terça-feira, 25 de outubro de 2016

Há frases que um homem que se preze não profere

Ainda nos lembramos de que a FPT (Federação Portuguesa do Táxi) e a ANTRAL (Associação nacional dos transportadores rodoviários em automóveis ligeiros) organizaram em conjunto uma manifestação contra a legalização e regulamentação de plataformas tecnológicas de transporte de passageiros, como a Uber e a Cabify. O protesto foi antecedido de declarações impróprias da parte do responsável da ANTRAL, dizendo que não queriam, como é óbvio, violência durante a manifestação, mas que não se responsabilizava pelo que viesse a acontecer.
Como é de exigir a pessoas competentes, quando organizam um evento, têm de se responsabilizar pelo êxito desse empreendimento, pelo fracasso e pelos danos colaterais. Caso contrário, não organiza nada e, se o querem arrastar para uma iniciativa com que não concorda, melhor que lhe repugna, demarca-se e até se demite. Uma vez entrado no barco, não salta fora nem prevê tempestades nem as fomenta. Um homem de bem responde pelos seus atos!
O protesto foi suspenso e remarcado, mas parece ter desfalecido, talvez porque o Presidente da República terá resolvido – e bem – não lhes passar a mão pelo “pelo”.
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Não resisto a dizer duas coisas sobre táxis. Uma é a positiva, pelo lado do trabalho sofrido sob chuva ou seca, frio ou calor, a suportar silêncios, doestos e caprichos de clientes ou assaltos de amigos do alheio e da alteração da segurança de pessoas e bens. A outra é a negativa e abusiva, concretizada de várias formas, como: abandonarem o local de estacionamento que lhes é concessionado e fazerem viagens de largo percurso, incluindo viagens aos estrangeiro; deixarem os utentes em terminal de transportes públicos sujeitos a terem de se socorrer de automóveis particulares (já me vi em casos desses em tempos); colocarem-se perto de lugares de paragem de autocarros ou de estação ferroviária a oferecerem transporte pelo preço do autocarro ou do comboio (já vi disso); ou a juntarem-se para bloquearem transporte de cliente que previamente solicitou ao taxista A ou B que o fosse esperar ao autocarro (também me aconteceu e tive de fazer valer os meus direitos de escolha).     
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Mas voltemos ao caso da manifestação. Toda a gente viu como o protesto não seguiu as instruções da polícia e parou na Rotunda junto ao Aeroporto Humberto Delgado sem chegar a São Bento. E um carro da Uber foi violentamente afagado e acariciado por mãos extremamente amigas e pés claramente suaves, ficando bom para a sucata. E o pior em sensibilização da opinião pública surgiu pela boca dum manifestante ao referir com a boca todo aberta a polémica frase “as leis são como as meninas virgens, são para ser violadas”.
A frase, que foi proferida em direto, é considerada pela Federação Portuguesa do Táxi (FPT) “frase-vergonha”. Ela não foi isolada dum contexto linguístico, mas bem enquadrada como se tivesse sido premeditada: “As leis, dizem eles, são para se cumprir. Mas é mentira. As leis, sabe como é que são? São como as meninas virgens. São para serem violadas”.
Como reação ao doesto, a CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género), “enquanto organismo público responsável pela promoção e defesa da igualdade de género e do combate à violência doméstica e de género”, veio, na altura, “publicamente repudiar a afirmação” do taxista e veiculada pela comunicação social, como referiu a agência Lusa. E aduziu:
“Estas declarações são reveladoras de um menosprezo relativamente à dignidade, liberdade e autodeterminação sexual das mulheres e meninas, bem como à sua integridade física e moral, sendo suscetíveis de legitimar e provocar atos de discriminação e de violência. Uma vez que esta conduta pode configurar a prática de crimes de discriminação sexual e de instigação pública à prática de crimes previstos e punidos no Código Penal, a CIG apresentou queixa junto do Ministério Público.”.
Assim, a polémica declaração do taxista Jorge Máximo, que marcou a manifestação de taxistas do passado dia 10 de outubro, é agora alvo de investigação. A Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito na sequência de uma queixa feita ao Ministério Público pela CIG, segundo apurou o jornal digital Observador.
Entretanto, o taxista, a iludir a opinião pública, tentou redimir-se ao afirmar ao Expresso:
“Peço desculpa a todos. O que eu queria dizer era o contrário, que as leis são como as meninas virgens, não devem ser violadas.”.
Todos sabemos que a frase é corriqueira em determinados ambientes, nomeadamente em realização linguística de gíria profissional ou em linguagem marginal.
Todavia, quando se usa da palavra em público e em ambiente familiar ou em circunstâncias cerimoniosas, esta linguagem objetivamente suscetível de ser ouvida como desrespeitosa e atentatória do pudor não pode ser utilizada. E o grande dom dum cavalheiro é o respeito pela donzela e pela dama. E nem a mulher dissoluta aceita ser tratada com desdém ou ser enxovalhada publicamente, quanto mais as pessoas decentes. Além disso, o taxista, que todos entendemos como um prestador de serviço ao público, não podia colocar-se em situação que possa ser interpretada como também neste aspeto estar a representar a sua classe profissional.
Mais: o rico pode e deve pedir publicamente desculpas, às pessoas ofendidas representadas na CIG e aos seus colegas de profissão, bem como à sua família, que provavelmente nunca pensou ser representada na praça pública por um seu tão famoso componente. Não obstante, não tem o direito de se comportar como palhaço de circo (peço desculpa aos palhaços) ou como menino de coro (peço desculpa aos pueri cantores) e vir dizer-nos que “o que eu queria dizer era o contrário, que as leis são como as meninas virgens, não devem ser violadas.
Ademais, este homem de sociedade devia saber que não têm sido objeto de violação apenas as meninas virgens, mas também outras raparigas e mulheres e mesmo crianças, rapazes e homens. Além disso, o homem culto que o taxista diz que é deve saber que as meninas virgens são candidatas ao namoro e subsequente casamento ou equivalente e podem ser também candidatas ao celibato por motivos científicos e humanitários e mesmo por causa do Reino de Deus.
Com o que disse, o taxista arrisca-se a ser alvo de um processo-crime. A plataforma feminista Capazes está a preparar uma queixa e a ponderar uma carta aberta. A Procuradoria-Geral da República, referindo que está em marcha um inquérito, ainda não se pronunciou sobre a índole criminal do incidente, mas uma jurista da Associação de Mulheres Juristas sustenta que há matéria para abertura de inquérito.
A este respeito, Rita Ferro Rodrigues, representante da plataforma feminista Capazes, disse ao Expresso:
“É uma declaração muito mais que ofensiva. Consideramos que encerra comportamento criminoso contra as mulheres. É uma declaração produzida na televisão que é real e que incide sobre a dignidade das mulheres. É um incentivo a um ataque sexual e tem de haver uma resposta.”.
As juristas da plataforma estão efetivamente a analisar a matéria legal para enquadrar a queixa, mas as Capazes pensam também em fazer uma carta aberta à Federação Portuguesa do Táxi no sentido de esta se demarcar.
E a FPT fez saber da sua posição pela voz do presidente e por comunicado adrede produzido.
Carlos Ramos, presidente da Federação Portuguesa do Táxi, em declarações ao Expresso, condenou as declarações e disse que a associação se irá demarcar delas publicamente, pois, esta não terá sido a primeira vez que Jorge Máximo disse a frase e acrescentou:
“É condenável a todos os níveis. É mais uma expressão de um industrial que contribuiu para a má imagem que nós já temos. Deixou mal a classe, e já não é a primeira vez que o diz. Há uns tempos repetiu a frase numa reunião e tivemos de o chamar à atenção.”.
E o comunicado da Federação vai alinhado com as declarações do presidente.
Também Leonor Valente Monteiro, da Associação de Mulheres Juristas, considera que as palavras do taxista – que participa em programas de futebol na televisão como adepto benfiquista – podem configurar crime de instigação à violência sexual, à luz do artigo 297.º do Código Penal (CP), em termos de instigação pública a um crime, pois, “instigar a um crime é incitar à violência e o crime incitado é o de violação sexual de meninas virgens”. E a PGR, em nome do dever que o Estado tem de “criar uma sociedade mais justa e equilibrada”, tem de providenciar ao caso.

Veja-se, a propósito, o que diz a lei sobre provocação ou incitação à prática de crime:

“Quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, provocar ou incitar à prática de um crime determinado é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (CP, art.º 297.º/1).

E sobre apologia pública de um crime também está prevista sanção proporcionada:

“Quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, recompensar ou louvar outra pessoa por ter praticado um crime, de forma adequada a criar perigo da prática de outro crime da mesma espécie, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (CP, art.º 298.º/1).

Ambos os artigos têm um n.º 2 que estabelece:
“É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 295.º”.
E este estabelece:

“A pena não pode ser superior à prevista para o facto ilícito típico praticado”. 

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A frase-vergonha percorreu as redes sociais. Pouco tempo depois, as Capazes começaram a receber textos vindos de várias jovens. A título de exemplo, transcreve-se um texto de Flávia Ferreira, que reza:
“Jorge Máximo, espero que nunca nenhuma das ‘meninas virgens’ que tem lá em casa seja obrigada a passar por este tipo de violência e falta de respeito só para poder ser transportada do ponto A para o ponto B. Porque eu sou uma menina virgem e ontem o meu medo de andar de táxi sozinha deixou de ser visto como irracional.”.
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Não haverá autoridades policiais e judiciais que digam a este homem que há frases que um homem que se preze não profere, pelo menos em público e em família. Não há ninguém que lhe diga que um homem não se retrata dizendo que pretendia dizer o contrário. Ao menos que tenha barba na cara e assuma as suas responsabilidades de cidadão, profissional e homem de família. Inútil para ele a escola que frequentou e talvez a catequese por que passou!

2016.10.24 – Louro de Carvalho

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