a cura do homem pela sua fé Nele e pela sua gratidão, mas anota como os outros nove, que eram judeus, da etnia de Jesus, não voltaram para dar glória a Deus e agradecer-Lhe o benefício que acabaram de receber.
A fé-confiança é extensiva a todos, pois Cristo é o benfeitor de todos. Esta passagem evangélica torna clara a misericórdia universal de Jesus, que se compraz em salientar o coração do odiado e desprezado samaritano. E o tema não é tanto o milagre como a gratidão a Deus pelas suas obras e dons. O cristianismo primitivo via nesta perícopa uma lição para agradecer a Cristo a escolha dos “chamados em Jesus Cristo” (Rm 1,6b), muitos deles de entre as classes sociais mais modestas (cf 1Cor 1,26-28). Deles, retirados dum mundo moralmente corrompido, fez Deus em Cristo o mesmo que fez no judaísmo, escolhendo os apóstolos e demais discípulos de entre a gente humilde frente ao farisaísmo, aos homens cultos, aos dirigentes da nação.
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Um pouco de exegese:
O segmento “atravessava por entre a Samaria e a Galileia” (v. 11) – diá meson – constitui uma referência geográfica para justificar a presença dum samaritano no grupo dos dez leprosos. A frase, a única do Novo Testamento que inclui a preposição “diá” a reger acusativo com sentido locativo (através de), remete para o eventual facto de Jesus querer passar ao largo dos limites destas duas regiões para chegar ao vale do Jordão e descer logo para Jericó. A importância deste versículo radica no suposto facto de Lucas ter escassa informação sobre a geografia da Palestina, sendo que as suas referências geográficas têm uma intenção teológica.
A expressão “dez leprosos” (v.12) contrapõe este episódio ao da cura do leproso narrado na primeira fase do ministério de Jesus (Lc 5,12-14; Mc 1,41-44).
A locução adverbial “ao longe (v.12) significa que os leprosos suplicaram em voz alta, de longe, porque, devido à lei da segregação, não podiam aproximar-se das demais pessoas (cf Lv 13,45). Ficando longe, mas juntos e bradando juntos mostram-nos que a miséria junta as pessoas solidariamente e fá-las clamar a uma só voz e que, apesar de terem ficado ao longe, não perdem a confiança em quem interpelam. Mais: nem se importam com que entre eles esteja um estranho, já que a miséria é similar.
A frase imperativa “Mostrai-vos aos sacerdotes” (v.14) indica a vontade e o jeito de Jesus de levar as pessoas a cumprir o que estava prescrito na Lei. Tal como competia aos sacerdotes declarar o estado de doença de lepra, também lhes competia declarar a cura se ela se verificasse (cf Lv 14,2-23). Seria natural que os judeus se mostrassem aos sacerdotes de Jerusalém e o samaritano se mostrasse aos sacerdotes junto do monte Garizim. Além disso, antes de realizar o milagre, Jesus colocou à prova a fé dos leprosos, mandando-os cumprir o prescrito na Lei, até porque Deus gosta de agir através de mediações e não diretamente. Por outro lado, Cristo evita o milagre-espetáculo, de tal modo que eles não são curados ali diante de todos e de repente, num momento, mas quando iam a caminho.
Sentindo se curado, voltou…” (v. 15). Tal como o estrangeiro (sírio) Naaman regressou a junto de Eliseu depois de se sentir curado da lepra (vd 2Rs 5,14) para – reconhecendo que não há outro Deus em toda a Terra, senão o de Israel – oferecer presentes, que o profeta recusou, e levar “uma quantidade de terra, tanta quanta possam carregar duas mulas, pois dora­vante o teu servo não oferecerá holocaustos nem sacrifícios a outros deuses, mas só ao Senhor” (cf id v. 17). 
Dando graças” (v.16). O particípio eucharistôn, transpondo o sentido de “berak” hebraico (bendizer, abençoar) significa o mesmo que dar glória a Deus proclamando as suas ações redentoras na própria situação pessoal.
A frase negativa “não houve quem…” (v. 18) – à letra “não se encontraram…” – voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro”? É a admiração de Jesus a elogiar a fé e gratidão de quem voltou e censurar a displicência dos demais pela boa nova do prodígio em suas carnes.
A frase duplamente imperativa “Levanta-te e vai” (v. 19), seguida da declarativa “a tua fé te salvou”, conclui a narrativa do episódio, que destaca o papel desempenhado pela fé no mecanismo da cura evangélica, facto recorrente em narrativas deste tipo (cf 7,50; 8,48; 18,42).
O episódio termina com uma afirmação como nas parábolas e não com o assombro dos circunstantes como sucede nos demais casos miraculosos – o que leva alguns, influenciados por Bultmann, a considerarem este episódio como simples parábola, construção lucana fundada em Mc 1,40-45, tese que está longe de corresponder à realidade. O que se passa é que Lucas consigna, em 5,12-16, o texto referido por Marcos (cf Mt 8,1-4). Porém, o autor do 3.º Evangelho não repete relatos e é natural que no processo de transmissão oral, certos pormenores de parábola contaminem os relatos de episódios. Assim a parábola de “O samaritano agradecido” conjuga-se com a da viúva que pede justiça (vd 18,1-8), a do publicano que reza prostrado no fundo do templo (vd 18,9-14) e a do amigo importuno (vd 11,5-8) e sentenças subsequentes (vd 11,9-13) para assinalar as disposições requeridas para a oração: perseverança (batendo e tornando a bater, sem desanimar); gratidão e louvor; humildade; confiança; arrependimento ou compunção pelos pecados; e pedir o bem.
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A cura dos dez Leprosos ocorre quando da viagem de Jesus, da Galileia para Jerusalém, para consumar a redenção – um tempo de pedagogia e ensinamento de Jesus aos discípulos e de contacto de proximidade com as multidões. O caminho selecionado, o do vale do rio Jordão era o mais seguro e usual entre os judeus, para se fazer tal percurso. O Mestre porém, ao invés de seguir para o sul, indo diretamente para Jerusalém, escolhe passar nos confins de Samaria e Galileia, tomando a direção leste, que levava para além do Jordão e para a região da Pereia, evitando as manifestações de ódio dos samaritanos para com os judeus, de modo a causar-lhes toda a espécie de vexames, como era usual sobretudo quando se deslocavam em peregrinação a Jerusalém. Por outro lado, a razão de Jesus modificar o seu trajeto é ir propositadamente ao encontro daqueles que estavam abandonados e deixados à sua própria sorte.
Estavam, pois, Jesus e seus discípulos em uma região aberta e fora das cidades, em que havia pequenas aldeias, constituídas em sua maioria por pessoas excluídas da convivência social, por motivos de saúde física ou religiosa. Muitos moradores daquelas aldeias eram judeus, que duma forma ou de outra, já tinham participado do culto e da religião judaica. Mas algo aconteceu em suas vidas, que os relegou ao isolamento e ao esquecimento por parte das autoridades religiosas.
Praticamente ninguém passava pelo caminho que levava àquela aldeia de leprosos, pois, se entrassem ali, os judeus seriam considerados contaminados e impuros.
Os dez leprosos pediram misericórdia.
Ao pararem longe de Jesus, estavam a cumprir a Lei, que mandava que mantivessem uma distância mínima de 15 metros duma pessoa sadia. Aqueles leprosos também tinham sido religiosos. Porque foram ensinados no caminho da lei, conheciam-na. Teriam família e amigos, mas agora ninguém os podia ajudar.
Por isso andavam em grupo. Só um leproso compreendia e cuidava outro leproso. E a discriminação, o sentimento da impureza física e espiritual, de ser pecador atingido pela maldição divina, sem saber qual o pecado que lhe originara a lepra, era um fardo pesado que ele carregava com muita dor em seu coração. Quem sabia dos seus questionamentos, que erro havia cometido para merecer tal “punição”? Seguira todas as receitas e prescrições rabínicas. Cumprira todas as ações litúrgicas. Fora fiel às teologias sacerdotais, mas nenhuma oração dogmática foi capaz de o livrar do fatídico destino de impureza.
Assim, na aproximação de Jesus, os leprosos mudam a usual forma de oração judaica, que tantas vezes no passado recitaram (deixaram as formalidades naquele momento), trocando-a por um pedido dramático e lancinante: “Levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós” (v. 13). E o Mestre, ao vê-los em tão humilhante situação, move-se de íntima compaixão, lança uma profética palavra de fé, em que alcançaria a cura o que acreditasse nas suas palavras:
E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide e mostrai-vos aos sacerdotes. E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos. (v. 14).
Os dez leprosos partiram ainda doentes, mas creram que Deus os livraria do seu cativeiro.
A ordem de Jesus apontava para a Lei. E a Lei previa que um leproso, ao sentir-se curado, deveria apresentar-se ao sacerdote:
Esta será a lei do leproso no dia da sua purificação: será levado ao sacerdote (Lv 14,2).
Havia toda uma prescrição na Lei, acerca do cerimonial que o sacerdote deveria fazer para se confirmar a cura dum leproso. Mas esse ritual nunca havia sido usado, nunca antes de Jesus se havia sabido de que algum leproso fora curado.
Apenas um dos dez leprosos volta para agradecer ao Mestre. Enquanto iam ainda no caminho, são todos curados milagrosamente pelo poder de Jesus, o que os deixou alegres. Nove continuaram a caminhar em direção à Jerusalém, mas um leproso julga importante voltar e demonstrar a sua gratidão ao seu redentor.
“E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus em alta voz; e caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças; e este era samaritano” (Lc 17,15-16).
Jesus já estava habituado à ingratidão humana, porém demonstrou seu descontentamento com o proceder dos nove leprosos judeus. O Mestre havia-os restituído à vida. Mas os leprosos, curados, também reassumiram a sua religiosidade e deram maior preferência a cumprir a letra da lei, do que à gratidão. Aí vemos que o leproso estrangeiro, samaritano, de raça mestiça, de religião profana, não se deixou aprisionar pelas formalidades, mas, agradecido, jubiloso, compreendeu que Jesus era a própria a Lei em Pessoa.
E, respondendo Jesus, disse: Não foram dez os limpos? E onde estão os nove? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro? E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou. (Lc 17,17-19).
O leproso sabia que tinha de cumprir a Lei; mas espiritualmente entendeu que antes de cumprir com cerimoniais, necessitava de honrar Aquele que tinha mostrado tão grande compaixão pela sua vida. E ele vem e prostra-se; adora-O; é perdoado; é salvo.
Assim, quando este samaritano, ex-leproso se prostra diante do Mestre, estava a cumprir a maior Lei que pode existir no universo e nas dimensões espirituais: a imensurável Lei da gratidão e do amor. O código, a letra da Lei, por si mesma, nunca houvera curado um leproso: era necessária a participação da Misericórdia de Jesus. A graça e a gratidão têm um poder imensurável. A Graça faz misericórdia a todos quantos por ela clamam.
A Graça opera na Lei, para a Justificação e Cura. A gratidão vem em primeiro lugar, antes de qualquer ato de religioso:
Porque eu quero a misericórdia, e não o sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos (Os 6,6).
Deus espera que, como o leproso curado, entendamos a superioridade do perdão e da graça. A Lei mostra que temos falhas; a Graça clama pela Misericórdia. A graça pratica a injustiça da misericórdia. E muitos, como os outros leprosos, são apanhados pela graça, recebem algo de Deus, mas esquecem-se do favor imerecido que imerecidamente receberam. E voltam a ser religiosos, presos à letra da lei, às liturgias, aos costumes e às teologias. Tudo isso deve servir de orientação. Porém, no final, viveremos da fé:
O justo viverá pela fé; e, se ele recuar, a minha alma não tem prazer nele” (Heb 10,38).
***
Os leprosos, juntos pela desgraça, incluindo um estrangeiro, representam-nos como Igreja Universal e Igreja de pecadores que somos e solidários no pecado – comunidade onde todos cabem, pois, o número “dez” para os mestres hebreus significava a totalidade. Assim, como os 10 rezavam juntos implorando misericórdia e com confiança, mesmo à distância, também nós devemos rezar juntos, com confiança, implorando misericórdia, não egoisticamente só para nós e por nós, mas por todos e com todos. Depois, devemos rezar com fé, humildade e gratidão como o samaritano, fazendo de Cristo a nossa referência e Dele a nossa glória.
Obviamente que devemos implorar compaixão e perdão e doar também compaixão e perdão. E temos de levar os outros a suplicar com fé, humildade e confiança, a pedir compaixão e perdão; a doar perdão e compaixão; e a agradecer, bendizer, adorar, louvar e glorificar o Senhor”!
- Cf: Conferência Episcopal Portuguesa. Missal Popular Dominical. 5.ª ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra, pg 1024; Lancelloti, A. – Bocalli, G. (1979). Comentário ao Evangelho de São Lucas. Petrópolis: Vozes; Stuhlmueller, C. (1971). “Evangelio segun San Lucas”, in Brown, R et alii. Comentario Biblico ‘San Jeronimo. Madrid: Ed, Cristiandad; Tuya, M. (1971). Biblia Comentada. Vol. V – Evangelios (2.º). Madrid; BAC.

2016.10.10 – Louro de Carvalho

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