quinta-feira, 13 de outubro de 2016

No 54.º aniversário do início do Vaticano II e o pós-Concílio

Em texto anterior, perguntava-me se o Concílio melhorara o mundo e a Igreja.
Se olharmos o mundo, ele apresenta, visto a olho nu, mais contrassinais que realidades a espelhar o dom de Deus – na violência, na opressão, no esmagamento do próximo e na negação de Deus e da dignidade humana. Mikhail Gorbachev, ex-líder soviético, terá mesmo avisado que o mundo está num “ponto perigoso” no respeitante ao crescimento da tensão entre russos e americanos.
Porém, se o olharmos um pouco mais com o olhar de Deus, vemos emergir os seus sinais num mundo que procura Deus e a espiritualidade, escuta a voz da Igreja, tenta entender-se a vários níveis na procura da convivência e da paz. A própria série de declarações em torno da aclamação do Secretário-Geral da ONU eleito mostra a vivacidade das preocupações pela paz, convivência, respeito pelos direitos humanos e preservação e promoção da dignidade humana.
E a Igreja? Há, de facto, muitas deserções, muita indiferença, muita instalação, manipulação e cobardia – a ponto de o Papa Francisco ter sentido a necessidade de chamar à razão os fiéis a integrarem a Igreja como num dinamismo de caminhada, estado de saída às periferias existenciais, ter decretado o Ano da Vida Consagrada e ter convocado o Ano Jubilar da Misericórdia para o aprofundamento do ser da Igreja e para a assunção da vida cristã em consonância com o Evangelho. E as pessoas, os grupos correspondem: Francisco faz escola.
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O padre Duarte da Cunha, em A Voz da verdade, de 14 de outubro de 2014, dizia que “para quem nasceu depois do encerramento do Concílio e atualmente tem como missão organizar encontros de bispos europeus”, é impressionante imaginar uma reunião de mais de 2000 bispos e ver como um número tão grande e diversificado, em períodos de 2 meses, durante 4 anos, se encontraram para juntos escreverem uma série de 16 documentos que são, ao mesmo tempo, capazes de confirmar e reforçar a fé católica e tornar mais atual a sua expressão. Com efeito, em 4 anos, foram preparados, discutidos, corrigidos e aprovados aqueles documentos (4 constituições, 9 decretos e 3 declarações), ainda atuais, não só para padres e teólogos, mas para quantos desejam perceber melhor o modo como a Igreja está presente no mundo. Pouca gente os terá lido à séria. Muitas vezes são tratados como se fossem apenas mais textos, sem que se dê conta do “valor especial destes textos escritos por todos os bispos em comunhão com o Papa”. Mas os textos estão disponíveis como manancial de doutrina e como manual de ação pastoral e apostólica.
Bento XVI – diz o articulista – quis recordar o Concílio, 50 anos após a sua abertura, para levar as pessoas a lerem esses tesouros da fé católica. Por isso, convocou o Ano da Fé. É certo que os textos conciliares não são simples e foram muitas vezes mal usados. Nos anos 60 e até aos anos 80, houve muitos que entenderam que eles pouco interessavam porque deviam ser considerados apenas uma etapa dum processo de modernização da Igreja e que o importante era o “espírito” do Concílio. Daí surgiu a tendência de considerar o Concílio como o ponto de rutura entre o antes e o depois, sendo que “antes era tudo errado e depois era tudo bom”. Esta linha de interpretação, marcada pela contaminação da mentalidade mundana do tempo, queria negar tudo o que fosse passado e julgava inventar tudo de novo, o que levou a que o Concílio fosse abusivamente usado para todo o tipo de experimentalismos doutrinais, litúrgicos, pastorais, etc. Esse tempo passou e “a infecundidade de tal atitude, por toda a Europa, mostra que estava errada”.
E três grandes Papas – Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI – todos protagonistas do próprio Concílio, permitem uma leitura dos documentos que mostra o verdadeiro valor do Concílio. Não se pode perceber o significado do Concílio e o sentido dos seus documentos sem a ajuda do magistério dos Papas. O que se consegue à luz de dois princípios.
Um dos princípios vem-nos de Karol Wojtyla a assegurar “que todos os Concílios têm como missão enriquecer a fé dos crentes”. É um enriquecimento conceptual – “perceber aquilo em que acreditamos, distinguindo o erro da verdade revelada” – e um enriquecimento da experiência de fé – “viver de modo mais profundo e autêntico a fé”. Ora, o Vaticano II, com acrescida razão por pretender desde o início ser um Concílio pastoral, deve ser lido neste sentido. Por isso, todas as interpretações que recorrem ao “espírito” contra a “letra” e que, em vez de enriquecerem a fé, levam a uma perda da fé, não respeitam a vontade dos Padres Conciliares nem reconhecem “a presença do Espírito Santo na aula conciliar”.
O segundo princípio é dado por Bento XVI na linha da “hermenêutica da continuidade”, isto é, da interpretação do que o Concílio diz no quadro da Tradição dinâmica da fé e não em rutura com ela. Assim, se alguém entende que o Concílio contradiz o que a Igreja dizia antes, não o percebeu. Ora, “a continuidade é compatível com o desenvolvimento”, pelo que podemos dizer que há coisas que hoje se percebem melhor ou que se percebem como resposta aos desafios que antes não eram conhecidos. Porém, a continuidade não é compatível com a rutura, pelo que os que pretendem que de São Paulo ao Vaticano II só houve decadência, não são verdadeiramente católicos, não veem a fecundidade da fé manifesta em todas as épocas históricas em tantos santos e tantas obras e tão empolgante cultura e pecam por orgulho ao pensarem ser melhores que os antepassados. Seria bom que as gerações atuais e as subsequentes conhecessem o Concílio para enriquecerem a fé e para se sentirem membros duma realidade histórica – a Igreja – que nos liga sem interrupções aos Apóstolos e ao próprio Jesus – a referência da Igreja.
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Se Paulo VI, em Novembro de 1964, anunciou o desejo de terminar as sessões do Concílio Vaticano II com a alegria de invocar a Virgem Maria com o título de Mater Ecclesiae (Mãe da Igreja), Francisco, no quadro do Ano da Misericórdia, quis assinalar este ano jubilar com o Jubileu Mariano cujo encerramento ocorreu no passado dia 9 de outubro, a dois dias do 54.º centenário do início do Vaticano II.
Recorde-se que a insistência de Francisco na dimensão da misericórdia de Deus e da Igreja é tão conciliar como a dimensão pastoral do Concílio ou com a da Igreja em saída, que o Vaticano II propôs. O próprio João XXIII, no discurso de inauguração da magna assembleia, propunha que a Igreja enveredasse pela via da misericórdia em vez da severidade.
Francisco, na missa do Jubileu Mariano, abordou a temática sugerida pelas leituras da Liturgia da Palavra do XXVIII Domingo do Tempo Comum, que nos convida a “reconhecer, com maravilha e gratidão, os dons de Deus”, pois, “ao longo da estrada que O leva à morte e à ressurreição, Jesus encontra 10 leprosos, que vêm ao seu encontro, param à distância e gritam o seu infortúnio ao Homem em quem a fé deles intuiu um possível salvador: ‘Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós!’” (Lc 17,13). E o Papa sublinha que Jesus, ao mandá-los apresentar-se aos sacerdotes, a quem, pela Lei, incumbia declarar a eventual cura, nunca até então sucedida, não Se limita a uma promessa, mas pôs à prova a fé daqueles homens. Ainda não estavam curados, mas recuperaram a saúde depois de se porem a caminho em obediência à palavra de Jesus. Cheios de alegria, apresentaram-se aos sacerdotes e seguiram o seu caminho, mas esquecendo o doador, “o Pai que os curou por meio de Jesus, seu Filho feito homem”.
A única exceção foi um samaritano, marginalizado do povo eleito, mas que não se contentou com a cura através da sua própria fé, mas faz que a cura atinja a plenitude voltando atrás para agradecer o dom, “reconhecendo em Jesus o verdadeiro Sacerdote que, tendo-o erguido e salvado, pode fazê-lo caminhar acolhendo-o entre os discípulos. É, de facto, fácil ir ter com o Senhor – anota Francisco – a pedir-Lhe, mas voltar para agradecer é mais complicado.
Assim, nesta Jornada Jubilar, o Papa propõe “o modelo a contemplar: Maria, a nossa Mãe”. Tendo recebido o anúncio do Anjo, deixou brotar do coração o cântico de louvor e gratidão a Deus: ‘A minha alma glorifica o Senhor....’. Por isso, o Pontífice pretende que “peçamos a Nossa Senhora que nos ajude a entender que tudo é dom de Deus e a saber agradecer”. Depois, garante-nos que “a nossa alegria será completa”, pois “só quem sabe agradecer experimenta a plenitude da alegria”.
Porém, para saber agradecer, exige-se a humildade. E o Papa menciona o caso de Naaman, comandante do exército do rei da Síria (cf 2 Re 5,14-17), leproso, que aceita a sugestão duma pobre escrava, para se curar, e se confia aos cuidados do profeta Eliseu, que para ele é um inimigo. Naaman está disposto a humilhar-se. E Eliseu nada pretende dele; manda-o apenas mergulhar na água do Jordão. É uma exigência que deixa Naaman perplexo e contrariado face a ordens para “fazer coisas tão banais”. Voltava a casa, quando por sugestão dum servo, aceita mergulhar no Jordão, operação de que resulta a cura imediata. Diz-nos Francisco, a propósito da humildade, que
“O coração de Maria, mais do que qualquer outro, é um coração humilde e capaz de acolher os dons de Deus. E, para Se fazer homem, Deus escolheu-A precisamente a Ela, uma jovem simples de Nazaré, que não vivia nos palácios do poder e da riqueza, que não realizou feitos extraordinários.”.
Depois, interpela-nos se estamos dispostos a receber os dons de Deus ou se preferimos fechar-nos nas seguranças materiais, intelectuais ou dos nossos projetos ou na nossa suficiência.
Considerando que Naaman e o samaritano são dois estrangeiros, o Papa exclama:
“Quantos estrangeiros, incluindo pessoas doutras religiões, nos dão exemplo de valores que nós, às vezes, esquecemos ou negligenciamos! É verdade: quem vive a nosso lado, talvez desprezado e marginalizado porque estrangeiro, pode-nos ensinar como trilhar o caminho que o Senhor quer.”.
Ora, a Mãe de Deus, com José, seu esposo e o Menino, experimentou a separação da sua terra. Foi estrangeira no Egito, longe de parentes e amigos. Contudo, pela fé venceu as dificuldades. Por isso, Ela é o modelo humano da gratidão, da fé, da humildade e da resiliência. É, pois, imperioso que guardemos intimamente a fé simples da Mãe de Deus e Lhe peçamos a graça de saber voltar a Jesus a agradecer-Lhe “pelos inúmeros benefícios da sua misericórdia”.
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À recitação do Angelus, o Papa saudou os peregrinos que participaram no Jubileu Mariano, agradecendo a sua presença e repetiu com eles as palavras de são João Paulo II a 8 de outubro de 2000, no Ato de consagração jubilar a Maria: “Queremos, hoje, consagrar-Te o futuro que nos espera. A humanidade pode fazer deste mundo um jardim, ou reduzi-lo a um amontoado de ruínas”. E implorou da Virgem a ajuda para “escolher a vida, acolhendo e praticando o Evangelho de Cristo Salvador”.
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Na véspera, na alocução que proferiu na vigília de oração, referiu que os peregrinos repassaram “os momentos fundamentais da vida de Jesus, com Maria”. E, no quadro dos mistérios gloriosos do rosário, “estivemos nos dias do cumprimento da missão de Cristo no mundo”. Assim,
“A Ressurreição como sinal do extremo amor do Pai, que de novo traz tudo à vida, e como antecipação da nossa condição futura. A Ascensão como partilha da glória do Pai, onde a nossa própria humanidade encontra um lugar privilegiado. O Pentecostes, expressão da missão da Igreja na história até ao fim dos tempos, sob a guia do Espírito Santo. Além disso, nos dois últimos mistérios, contemplámos a Virgem Maria na glória do Céu – Ela que, desde os primeiros séculos, foi invocada como Mãe da Misericórdia.”
Depois, falou do Rosário como “síntese da história da misericórdia de Deus que se transforma em história de salvação para aqueles que se deixam plasmar pela graça”. E referiu:
“Os mistérios propostos são gestos concretos em que se desenvolve a ação de Deus em nosso favor. (…). Revemos o seu rosto misericordioso que vai ao encontro de todos nas várias necessidades da vida. Maria acompanha-nos neste caminho, apontando para o Filho que irradia a própria misericórdia do Pai. Ela é verdadeiramente a Odigitria, a Mãe que indica o percurso que somos chamados a fazer para sermos verdadeiros discípulos de Jesus.”
Com efeito, sempre que contemplamos “um mistério da vida de Cristo, somos convidados a individuar o modo como Deus entra na nossa vida, para depois O acolhermos e seguirmos” e, acolhendo e assimilando alguns acontecimentos salientes da vida de Jesus, “participamos na sua obra de evangelização, para que o Reino de Deus cresça e se propague no mundo”. Seremos discípulos, missionários, apóstolos e “portadores de Cristo, nos lugares onde Ele nos pede que estejamos presentes”. Não podendo encerrar o dom da sua presença dentro de nós, “somos chamados a comunicar a todos o seu amor, a sua ternura, a sua bondade, a sua misericórdia”. É a alegria da partilha que não se detém perante coisa alguma, mas leva um anúncio de libertação e salvação.
Maria ensina-nos a compreender o que é ser discípulo de Cristo. Predestinada para ser a Mãe, aprendeu a fazer-Se discípula. O primeiro passo foi escutar Deus: “obedeceu ao anúncio do Anjo e abriu o coração para acolher o mistério da maternidade divina”; seguiu Jesus, escutando “cada palavra que saía da boca d’Ele (cf Mc 3,31-35); conservou tudo no seu coração (cf Lc 2, 19), “tornando-Se memória viva dos sinais que o Filho de Deus realizou para despertar a fé”. Porém, conquanto a escuta seja o primeiro passo, precisa de ser traduzida em ação. Na verdade, o discípulo põe a sua vida ao serviço do Evangelho e compromete-se no serviço aos irmãos. E o Papa fez desfilar o filme da vida ativa de Maria no tocante às consequências do discipulado:
Foi ter com Isabel para a ajudar; em Belém, deu à luz o Filho de Deus; em Caná, teve a peito a situação de dois recém-casados; no Gólgota, permaneceu ao pé da cruz de Jesus e, por vontade d’Ele, tornou-Se Mãe da Igreja; depois da Ressurreição, animou os Apóstolos reunidos no Cenáculo à espera do Espírito Santo, que os transformaria em corajosos arautos do Evangelho.
Em toda a sua vida, Maria realizou tudo quanto se pede à Igreja que cumpra em perene memória de Cristo – disse o Papa. Por isso, A invocamos com a oração mais antiga que os cristãos fizeram para se dirigirem a Ela, sobretudo nos momentos de dificuldade e martírio: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita”.
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Talvez estejamos a retomar a rota genuína do Vaticano II sob a égide da Mater Ecclesiae.

2016.10.13 – Louro de Carvalho

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