António
Guterres será o novo secretário-geral da ONU. O português foi aprovado hoje por
aclamação, após ter contado com 13 votos a favor dos membros do Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Presidente Marcelo manifestou regozijo; Governo
ficou satisfeito; Parlamento votou unanimemente o voto de congratulação; e o
escolhido disse gratidão e humildade e pediu solidariedade em torno do ainda
secretário-geral para que termine o mandato com êxito.
Ambas as expressões grifadas em epígrafe figuram na carta em português enviada ao
ex-Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR) e agora recomendado para secretário-geral
da ONU e revelada hoje, dia 6 de outubro, pelo Presidente da Comissão Europeia Jean-Claude
Juncker, que transmite “calorosas felicitações” a Guterres, sublinhando a sua
longa experiência em criar consensos no âmbito internacional.
Isto é tanto mais estranho,
embora justo, quanto se sabe que o executivo liderado pelo eurocrata
luxemburguês, não morrendo de amores pelo candidato português, criou as
condições para o aparecimento, súbito e na reta final, da búlgara Kristalina Georgieva,
vice-presidente da Comissão Europeia, proposta pelo Governo do seu país de
origem, apoiada por Ângela Merkel e apadrinhada ativamente pelo nosso
concidadão Mário David, a formiguinha europeia, que fura, a nível de contactos,
por onde parecia impossível.
***
Quando Guterres anunciou a demissão, em dezembro de 2001,
alegadamente para não deixar o país mergulhado no pântano resultante da derrota
socialista nas eleições autárquicas que haviam ocorrido, não era um chefe de
governo popular. Depois de 6 anos de chefia do executivo, encontrava-se
sistematicamente flagelado no Parlamento, ensarilhado no triturante aparelho
partidário, amarrado pela política dos consensos, realisticamente desencantado
e sem ânimo para mais 2 anos de governança com o grupo parlamentar empatado com
os demais deputados.
Muitos, à esquerda, não lhe perdoaram a saída, que abriu caminho ao governo
de Durão Barroso, embora lhe tivessem, antes, vituperado o referendo ao aborto
e à regionalização, à boleia de Marcelo, o seu confesso catolicismo ou as
excelentes relações com a Igreja Católica e com alguns dos grandes empresários.
A direita apontava-lhe a hesitação dos últimos tempos, a incapacidade de
controlar a despesa pública, a imagem de “picareta falante” com que alguns o
denominavam. Todavia, o então primeiro-ministro demissionário sempre se afirmou
um político extraordinariamente culto, devotado às grandes causas e com uma
invulgar capacidade de raciocínio e notório poder de comunicação, a ponto de Paulo
Portas e Francisco Louçã, dois dos mais brilhantes parlamentares ao tempo serem
irreparavelmente vencidos por Guterres nos debates parlamentares.
Ademais, ainda ontem António Costa referiu elogiosamente o seu consulado
por ter cumprido como prometeu: não aumentar impostos, tendo baixado alguns;
não ter reduzido as pensões, como prometera não reduzir; repor ou aumentar
salários como prometera; e atribuir o rendimento mínimo garantido (agora rendimento
social de inserção), como
prometera. E podia bem dizer da concretização da paixão pela educação, pelo
alargamento da educação pré-escolar, reforço da construção de equipamentos
escolares e alteração cirúrgica, mas significativa, da Lei de Bases do Sistema
Educativo.
Não sei, pois, se poderá continuar a dizer-se que não foi bom
primeiro-ministro, pelo menos em comparação com os que se lhe seguiram, que
levantaram a onda gigante e quase nunca acabada de crispação do país, cavando o
fosso entre trabalhadores do setor público e do setor privado, fomentando o
conflito intergeracional, entrando como ferro em madeira verde na carteira dos
contribuintes, esvaziando de sentido e conteúdo a educação (a nível
curricular e ao nível da escola pública) e o
sistema nacional de saúde, enfim, engrossando a clientela do Papa dos pobres.
O à vontade comunicativo de Guterres em televisão era de tal ordem que, em
1999, propôs à SIC que os debates para as eleições legislativas se processassem
em sucessivos “frente a frente”, num figurino que não existia e que depois se
generalizou. Por conseguinte, Guterres debateu a dois com Durão Barroso, Carlos
Carvalhas e Paulo Portas e venceu literalmente os debates. Não obstante, embora
melhorasse o número de deputados apurados para o seu partido, não mobilizou
indecisos e abstencionistas e falhou a maioria absoluta por um deputado. A
partir daí, o seu consulado não mais foi o mesmo: deu poder excessivo a Pina
Moura e visibilidade excessiva a Sócrates e a Vara; perdeu o apoio fulcral de
Jorge Coelho depois da tragédia de Entre-os-Rios; e tornou-se um indeciso líder
de governo.
Entretanto, esvaziado de poder a nível interno, refulgiu na presidência
portuguesa da UE, onde colheu louros de todos os quadrantes e mostrou o que
melhor sabe fazer – diplomacia – para o que não lhe falta cultura geral, capacidade
oratória, segurança retórica e sentido de oportunidade, em que é difícil de
igualar, não tanto por natureza, mas sobretudo afincada aplicação. Além do
estudo dos dossiês, teve adestramento em dicção e colocação de voz, de modo que
nunca ficou rouco nas longas campanhas eleitorais. Por outro lado, constrói,
lê, decora e sublinha as frases que pensa que os jornalistas vão usar e,
segundo Ricardo Costa, “quando discursa num palco fixa dois ou três
espectadores e modela o discurso em função das suas reações”. O mesmo Ricardo
Costa comenta (vd Expresso on line, de 5-10-2016):
“Nada disto é incomum em políticos muito profissionais
ou aplicados. Mas Guterres é o mais profissional e aplicado dos políticos
portugueses do pós-25 de abril. Não é o que mais mudou o país, nem o que
provocou mais paixões ou ódios, muito menos o que mais animou uma área
política. Não chegou à liderança do PS numa onda de glória, mas numa luta
fratricida com Sampaio, nem abandonou o poder pela porta grande, longe disso.
Mas era e é o mais dotado de todos.”
***
Conhecidos que foram os resultados da última votação informal pelo Conselho
de Segurança (CS) para a indigitação do único
candidato à eleição de Secretário-Geral das Nações Unidas, ocorrida ontem, 5 de
outubro, que deram como certo António Guterres, as reações não se fizeram
esperar. É certo que faltava a votação formal no CS e a subsequente eleição
pela Assembleia-Geral da ONU, pelos 193 representantes dos respetivos
países-membros. Porém, dado que na 6.ª votação informal, em que enfrentou a
recém-apresentada Georgieva,
Guterres ficou com 13 votos “encoraja” e nenhum veto (bastava o
veto de um dos 5 membros permanentes do CS: Rússia, Estados Unidos, China,
Reino Unido ou França para a candidatura do português abortar), o resultado da votação formal foi garantido e a
subsequente eleição será um facto. Só uma reviravolta impensável é que poderia ter
frustrado as expectativas criadas no mundo inteiro.
Assim, é que a embaixadora na ONU por parte dos EUA, o da Rússia e os de
outros países já o felicitaram e desejaram o maior êxito. Em todo o mundo, o
ambiente é de aceitação e regozijo, com exceção de algumas vozes de movimentos
feministas, que exprimiram o seu desencanto por não ter sido “nomeada” uma
mulher.
Soa bem a boa disposição manifestada pela Espanha e por Timor-Leste. A de
Espanha resulta por motivos de boa vizinhança; e a de Timor-Leste, por ter sido
com Guterres que aquele país reavistou a independência, inaugurou a democracia
e passou ao dinamismo da reconciliação nacional. No entanto, Ramos Horta afirma
que não é só por Timor que está contente pela escolha de Guterres, mas sobretudo
pelo perfil do escolhido, que é o melhor de todos, pelo currículo, pela cultura
e pela capacidade de desencadear o diálogo – e por aquilo de que o mundo precisa.
É também de registar com agrado a posição do Presidente da Comissão Europeia, apesar do que foi
dito acima, que fala num “enorme triunfo pessoal” de Guterres, que foi
escolhido para liderar as Nações Unidas através dum processo de seleção duma
“transparência sem precedentes”. Sabemos que foi o mérito do candidato que
pesou, quer do lado do currículo de experiência como chefe de Governo e de
ACNUR (Alto
Comissário das Nações Unidas para os Refugiados), quer do lado da personalidade culta, dialogante e
devotada às grandes causas da humanidade, quer ainda da forma como se
apresentou e explicou perante a AG (Assembleia Geral).
Quanto à transparência sem precedentes, ela foi
prometida e crê-se que os responsáveis centrais a honraram, mas temeu-se que a
entrada à última hora da novel candidata búlgara viesse a baralhar as coisas –
o que não fora preventivamente acautelado. Bastava ter-se fixado um prazo a
partir do qual não seriam aceites mais candidaturas, a expirar antes do começo
das audições.
Juncker
manifesta-se “extremamente satisfeito” pela nomeação de Guterres para
secretário-geral das Nações Unidas (ONU) e
deseja-lhe êxito na condução do novo cargo, justificando-se na missiva que lhe
enviou:
“O facto de ter emergido como a escolha
unânime do Conselho de Segurança das Nações Unidas, depois de um processo de
seleção de uma transparência sem precedentes, representa um enorme triunfo
pessoal e o reconhecimento de sua longa experiência em gerar consensos no
domínio dos assuntos internacionais”.
Sustenta
que a nomeação constitui “forte sinal de esperança” para responder aos atuais
desafios, como “a manutenção da paz e da segurança nível internacional, as
migrações, as alterações climáticas, assim como a promoção e defesa do respeito
dos Direitos Humanos”. E termina a carta com a referência “All the best”, depois de garantir “estar disponível” para
“colaborar estreitamente” com António Guterres com vista a encontrar respostas
para os atuais desafios.
***
Em Portugal, criou-se um certo unanimismo em torno da candidatura
do antigo ACNUR e ex-primeiro-ministro. Não sei se Mário David se inclui nesta
onda, perdida que foi a oportunidade da sua amiga búlgara.
O Presidente da República defende, em artigo de opinião no
“Diário de Notícias” de hoje, que
Guterres sempre foi “claramente” o melhor para o cargo, “pelas suas qualidades
pessoais, pelo seu currículo na própria ONU, pela capacidade de visão e de
equação dos principais problemas universais”. Insistindo
em que Guterres “é o melhor para o cargo” de secretário-geral da ONU pela sua
“capacidade e visão”, escreveu:
“Vencer na cena internacional é extremamente complexo, tal a junção de
razões conjunturais e estruturais, ainda por cima num mundo mais imprevisível
do que nunca. Mesmo para os melhores. Mas, quando os melhores ganham é bom, é
muito bom. Foi o que aconteceu neste caso”.
E
Marcelo destaca os esforços diplomáticos de outros envolvidos na candidatura:
Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, o ex-Presidente Jorge
Sampaio e o embaixador Álvaro de Mendonça Moura. No entanto, relativizando
estas referências, assegura:
“Tudo isto é verdade. Mas António Guterres foi
o melhor. Pelo facto muito simples de que é o melhor. De longe. Por isso, a
vitória é, em primeira linha, sua. Ou, se quisermos ser justos e prospetivos,
da comunidade internacional, que soube perceber o que estava em causa. E teve a
coragem de escolher em conformidade.”
Todos
os partidos portugueses com assento parlamentar mostraram o seu regozijo
público pela nomeação do português, frisando não só a sua índole lusa, mas
também o mérito próprio acumulado e a capacidade para enfrentar os desafios do
mundo, que Juncker enunciou.
***
O
Conselho de Segurança acabou hoje por aprovar hoje a resolução a indicar o nome
Guterres para a AG das Nações Unidas, formalizando assim a eleição do sucessor
de Ban Ki-moon. Guterres vai liderar, pois, a partir de janeiro, uma casa que
conhece bem, depois de ter chefiado o ACNUR, entre junho de 2005 e dezembro de
2015, uma organização com cerca de 10.000 funcionários em 125 países.
***
Samantha Power, embaixadora dos Estados Unidos junto da
ONU, sublinhou a união concitada entre os 15 países
membros do Conselho de Segurança em torno de António Guterres, “devido às
provas que deu na sua carreira e durante a campanha” – “uma pessoa que impressionou ao longo de todo o processo e impressionou
a vários níveis de serviço”.
O CS,
com a presença de todos os embaixadores, anunciara que o português era o
“vencedor claro” e que avançava já hoje para a aprovação de uma resolução que
propõe o nome de Guterres para aprovação pela Assembleia Geral – situação já
verificada.
À partida estava derrotado, não era mulher nem do
Leste europeu. Mas deram-lhe um palco, o suficiente para se mostrar o que era:
o melhor As palavras adequadas foram de um, o embaixador russo Vitaly Churkin, em
nome de todos: “Hoje, depois da sexta
votação temos um claro favorito, António Guterres”. E hoje, dia 6, foi
aclamado.
O mundo da ONU é dirigido com cuidados, não tanto de agradar
a todos, mas fazendo questão de que ninguém poderoso seja forçado. Por isso no
topo do poder, o Conselho de Segurança, esse ajustamento é feito com o direito
de veto dos membros permanentes. As palavras do russo e o sorriso da americana,
virados para o mesmo objetivo – a eleição do secretário-geral –, significaram que
o compromisso fora obtido com sucesso. Guterres jogava, afinal, em casa. O compromisso
é a sua aposta favorita e a arma que tem ao dispor.
Obviamente, Guterres não revelou, no palácio de vidro, em
Nova Iorque os pormenores que atravessaram a candidatura e as diligências
feitas em Portugal e no resto do mundo. Levou, porém, consigo a maneira de ser
que o fez ser um conciliador eficaz em prol do bem e da paz.
Prosit mundo!
2016.10.06 – Louro de Carvalho
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