terça-feira, 18 de outubro de 2016

Na festa de São Lucas

Celebra-se hoje, 18 de outubro, a festa litúrgica de São Lucas. Nascido numa família pagã, mas, depois de convertido à fé, de cuja pregação é reflexo o 3.º Evangelho cuja autoria se lhe atribui, transmitiu noutro livro, o dos Atos dos Apóstolos, os primeiros passos da Igreja nascente até à primeira estadia de Paulo em Roma. Os dois livros mostram uma similaridade de estilo e são dirigidos à mesma pessoa, Teófilo, e formam o caminho da salvação, tendo a uni-los o episódio da ascensão. O mínimo que se pode fazer nesta festa é refletir sobre o teor da sua escrita e rezar com ele e com o protagonista por excelência da sua narrativa – Jesus Cristo, o Senhor.
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Quem foi Lucas? Homem crente, cheio do Espírito do Senhor, com ampla visão da necessidade da obra, empregou os seus dons ligados à palavra escrita para proclamar o que sabia a respeito de Jesus. Foi evangelista, pastor e chamado de “médico amado”. O tratamento de médico amado é o tratamento afetivo que lhe dispensa Paulo em Cl 4,14. Os pais eram de origem grega, sírio-antioquenos. Lucas não fora discípulo direto de Jesus durante o seu ministério. Provavelmente converteu-se com a pregação de Paulo. Por ter amplo vocabulário e dom da comunicação, ao escrever o 3.º Evangelho e Atos, oferece-nos maior quantidade de informações históricas do que qualquer outro autor do Novo Testamento. Como companheiro nas viagens missionárias do apóstolo Paulo (At 16,10-17), junto de quem permaneceu até à morte (Cl 4,14; 2Tm 4,11 e Fm 24), Lucas aceitou ficar em Filipos, na segunda viagem missionária de Paulo, para ajudar a estabilizar a nova igreja ali (At 16,40; 17,1). Tornou-se, assim, um pastor e cultivou a doutrina a ponto de vir a tornar-se evangelista.
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Normalmente estuda-se o conteúdo do Evangelho, edificando-nos com as suas mensagens.
Não obstante, agora, concomitantemente com esse dinamismo espiritual, há que ver a estrutura da sua narrativa e conhecer um pouco mais do autor humano. Ao afirmar que “Lucas escreveu”, não estamos a esquecer que a sua obra se deve à inspiração do Espírito Santo.
O 3.º Evangelho é atribuído a Lucas, que segue os usos dos historiógrafos do seu tempo, mas a história que ele deseja apresentar é a história iluminada pela fé no mistério da Paixão e Ressurreição do Senhor Jesus. Trata-se de um Evangelho, uma história santa, uma obra que apresenta a Boa-Nova da salvação centrada na pessoa de Jesus Cristo.
Na composição do seu Evangelho, Lucas utilizou parte de materiais comuns a Marcos e Mateus, além dos que lhe são próprios e dos contactos com o Evangelho de João. Todos os materiais da tradição estão marcados pelo trabalho do autor, que se reflete na ordenação, no vocabulário e no estilo. A arte e a sensibilidade de Lucas manifestam-se na sobriedade das observações, na delicadeza de atitudes, no dramatismo de certas narrações, na atmosfera de misericórdia das cenas com pecadores, mulheres e estrangeiros. A composição deste Evangelho situa-se por volta do ano 80, pois Lucas conheceu o cerco e destruição de Jerusalém por Tito, no ano 70.
O livro, dedicado a Teófilo, destina-se a leitores cristãos de cultura grega, como se vê pela língua, pelo cuidado em explicar a geografia e usos da Palestina, pela omissão de discussões judaicas, pela consideração que tem pelos gentios. Segundo antiga tradição (referida por Santo Ireneu), o autor é Lucas, médico, discípulo de Paulo. As suas caraterísticas tornam o seu Evangelho mais próximo da mentalidade do homem moderno: pela sua clareza, pelo cuidado nas explicações, pela sensibilidade e pela arte do autor. Lucas mostra o Filho de Deus como Salvador de todos os homens, com particular atenção aos pequeninos, pobres, pecadores e pagãos. É o evangelista que tem mais referências a Maria, mãe de Jesus e aos episódios da infância. Têm no seu livro as mulheres um papel relevante no processo ministerial de Jesus. Para ele, o Senhor é Mestre de vida, com todas as suas exigências e com o dom da graça, que o discípulo só pode acolher de coração aberto. Por isso, o de Lucas é o Evangelho da Salvação universal, anunciada pelo Profeta dos últimos tempos que convida discípulos profetas, a quem envia o Espírito Santo, para que, por sua vez, sejam os profetas de todos os tempos e lugares (Lc 24,45-49; At 1,8).
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O esquema geral do livro é o mesmo que se encontra em Mateus e em Marcos: uma introdução, a pregação de Jesus na Galileia, a viagem para Jerusalém, a Paixão e Ressurreição como cumprimento final da missão. A construção literária é elaborada com cuidado e reflete grande sensibilidade, procurando salientar os tempos e lugares da História da Salvação e pondo em evidência a projeção existencial do projeto evangélico. Fá-lo com uma técnica de ampliação progressiva por círculos concêntricos.
No Prólogo ou chave do livro (1,1-4) enuncia o tema, o método e o fim da obra: expõe por ordem o que se refere à vida e à mensagem de Jesus de Nazaré, filho de Maria, Filho de Deus.
Lucas refere que muitos contemporâneos haviam empreendido a mesma tarefa, o que nos leva a inferir que: havia, ao tempo, várias obras que continham relatos de partes da vida e obra de Jesus; os autores tinham tentado um arranjo sistemático das fontes disponíveis (1,1); estes factos eram conhecidos no mundo cristão; o autor sentia-se tão bem informado e capaz como os outros para escrever a sua própria narrativa; dirigia a sua obra a pessoa de alta categoria, a quem trata por “excelentíssimo Teófilo”, que provavelmente fora informado oralmente a respeito de Cristo, mas precisava de mais conhecimentos que o firmassem e o convencessem da verdade.
Depois, vêm as seis secções estruturais do livro:
I. Evangelho da infância (1,5-2,52): de João Batista e de Jesus.
II. Prelúdio da missão messiânica de Jesus (3,1 – 4,13).
III. Ministério de Jesus na Galileia (4,14 – 9,50): a atitude face às multidões, aos primeiros discípulos e aos adversários (4,31 – 6,11); o ensino aos discípulos (6,12 – 7,50); a associação estreita dos Doze à sua missão (8,1 – 9,50).
IV. Subida de Jesus a Jerusalém ou a Viagem da Paixão (9,51 – 19,28). O esquema literário de Lucas é original, mas artificial, sem continuidade geográfica nem progressão doutrinal, evidenciando uma forte preocupação teológica, espiritual e social. Tal quadro permite-lhe reunir uma série de elementos, em parte convergentes com os de Mateus e Marcos, colocando-os na perspetiva do evento pascal, a consumar-se em Jerusalém. Jesus dirige-se a Israel, chamando-o à conversão; mas é, sobretudo, para os discípulos que os seus ensinamentos se orientam, tendo em conta o tempo em que já não estará presente entre eles.
V. Ministério de Jesus em Jerusalém (19,29 – 21,38): o ensino de Jesus no templo (20,1 – 21,37).
VI. Paixão, morte e ressurreição de Jesus ou os Dias da Glorificação (22,1 – 24,53): a narração da Paixão e as narrações da Páscoa (22, 1- 24,53) constituem o núcleo fundamental do Evangelho. Omitindo a tradição das aparições na Galileia e situando todos os eventos pascais em Jerusalém, o evangelista evidencia o lugar central daquela cidade na História da Salvação. Dali irradiará também a mensagem evangélica, que o mesmo autor surpreende e relata no livro dos Atos.
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Uma das ideias-chave de Lucas é distinguir o tempo de Jesus e o tempo da Igreja. Sem esquecer a singularidade do acontecimento salvífico de Jesus, põe em relevo as etapas da obra de Deus na História. Mais que Mateus e Marcos, ao falar de Jesus e dos discípulos, pensa já na Igreja, cujos membros se sentem interpelados a acolher a mensagem salvífica na alegria e na conversão do coração. É isso que faz do livro o Evangelho da misericórdia, da alegria, da solidariedade e da oração. No respeito pelo ser humano, a salvação evangélica transforma a vida das pessoas, com reflexos no seu interior, nos comportamentos sociais e no uso que fazem dos bens terrenos. A esta luz, o Evangelho lucano é uma genuína História dos Pobres, um catalisador da transformação social.
Jesus anuncia a sua vinda no fim dos tempos, que, segundo Lucas, coincidirá com o termo do tempo da Igreja. Mas a insistência do evangelista na salvação presente, na realeza pascal do Senhor Jesus e na ação do Espírito Santo na Igreja contribui para atenuar a tensão relativa à iminente Parusia. A própria destruição de Jerusalém, encarada como acontecimento histórico, despojando-o da projeção escatológica presente em Mateus e Marcos é sinal duma consciência viva do dom da salvação presente no tempo da Igreja.
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Das 35 parábolas registadas no NT, pelo menos 19 são encontradas no Evangelho de Lucas, entre elas, contam-se: a do bom samaritano (cap. 10); a da figueira estéril (cap. 13); a da grande ceia (cap.14); a da misericórdia – da ovelha perdida, da dracma perdida e do pai misericordioso (cap. 15); a do administrador infiel (cap. 16); e a do fariseu e do publicano (cap. 18).
Em termos de linguagem, o Evangelho de Lucas é o mais literário de todos. Contém no início 4 belos hinos:  o cântico de Maria (1,46-55), aquando da visita a Isabel;  o cântico de Zacarias, uma palavra profética do pai de João Batista (1,67-79);  o cântico dos anjos (2,14), aquando do nascimento de Jesus, e o cântico de Simeão (2,28-32), ao tomar o menino Jesus nos braços.
Sobre o ministério de Jesus em Jerusalém e a sua Paixão Salvadora (18,31 – 23,56), é de observar como Lucas, ao relatar os dias finais de Jesus, dá um toque caraterístico de linguagem à última ceia, ao aviso de Jesus a Pedro, ao episódio do suor de sangue, à disposição dos acontecimentos em casa de Caifás, à comparência de Jesus ante Herodes, ao discurso de Jesus às mulheres de Jerusalém (23,27-31), ao ladrão arrependido, sem alterar a marcha nem o significado. As simpatias e os sofrimentos humanos foram postos em relevo por Lucas, ao mostrar como o Filho do Homem sofria na cruz em obediência ao Pai.
Ao relatar a ressurreição do Salvador (24,1-53), Lucas fá-lo de forma nova e diferente. A realidade é a mesma dos demais evangelhos, mas a forma do relato da aparição do Ressuscitado aos discípulos no caminho de Emaús elimina qualquer dúvida que, porventura, se possa ter sobre o facto. A inesperada e convencedora manifestação da presença viva de Jesus, a sua interpretação das Escrituras e a convicção espiritual que se apossou deles, quando Ele lhes falava, constituem evidência incontestável de que algo de novo havia acontecido na terra.
O propósito de Lucas ao escrever para os gregos era o de alcançar a maioria dos convertidos através da pregação de Paulo (At 11,20-21). As pessoas educadas nessa cultura costumavam glorificar a sabedoria, a beleza e o homem ideal. Quando o evangelho começou a circular, puderam conhecer mais claramente a mensagem universal de Jesus, como:
Oferta universal de salvação – Jesus é o perfeito Deus-Homem que oferece a salvação a todas as nações (Lc 2,29-32). É uma oferta universal, pois não há, para Ele, judeu, nem gentio, nem grego, nem bárbaro, nem escravo, nem livre. A sua obra é uma interpretação viva e completa daquele que tem poder para redimir o homem em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Do Redentor e SalvadorLucas descreve Cristo como redentor de todos os que creem, oferecendo perdão e salvação independentemente do privilégio duma raça particular ou nação, a saber: aos samaritanos (9,51-56; 10,30-37); aos pagãos (2,32; 3,6; 4,25-27); aos judeus (1,33; 2,10); aos publicanos, pecadores e desterrados (3,12; 5,27-32; 7,37-50); ao povo de modo geral (7,36; 11,37; 14,1); aos pobres (1,53; 2,7; 6,20; 7,22); aos ricos (19,2; 23,50) – a mulheres e homens.
Da Doutrina do Espírito Santo Lucas dá especial atenção a esta doutrina, mais que Mateus e Marcos juntos. Informa que todas as principais personagens do Evangelho tinham o poder do Espírito Santo para a missão de que foram incumbidos: João Batista (1,15); Maria (1,35); Isabel (1,41); Zacarias (1,67); Simeão (2,25-26); e o próprio Jesus (4,1).
Da oração – Jesus reza (3,21; 6,12; 22,17.19.39-46) e a cada passo é surpreendido em oração (9,28.29). E aí lhe é pedido que ensine os discípulos a rezar e ensinou (11,1-4). Rezou ao Pai diante de todos (10,21,22). Falou da necessidade de rezar sempre e com insistência (11,5-13; 18,1-8; 22,39-46) e humildade (18,9-14).
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Os Atos dos Apóstolos constituem a segunda parte da obra de Lucas (1,1-2) e formam a sequência do seu Evangelho. Desde cedo, foram considerados Escritura sagrada e lidos na liturgia da Igreja como memória e norma de fé. Esta obra “apostólica” relata a sorte do Evangelho confiado aos Apóstolos e expõe os primeiros passos da comunidade cristã. Assim, a Igreja viu nela um guia precioso e um estímulo exemplar para a vida dos cristãos: da escuta da Palavra à fé, do Batismo à solidariedade, da oração à comunidade, da perseguição ao martírio.
Pensa-se que o seu autor é o mesmo do 3.º Evangelho, que a tradição, durante séculos, tem identificado com Lucas. Apesar de alguns problemas levantados pelos peritos, o estudo da língua e pensamento dos dois livros, assim como da figura de Paulo nos Atos e da concordância com o pensamento das Cartas, levam a concluir a favor daquele a quem o Apóstolo trata por ‘Lucas, o caríssimo médico’ (Cl 4,14).
Considerando o estado atual da crítica, o livro terá sido escrito entre os anos 80 e 90, ou seja, depois do 3.º Evangelho, que muitos colocam bastante depois do ano 70. Um elemento a favor desta datação é a abertura e indeterminação do epílogo, cujo resumo da estadia de Paulo em Roma mostra que o anúncio do Evangelho chegara de Jerusalém às extremidades da terra (1,8; 28,30).
O estudo dos Atos confronta-se com o complexo problema do estabelecimento do texto primitivo. Existem três versões principais: a síria ou antioquena, a egípcia ou alexandrina e a ocidental ou corrente, de grande interesse histórico e doutrinal. Do ponto de vista literário, a obra carateriza-se por uma grande unidade de língua e de pensamento, independentemente das diferenças entre as duas partes em que se divide.
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Divisão e conteúdo  
O livro divide-se em duas grandes partes: “Atos de Pedro”, salientando o impulso do Espírito Santo que faz nascer a Igreja (caps.1-12); e “Atos de Paulo” (caps.13-28), relevando a conversão de Paulo, o seguimento de Pedro e a entrada em massa dos pagãos no cristianismo. Distribui-se pelas seguintes secções: Introdução (1,1-11); I. A Igreja de Jerusalém (1,12 – 6,7); II. Expansão da Igreja fora de Jerusalém (6,8 – 12,25); III. Missões de Paulo fora de Jerusalém (13,1 – 21,26): 1.ª Viagem (13,1 – 14,28); 2.ª Viagem (15,35 – 18,22); 3.ª Viagem (18,23 – 21,26). IV. Paulo, prisioneiro de Cristo: Condenação e Viagem do Cativeiro (21,27 – 28,31).
Distinguem-se facilmente diversas unidades literárias, cuja extensão e repetição conferem ao livro a sua fisionomia “eclesial”, de Igreja em saída: narrações de missão (2,1-41; 8,4-40; 9,32 – 11,18; 13,1 – 21,26); narrações de processos (3,1 – 4,31; 5,17-42; 6,8 – 8,12; 12,1-7; 21,27 – 26,32); narrações de viagens (13,1 – 21,26; 27,1 – 28,16); discursos de diversos tipos (2,14-39; 3,12-26; 4,8-12; 5,29-32.35-39; 7,2-53; 10,34-43; 13,16-41; 14,15-17; 17,22-31; 20,18-35; 22,1-21; 24,10-21; 26,2-23; 28,25-28); orações (1,24-25; 2,42.46; 4,24-30; 12,11...); cartas (15,23-29; 23,25-30); e sumários (2,42-47; 4,32-35; 5,12-15...).
Para lá da coordenação dos materiais, o autor dispôs de fontes orais e escritas, muitas vezes ligadas à fundação e vida das Igrejas que refere. Ressaltam de modo particular as passagens descritas com o sujeito “nós”, em que o autor se sente testemunha ocular, deixando-nos uma espécie de “diário de viagem” ou “itinerário” dos acontecimentos ligados a Paulo (16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1 – 28,16).
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Sobre o Livro dos Atos como História. As narrações e os discursos dos Atos são confirmados pelos dados da História e da Arqueologia e concordam com o quadro dos Evangelhos e das Cartas de Paulo, que ajudam a compreender. Os resultados do exame histórico apoiam a veracidade do livro, permitindo estabelecer os elementos duma cronologia bastante segura das origens cristãs, bem como das Cartas de Paulo.
A visão histórica do livro aparece integrada numa visão teológica. Assim, Deus é autor e ator do crescimento da Igreja (2,47; 11,21.23). Em particular, o autor insiste no dom do Espírito, atuando sem cessar na expansão da Igreja. Para o autor, a História do mundo é uma História de Salvação cujo autor principal é Deus e se divide em duas etapas: a do tempo da Promessa, da prefiguração, da preparação, da Profecia, do Antigo Testamento; e a do tempo do cumprimento, da realização, da salvação já presente, do Novo Testamento. Este cumprimento do desígnio salvífico de Deus em Cristo Senhor abre um tempo em que a História continua até à plenitude. Daí a importância decisiva que Lucas atribui ao “hoje”, como memória e imperativo da fé em Cristo ressuscitado. Deste “hoje” faz parte, antes de mais, o anúncio da Boa-Nova e o testemunho de Jesus, Senhor e Messias, que encontra nos Doze, nos diáconos e, sobretudo, em Pedro e Paulo, os arautos mais credenciados.
Os Atos descrevem o espaço geográfico e humano da expansão dessa Boa Nova de Jesus. Enquanto no Evangelho de Lucas a manifestação de Jesus começa em Nazaré e termina em Jerusalém, nos Atos, o anúncio da Boa Nova parte de Jerusalém (caps. 2-5), passando depois à Samaria e Judeia (8,1), à Fenícia, Chipre e Síria (11,19-21), para, através da Ásia Menor e da Grécia (caps. 13-18), chegar a Roma (28,30). O Evangelho destina-se a todos (17,31); mas a passagem da salvação do Evangelho do povo de Israel para os pagãos (13,46) faz parte do plano de Deus (2,39; 15,7-11.14) e constitui o tema principal deste livro.
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Na ótica eclesial do autor, o ideal para o qual todas as comunidades tendem é expresso nos “sumários”. Aí se traduzem os vetores fundamentais que, em referência à comunidade primitiva de Jerusalém, caraterizam as diversas Igrejas: escuta assídua do ensinamento dos Apóstolos, comunhão fraterna e solidariedade, participação na fracção do pão e nas orações (2,42-47; 4,32-35; 5,12-15). No interior das comunidades entreveem-se tensões, sobretudo entre helenistas e judaizantes, mas sobressaem grupos de pessoas com funções particulares de governo, direção e serviço e até com poderes taumatúrgicos. Tudo isso testemunha uma certa estrutura, necessária para a comunhão das Igrejas. Depois dos Doze Apóstolos, com um lugar privilegiado para Paulo, vêm os Sete Diáconos (6,1-6), os Anciãos (14,23; 20,17.28) e os Profetas (11,27). Esta exemplaridade dinâmica, animada pelo Espírito Santo, traduz-se em decisões e atitudes que sejam testemunho da Ressurreição, mediante a comunhão na diversidade, solidariedade e piedade. Nesta Via do Senhor está a identidade do Povo de Deus, com uma história a recordar e a recriar, a partir de Jerusalém e a partir de Roma “até aos confins do mundo” (1,8).
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Em termos da Teologia dos Atos, há que dizer que um dos pontos fundamentais na trama literária do Livro é a passagem do judaísmo ao cristianismo. Com efeito, os primeiros cristãos eram judeus e deviam dar o salto da convicção da salvação pela Lei (15,1.5) para a salvação pela fé em Cristo (15,9.11). Daí as tensões que surgem na abertura a circuncisos e incircuncisos e na passagem do Evangelho para os pagãos. Sem rejeitar os judeus e sem se deixar “judaizar”, a Boa Nova de Cristo não tem fronteiras ou a sua fronteira é a universalidade.
Este dado ajuda a compreender a intenção do autor. Ao compor a obra, Lucas pensava num público cristão, constituído por judeus e não judeus. Homem da unidade e da comunhão, apela a que os cristãos espalhados pelo mundo se conduzam pela exemplaridade da comunidade de Jerusalém. Insistindo sobre a fé, opõe-se a eventuais tendências judaizantes; e, respeitando a fidelidade dos judeo-cristãos à Lei, desarma as críticas dos irmãos vindos da gentilidade.
O caminho de Jesus é a pedagogia que ensina a fazer o caminho da salvação a partir da construção da História dos Pobres, que são evangelizados e testemunham a grandeza de Deus.
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Fontes: Bíblia Pastoral, ed. São Paulo: 1993; Bíblia Sagrada, ed. Missões Cucujães:1998; IPRB, “São Lucas”, in Revista de Estudos Bíblicos, ed. Aleluia; Lancellotti, Angelo – Boccalli, Giovanni, Comentário ao Evangelho de São Lucas, ed. Vozes: 1979; Leal, Juan et alii, La Sagrada Escritura, Nuevo Testmento II (Hechos de los Apóstoles y Cartas de San Pablo), ed. BAC: 1965; Nova Bíblia dos Capuchinhos, ed. Difusora Bíblica: 1998; Stuhlmueller, Carol, “Evangelio segun San Lucas”, in Brown, Raymond et alii, Comentario Biblico San Jeronimo, BAC: 1972; Tuya, Manuel, Biblia Comentada V (Evangelios), ed. BAC: 1971;

2016.10.18 – Louro de Carvalho

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