Há muitos
anos – pelo menos desde o teatro de 1963 de Rolf Hochhuth “O Deputado” – que a opinião pública mundial vem absorvendo a tese
de que Pio XII fora o “Papa de Hitler”. Com efeito, muitos o apresentaram como
aliado do regime nazi. Não obstante, há décadas que pessoas bem informadas suspeitam
que a referia tese não passa de uma distorção deliberada, pois, vários líderes judeus
vieram em defesa de Pacelli. Agora surge a certeza, sem margem para dúvidas, de
que tais acusações não só estavam erradas como são precisamente o oposto da
verdade. Na verdade, com base em documentos do Vaticano, o historiador Mark
Riebling conta o outro lado de um dos mais importantes dilemas do século XX.
***
Como surge a ideia do filogermanismo
do cardeal Pacelli? O Secretário
de Estado de Pio XI tinha sido núncio apostólico na Baviera e, depois, em
Berlim – cargo que desempenhou com proficiência. É normal que tivesse
conhecimento apurado da idiossincrasia do povo alemão e da Igreja na Alemanha. E
é natural que, enquanto diplomata
tentasse equilíbrios difíceis ou até incorrido na crença de que o Governo
estaria bem intencionado, pois Hitler chegou ao poder por via eleitoral em
tempo de crise social, política e económica. Por outro lado Riebling recorda:
“Quando os nazis tomaram o poder, em 1933, Pio XII [aliás, Pacelli] elogiou
o anticomunismo de Hitler e aceitou a proposta deste para formalizar os
direitos dos católicos. Pacelli negociou uma concordata garantindo o
financiamento da Igreja com 500 milhões de marcos de receitas fiscais anuais.”.
Entretanto,
a Igreja Católica estabelecera, como Riebling refere, uma concordata com o Estado
alemão como o fizera com o Estado italiano e outros Estados. Ora, a concordata
é um pacto entre Estados que estabelece obrigações entre as partes,
reconhecimento de legitimidades mútuas e cedências em matérias que não
descaraterizem as partes.
Foi com base
na confiança mútua que, em 11 de fevereiro de 1929, Pio XI e o Estado italiano celebraram
o Tratado de Latrão, que reconhecia a soberania dos Estado Pontifício na atual
faixa territorial e nos locais onde se situam imóveis da Santa Sé, bem como a
concordata.
Não obstante,
os acontecimentos cedo ultrapassaram os tratados. E, logo em 29 de junho de 1931, promulgou a encíclica “Non abbiamo bisogno” (“Não Precisamos”) que possuía uma postura
fortemente antifascista, recebendo como
retaliação à sua publicação, da parte do ditador Benito Mussolini, que seguia
tal política, a ordem de que fossem dissolvidas as associações católicas de
jovens na Itália. Por ouro lado, o Papa teve de limitar fortemente a ação do
Partido Popular, até que ele foi dissolvido, negou qualquer tentativa de Sturzo
de reconstruir o partido e viu-se forçado a lidar com enormes conflitos e
embates com o fascismo por causa de tentativas do regime de hegemonizar a
educação dos jovens e da intromissão do regime na vida da Igreja. É óbvio que Pio
XI foi também muito crítico sobre o papel da pessoa social imposto pelo
capitalismo e, na encíclica “Quadragesimo
anno”, de 1931, apelou à
urgência de reformas sociais já identificadas 40 anos antes pelo Papa Leão
XIII, reiterando a condenação de todas as formas de liberalismo e de socialismo.
E condenou fortemente o nacional-socialismo (nazismo), em 1937, por meio da encíclica
“Mit brennender Sorge”, sobretudo na vertente da estatolatria e na racista
alegadamente por motivos biológicos.
No
entanto, num primeiro momento, o Episcopado alemão manifestou-se por Hitler, a
ponto de o Presidente da CEP ter sido chamado ao Vaticano com ordem de promover
a retratação.
Também,
ao emitir a encíclica “Quas primas”, em
1925, com a qual estabeleceu a festa de Cristo Rei para lembrar a lei da
religião a permear todas as áreas da vida quotidiana (o
Estado, a economia e as artes),
chamou os leigos a um maior envolvimento religioso e, em 1938, promoveu a reorganização da Ação Católica.
Contudo,
a uns meses antes de morrer, Pio XI deixou de suportar o regime italiano e o
regime alemão, sobretudo por causa da disseminação violenta do racismo e pelo endeusamento
dos dois líderes – estado de alma de que dada conta nas audiências em
Castelgandolfo. E encomendou um projeto de encíclica sobre a unidade do género
humano a um padre da Companhia de Jesus, que agregou a si, para o trabalho,
mais dois colaboradores jesuítas sob os auspícios do superior geral. Ora, é
exatamente ante a atitude do Secretário de Estado, o cardeal Pacelli, que os colaboradores
vaticanos se interrogam: Porque é que Pacelli fez desaparecer os papéis com o
texto que estavam na escrivaninha do Papa moribundo?
À
partida, poderia ser por discordância. Mas também poderia ser por não haver
tempo de tratar o texto-projeto de encíclica de modo a dar-lhe forma encíclica
e publicável em nome do Papa, o qual tinha preparado um discurso duro contra os
dois regimes – italiano e alemão – que não chegou a pronunciar, embora a Rádio
Vaticano tivesse feito algumas referências claras às disposições do Papa nos
últimos dias de vida. No entanto, sabe-se hoje que Pio XII incluiu a maior
parte das ideias na sua primeira encíclica “Summi
Pontificatus” (publicada 10 meses depois da eleição
papal), em que traça
o programa do seu ministério petrino e exprime a
sua angústia pelo sofrimento que atinge os indivíduos, as famílias e toda a
sociedade.
A demanda sobre o que se passou com a projetada encíclica de
Pio XI “Humani Generis Unitas”, bem
como a dupla posição de Pacelli pode ler-se no livro “O Papa e Mussolini”, de David I. Kertzer (ed. Individual Livros: 2015), que desvenda o relacionamento entre duas das mais
importantes figuras políticas europeias do século XX.
***
“Pio XII”
foi o nome escolhido pelo cardeal romano Eugénio Pacelli, eleito papa a 2 de março
de 1939, num conclave que, “pela primeira vez desde que havia memória, atraiu
uma multidão de correspondentes da imprensa estrangeira, cujas teleobjetivas,
no dizer de uma testemunha, faziam lembrar
canhões antitanque”. E, mal o cardeal Eugenio Pacelli se tornou o Papa Pio
XII, em 1939, o chefe das SS, Heinrich Himmler, ordenou a Albert Hartl, padre
laicizado, que preparasse um dossiê sobre o novo Papa. Hartl documentou como
Pacelli tinha usado a Concordata que negociara com o Governo de Hitler em 1933
de forma vantajosa para a Igreja, fazendo pelo menos 55 queixas formais por
violações da mesma. Pacelli – dizia Hartl – acusou o Estado nazi de conspirar
para exterminar a Igreja e “convocou todo o mundo para lutar contra o Reich”.
Mais: pregava a igualdade racial, condenava a “superstição do sangue e da raça”
e rejeitou o antissemitismo. Citando um oficial das SS, Hartl concluiu a sua
análise dizendo que “a questão não é saber se o novo Papa vai lutar contra
Hitler, mas sim como”.
Entretanto,
Pio XII reunia-se com cardeais alemães a discutir o problema de Hitler. E queixou-se
de que “os Nazis tinham frustrado os ensinamentos da Igreja, banido as suas
organizações, censurado a sua imprensa, fechado os seminários, confiscado as suas
propriedades, despedido os professores e fechado as escolas”. Citou um oficial
nazi, que sustentou que “depois de derrotar o bolchevismo e o judaísmo, a
Igreja Católica será o único inimigo restante”.
O cardeal
Michael von Faulhaber, de Munique, retorquiu que os problemas tinham começado
depois da encíclica de 1937, “Mit
Brennender Sorge”, publicada em alemão e não em latim e distribuída por um
exército de motociclistas. O texto, escrito em parte por Pacelli antes de se
haver tornado Papa, enfureceu o Hitler. O Papa disse a Faulhaber:
“A questão alemã é a mais importante para mim. O seu tratamento está
reservado diretamente para mim… Não podemos abdicar dos nossos princípios…
Quando tivermos tentado tudo, e ainda assim eles quiserem absolutamente a
guerra, lutaremos… Se eles recusarem, então teremos de lutar”.
Faulhaber
recomendou “intercessão de bastidores”, propondo que os bispos alemães
encontrassem “uma forma de fazer chegar a Sua Santidade informação precisa e atualizada.”
E o Cardeal Adolf Bertram acrescentou que “é preciso fazê-lo de forma
clandestina”, pois, “quando São Paulo se fez descer num cesto das muralhas de
Damasco, também não contava com a autorização da polícia local”. Tais sugestões
mereceram a concordância do Papa XII.
Assim nasceu
o plano de construção duma rede de espionagem que apoiaria, entre outras
coisas, planos para assassinar Hitler.
No seu livro
“Church of Spies: The Pope’s Secret War
Against Hitler” (agora a chegar às livrarias em português, editado pela
Presença), Mark Riebling recorre a documentos do Vaticano e atas
secretas, ora divulgadas que descrevem as táticas clandestinas de Pio XII para
o derrube do regime nazi.
Após a
invasão da Polónia por Hitler em 1939, o Papa reagiu aos relatos de atrocidades
contra judeus e católicos. A encíclica “Summi Pontificatus", já mencionada, rejeitou o racismo, no
pressuposto de que a raça humana está unificada em Deus. E condenou também os
ataques ao judaísmo. Mais: o Pontífice escreveu que “ainda que à custa de
‘tormentos e martírio’, há que ‘confrontar essa perversidade dizendo: Non licet – não é permitido!’”. No mesmo
texto, o Papa consagrou “a unidade do género humano”, sublinhando “que essa
unidade negava o racismo” e rematou declarando: “Não há gentio nem judeu”.
O Papa foi
amplamente louvado por isso. A este propósito, um título do New York Times dizia “Papa condena
ditadores, violações de tratados, racismo” – mas sentia que era pouco.
Depois, “conforme
afirmou um oficial das SS [organização paramilitar nazi], seria absurdo acusar Pacelli de ser pró-nazi” e, por outro lado,
“as declarações públicas de Pacelli incomodavam Berlim”.
Convicto de
que o regime nazi cumpria os requisitos para justificar o tiranicídio, conforme
os ensinamentos da Igreja, Pio XII permitiu aos jesuítas e aos dominicanos que
colaborassem com ações clandestinas. O seu principal agente – a quem os nazis
se referiam como “o melhor agente dos serviços de informação do Vaticano” – era
Josef Muller, advogado e herói da I Guerra Mundial, que organizou uma rede de
“amigos das forças armadas, escola e faculdade, com acesso a oficiais nazis e
que trabalhavam em jornais, bancos e até mesmo nas SS”. Estes forneciam ao
Vaticano informação vital, incluindo planos de batalha que eram depois passados
aos aliados. Em 1942, Muller introduziu Dietrich Bonhoeffer no Vaticano para planear
uma estratégia cujo objetivo era fazer as pontes entre grupos de diferentes religiões
para os cristãos poderem coordenar a luta contra Hitler.
As
tentativas de assassinato de Hitler falharam devido, segundo Muller, à “sorte
do diabo”. Mas, em relação a tais planos, Riebling comenta: “Todos os caminhos vão de facto dar a Roma, a
uma secretária com um simples crucifixo, com vista sobre as fontes da Praça de
São Pedro”.
Depois do
falhanço do plano “Valquíria”, a Gestapo prendeu Muller. Descobriram uma nota
escrita em papel timbrado do Vaticano por um dos assistentes de topo do Papa, o
padre Leiber, que dizia que “Pio XII garante uma paz justa em troca da
‘eliminação de Hitler’”.
Muller foi
enviado para Buchenwald. A 4 de abril de 1945, juntamente com Bonhoeffer, foi
transferido para Flossenburg. E, depois dum julgamento fantoche, foram
condenados à morte. Bonhoeffer foi imediatamente executado. Mas, temendo a
aproximação de forças americanas, as SS transferiram Muller e outros reclusos
para Dachau, depois para a Áustria e, finalmente, para o Norte de Itália. Foram
então libertados pelo 15.º Exército dos EUA.
Agentes dos
serviços de informação dos EUA levaram Muller para o Vaticano. Quando o viu, o
Papa abraçou-o, dizendo que se sentia “como se o próprio filho tivesse
regressado de uma situação de grande perigo”.
Riebling
revela que, durante a visita de Muller ao Vaticano, o diplomata americano
Harold Tillman perguntou porque é que Pio XII não tinha sido mais interventivo
durante a guerra. Muller disse que
durante a guerra a sua organização antinazi na Alemanha tinha insistido muito em
que o Papa evitasse fazer afirmações públicas dirigidas especificamente aos
nazis e condenando-os, tendo recomendado que as afirmações públicas do Papa se
confinassem a generalidades (…) Se o Papa tivesse sido específico, os alemães
tê-lo-iam acusado de ceder às pressões das potências estrangeiras, o que teria
colocado os católicos alemães ainda mais na mira dos nazis, tendo restringido imensamente
a sua liberdade de ação na resistência ao regime. Muller disse que a política
da resistência católica no interior da Alemanha era de que o Papa se colocasse
nas margens enquanto a hierarquia alemã levasse a cabo a luta contra os nazis. E
o Papa seguira sempre este conselho durante a guerra.
De tal modo foi percebido o papel do Papa por Hitler que, segundo alguns
historiadores, ordenou o sequestro do Papa por medo de Pio XII vir a aumentar e
agravar as suas críticas à perseguição judia levada a cabo pelos nazistas. E temia
que a oposição papal inspirasse mais resistência e oposição à ocupação alemã na
Itália e outros países católicos.
Nessa eventualidade, o Papa disse à Cúria que a sua captura pelos nazistas implicaria resignação imediata,
abrindo caminho à eleição do sucessor. Os cardeais teriam de se refugiar em
país seguro e neutro, como Portugal, onde iriam restabelecer a liderança da
Igreja Católica Romana e eleger novo Papa.
***
Graças à
pesquisa incansável de Riebling, agora podemos finalmente descartar as
alegações absurdas sobre Pio XII. Ele não era o “Papa de Hitler”, era o seu Nêmesis.
É certo que a suposta impassividade do Vaticano face às atrocidades
nazis na II Guerra Mundial representa uma das maiores controvérsias da
atualidade. A história apelidou Pio XII de “O Papa de Hitler”, considerando-o
conivente com a política nazi. Porém, mais do que manter-se distanciado ou
cúmplice dos acontecimentos ocorridos num dos mais períodos negros da história,
o Papa teve papel fundamental nos eventos que levaram à derrota nazi. Mark
Riebling, baseado em documentos recentemente abertos pelos arquivos secretos do
Vaticano e pelo British Foreing Office, apresenta a versão que, ao longo de
décadas, foi encoberta, abrindo as portas do Vaticano para revelar factos
surpreendentes na história do pontificado.
2016.10.19
– Louro de Carvalho
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