Os direitos pessoais a que a
opinião pública é sensível – e com razão – postulam a articulação entre a vida
profissional e a relação familiar, que se pretende íntima, eficaz e confortante.
É certo que muitos empregadores
têm infelizmente pouca estima por este direito laboral e a fiscalização das
condições do trabalho teria ser muito mais assídua, ativa e eficaz, devendo
promover a punição dos prevaricadores. Mas também sucede que há situações de exagero
da parte de quem trabalha não percebendo o escopo da empresa ou serviço,
sobretudo quando está em causa a segurança de pessoas e bens. Mal iria ao mundo
se, por exemplo, militares e polícias pretendessem sobrepor o aconchego familiar
quando o interesse público, plasmado na defesa e segurança das pessoas,
estivesse em perigo.
***
Este introito vem ao caso a propósito
do artigo de Ana Henriques que o
Público deu à estampa no passado dia
24 de outubro. Um casal de pilotos perdeu ação contra a companhia
SATA, uma vez que os juízes entendem que pode ficar comprometida a segurança
dos passageiros se os laços familiares se sobrepuserem à relação hierárquica,
ao que um especialista em direito laboral reage falando de violação de
preceitos constitucionais e disposições internacionais.
Não sei se o especialista em
direito do trabalho conhecido na nossa praça tem razão, dado que a Constituição
não estabelece propriamente uma hierarquia de direitos. E, se algum direito se sobrepõe
aos demais, esses são o direito à vida, à integridade, à segurança e à livre
circulação.
O litígio
entre o casal e a administração da SATA
dura desde 2013 e já originou atrasos de várias horas em ligações aéreas, com o
casal a tentar embarcar em conjunto, mas sem sucesso.
Diga-se que não está em causa o
facto de marido e mulher viajarem no mesmo voo, desde que haja disponibilidade
da empresa, mas a cooperação profissional na pilotagem do mesmo voo, ou seja, o
casal de pilotos está proibido de partilhar o cockpit do avião.
Tanto os juízes do Tribunal do Trabalho
como os que apreciaram a questão em segunda instância, após o casal ter recorrido
da sentença inicial, acolheram os argumentos da SATA, caso que o Sindicato dos
Pilotos da Aviação Civil se abstém de comentar – ou seja, o Tribunal da Relação
de Lisboa acabou por validar a decisão da companhia aérea SATA Internacional de
impedir que marido e mulher voem juntos. O acórdão da Relação é claro quando
refere:
“O tipo de
relacionamento existente entre membros do mesmo agregado familiar, designadamente
cônjuges, pode mais facilmente abrir brechas na relação hierárquica vertical
entre piloto e copiloto, o que faz aumentar o risco quanto à segurança dos voos”.
Já em 2013, questionado sobre a questão,
Paulo Soares, o então vice-presidente da ANAC (Autoridade
Nacional de Aviação Civil),
que na altura tinha a designação de INAC (Instituto Nacional de
Aviação Civil), se
pronunciou por igual posição, ainda que de modo menos assertivo. Com efeito, em
reunião do conselho de administração da aerotransportadora, destinada a debater
em exclusivo esta matéria e em que este comandante participou como convidado, o
mesmo foi interrogado sobre se “a relação hierárquica vertical é ou não afetada
pela indissociável relação horizontal ou de paridade relacional entre cônjuges”
que trabalham sob as ordens um do outro.
A esta questão o comandante
respondeu naturalmente, embora sem intenção sentenciadora que “o relacionamento
familiar pode causar falhas de hierarquia”. Porém, ao ser questionada recentemente
pelo Público, a ANAC admite não existir, nem na legislação nacional nem na
internacional, nenhuma proibição de familiares próximos pilotarem o mesmo voo.
Pessoalmente acho tal omissão
estranha, no mínimo, sobretudo se compararmos o setor da aviação civil com
casos semelhantes na administração pública (E a SATA é uma empresa
pública). Por exemplo,
um professor não pode dar aulas a filhos, enteados e outros familiares próximos
nem vigiar ou corrigir provas de exame de grupos em que esteja integrada tal espécie
de familiares; os membros de órgãos colegiais executivos não podem participar
em discussão e/ou votação de matérias em que estejam interessados eles próprios
e/ou familiares próximos (cônjuge, filhos e demais parentes até ao
3.ºe 4.º grau); e os
membros de órgãos deliberativos têm de declarar previamente os seus interesses pessoais,
familiares e profissionais.
Ora, em caso em que pode perigar
a segurança de pessoas, não se entende como é que a lei e os regulamentos não
imponham um acautelamento similar. No caso da administração pública é a imparcialidade
e a transparência que estão em jogo, que certamente são valores inestimáveis;
aqui, está em causa a segurança de pessoas e eventualmente a vida, que não são
valores menos inestimáveis. Salva-se, nos manuais de procedimentos, a observância
do princípio geral de rotatividade das tripulações que “é o mais avisado em
matéria de segurança de voo”. Porém, está visto que a eficácia de tal
observância não é totalmente eficaz.
E a ANAC diz desconhecer a existência
de litígios semelhantes e sustenta que na TAP, por exemplo, não existe qualquer
restrição a este nível. Ora, diz-se que a TAP – semipública e semiprivada – é
das aerotransportadoras mais seguras, o que os factos parecem desmentir.
***
Segundo o relato do Público, Abel Coelho e a mulher, casados
há vários anos, protagonizaram um acidente quando um avião que pilotavam no
início de março de 2013 teve problemas de aterragem em Ponta Delgada, Açores. É
certo que não houve vítimas, mas os custos da reparação – cobertos pelo seguro
– orçaram 618 mil euros. Foi este acidente o facto que levou a companhia a
perceber que, no ano de 2012, o casal teria feito 85% dos voos em conjunto. É de
questionar a fragilidade do controlo de serviço e pessoal da parte da aerotransportadora.
Aí não chega a ASAE ou polícia semelhante!
Obviamente que o comandante Abel
Coelho aduz que o fizeram muitas vezes em benefício da SATA, sendo chamados “para
suprir falhas, quando não havia mais ninguém para voar”. E o casal acusa a
discriminação e o prejuízo de que está a ser objeto em relação ao seu direito à
vida familiar, dado que com horários desencontrados tem menos tempo para passar
em conjunto.
Ora, do meu ponto de vista, já
têm sorte em trabalhar na mesma empresa, onde não podem ter o direito de agir
como entendem, mas em torno do escopo do serviço ao público e dos requisitos de
segurança. Fazer serviço profissional em conjunto não é a melhor forma de
cimentar a relação familiar. Pode ser uma forma económica de prover à família. Nem
eles nem nós somos ingénuos. Aliás, ninguém pensa que, por exemplo, um casal de
professores tem de pertencer ao mesmo conselho de turma e usufruir o mesmo
horário ou um casal de médicos pertencer à mesma equipa médica ou cirúrgica ou
um casal de juízes fazer parte do mesmo coletivo.
Porém, este casal processou a
empresa, pedindo uma indemnização de 20 mil euros, além de poderem voltar a
tripular o cockpit em simultâneo. E Abel Coelho desconversa, alegando
que é muito pior “pessoas que não se falam serem escaladas para voar juntas” e que
“isso continua a suceder”. Ora, a ser verdade, um erro não desculpa outro; e a
empresa deveria, por um lado ser fiscalizada e, por outro, dispor de autoridade
para exigir profissionalismo apesar dos eventuais desentendimentos entre pares,
até porque as leis do trabalho exigem profissionalismo, não exigem amizade.
Dá-me a impressão de que os
juízes pensaram bem ao concluírem que, embora devam ser proporcionadas aos
trabalhadores condições para conciliar a vida profissional com a familiar, “daí
não resulta que esse interesse deva prevalecer sobre o interesse da comunidade
da segurança de voo”.
A este respeito, a sentença do Tribunal
do Trabalho, com que o procurador do Tribunal da Relação que analisou o caso
concordou, deixa ler:
“Não cumpre ao tribunal
averiguar da bondade desta medida, sendo certo que a mesma se mostra
justificada e se afigura proporcional ao objetivo a que se destina: observância
das regras de segurança”.
Mais: o procurador do Tribunal da
Relação escreveu que “é natural serem desculpadas”, entre familiares próximos,
“pequenas falhas que podem ser fatais para quem tem o destino de tantas vidas
nas suas mãos”. Por seu turno, o advogado Garcia Pereira, especialista em
direito laboral, mostra-se chocado e tem direito à sua razão. Todavia,
desconversa quando diz que “tanto pode existir uma brecha nas relações
hierárquicas entre marido e mulher como entre namorados”. É claro que as
relações similares da conjugal se regem pelas mesmas normas. Ou então a SATA só
recruta pessoal entre familiares e amigos – quod
restat demonstrandum.
E essa da hipótese de serem “companheiros
de copos” e perguntar se a companhia lhes faz “um teste de amizade” é mesmo
fugir à questão – postura que se permite aos advogados no quadro das suas
liberdades face à autonomia do Ministério Público e à independência dos
Tribunais. Nada mais! É claro que se abre um caminho para a discricionariedade,
mas nem toda a discricionariedade é iníqua e a administração pública dispõe dela
para perseguir o interesse público e não há interesse público superior ao da
segurança das pessoas.
De resto, fico de pé atrás quando
advogados, como este, dizem que a lei ou a atitude viola a Constituição, a
legalidade e a convenção europeia dos direitos humanos e configura “a intromissão
injustificada na vida das pessoas até ao princípio da igualdade entre cidadãos,
passando pela conciliação da atividade profissional com a familiar”. Quod nimis probat nihil probat (o
que prova em excesso nada prova).
***
É claro que é de perguntar o que
anda a fazer a SATA, a ser verdade o que diz o advogado: em agosto de 2014, um voo
da SATA Internacional sofreu atraso de perto de 7 horas, por a mulher de Coelho
não ter sido autorizada a voar com ele; 15 dias antes, outra ligação aérea
descolara no dia seguinte ao previsto pelo mesmo motivo; várias vezes, a SATA
fretou voos a outras empresas, por falta de tripulação disponível, podendo
evitá-lo se os deixasse voar juntos.
Com o passivo total de cerca de 190,3
milhões de euros no final de 2013, segundo o Tribunal de Contas, a SATA não
revela quanto lhe custa manter a proibição nem responde a outras questões,
limitando-se à declaração genérica de que as suas boas práticas “resultam do
cumprimento da legislação e das recomendações produzidas pelas entidades responsáveis,
externas e internas, pois “a segurança é um processo em contínua vigilância e
melhoria” e “as vidas e os bens cujo transporte nos é confiado merecem-nos um
cuidado prioritário” e não explica as irregularidades imputadas ao casal que,
ainda antes de 2013, quase lhe custaram a perda da licença para voar.
É urgente
que se entendam. Além do mais, trata-se de uma empresa púbica!
2016.10.26 – Louro de Carvalho
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