domingo, 9 de outubro de 2016

Regime especial para reduzir as dívidas fiscais e à Segurança Social

O Governo aprovou, no dia 6 de outubro, o Programa Especial de redução do Endividamento ao Estado (PERES), ou seja, um regime especial para reduzir as dívidas fiscais e à Segurança Social, podendo o contribuinte ficar isento de juros se pagar toda a dívida ou beneficiar de reduções se optar pelo pagamento em prestações. As reações não se fizeram esperar.
O PSD, pela voz de Jorge Paulo de Oliveira acusou:
“A avidez fiscal deste Governo parece não ter limites. O Governo acorda a pensar no aumento de impostos, deita-se a pensar no aumento de impostos e não digo que sonha, porque não dorme sequer. A avidez é tanta que ainda hoje apresentou ao país um novo programa de regularização de dívidas. A máscara caiu.”
Rocha Andrade, Secretário dos Assuntos Fiscais, rejeitou as acusações do socialdemocrata, explicando que “o objetivo da medida é o de criar um quadro para cumprimento voluntário das dívidas, permitindo que empresas e famílias tenham a sua situação fiscal regularizada”.
O governante afirmou desconhecer se a medida terá, ou não, adesão por parte dos contribuintes e se terá impacto na receita fiscal arrecadada pelo Estado, pois, a dívida tanto pode ser “cobrada ou paga este ano” como “paga em planos prestacionais” até 2016, já que o contribuinte pode optar por um plano de pagamento faseado, a 10 anos.
Os contornos da medida foram explicados pelo predito Secretário de Estado na conferência de imprensa do Conselho de Ministros do dia, em que revelou que as empresas e famílias que tenham dívidas fiscais ou contributivas
“Podem optar por um regime de pagamento integral, tendo perdão dos juros e das custas associadas, ou optar por um pagamento em prestações que pode ir até 150 prestações mensais, com uma redução de juros tanto maior quanto mais curto for o plano de pagamento”.
Porém, ao início da tarde, explicitou que o PERES se destina “a dívidas que já tenham sido liquidadas e que estejam em incumprimento”, referindo-se, pois, “fundamentalmente aos anos passados”, num contexto de crescimento da dívida fiscal em “cerca de 2000 milhões de euros” nos últimos 3 anos, que resulta num 'stock' de 25 mil milhões de euros em dívida acumulada
Entretanto, a deputada do CDS-PP Cecília Meireles questionou o membro do executivo sobre a abrangência da medida, nomeadamente, no respeitante à Galp, ao que Rocha Andrade, salvaguardando que não podia divulgar “dados relativos a um contribuinte”, respondeu sem mencionar o nome da empresa:
“Se há um contribuinte que litiga com o fisco um valor relativamente elevado (...) posso-lhe dizer que este regime se aplica à divida em execução ativa e à dívida em execução suspensa e, portanto, qualquer contribuinte que esteja a litigar com o fisco e que não tenha feito esse pagamento pode fazer o pagamento nos termos deste regime”.
Entretanto o Ministro das Finanças já esclareceu que o programa não se aplica à dita petrolífera.
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Quanto a mim, não percebo nem a insistência do Executivo em negar que seja um perdão fiscal, pelo menos parcial, nem a ferocidade das oposições a criticar algo que vem sendo recorrente na governança de República.
O Governo desmente categoricamente que o programa de redução das dívidas ao Estado (ao fisco e à Segurança Social) seja perdão fiscal, como acusa a oposição, dado não se tratar de perdão de capital, mas de mera anulação, ao menos parcial, de juros e de custas processuais. Quem não se lembra, por exemplo do RERT (regime especial de regularização tributária) de 2011, do BERD (Regime Excecional de Regularização de Dívidas Fiscais e à Segurança Social), de 2013, e dos regimes anteriores de regularização tributária para dinheiro colocado no estrangeiro, a troco de taxa fiscal reduzida?

Depois das notícias e reações políticas a dizer que estava em curso mais um perdão fiscal, surgiu nas redações um comunicado “urgente” do gabinete do primeiro-ministro, de que se destacam as seguintes asserções:
“Não é verdade que o Governo tenha aprovado hoje [dia 6] um perdão fiscal.” “O Governo desmente categoricamente que tenha sido aprovado um perdão fiscal. Não há nenhum perdão fiscal. As empresas e particulares terão de pagar todos os impostos em dívida.” “As empresas e particulares que aderirem a este plano apenas poderão pagar a prestações e ter isenção de juros de dívida e custas processuais. O objetivo desta medida não é o encaixe financeiro, mas preparar as empresas para se recapitalizarem a partir de janeiro de 2017.”.
Ora, o PERES prevê o pagamento até ao final do ano – mais propriamente 20 de dezembro – dos valores em dívida, tendo como contrapartida o perdão de juros e de custas judiciais, um prémio aos contribuintes em falta, várias vezes usado no passado para acelerar a cobrança fiscal.
Só que o anúncio acontece quando se multiplicavam as  notícias sobre a derrapagem na receita fiscal e dificuldade, resultante das previsões pessimistas, do cumprimento das metas do défice. E, se o ataque é fortíssimo à direita, a esquerda do Governo mostrou sinais de desconforto em relação a uma medida para a qual não terá sido consultada.
O Governo esclareceu, desde logo, que não se trata de mais um perdão fiscal, comparável com o aplicado pelo Governo PSD-CDS com o objetivo de apenas aumentar a receita fiscal. Pelo contrário, para o Ministério das Finanças, o PERES configura uma “mudança de paradigma” em relação ao passado, sendo o seu objetivo não captar mais receita, mas apoiar os contribuintes, particulares e sobretudo as empresas, na redução do endividamento após um período de crise:
“Um plano de redução do endividamento que não é vocacionado para quem tem fundos disponíveis, mas optou por não pagar os seus impostos e/ou esconder os seus rendimentos; um plano de redução do endividamento que não é vocacionado estritamente para a arrecadação imediata de receita, sendo orientado para uma reestruturação de longo prazo da dívida das famílias e empresas.”
Na audição parlamentar para discutir o relatório de Combate à Fraude e Evasão Fiscal de 2015, Fernando Rocha Andrade não poupou explicações sobre o programa, sobretudo quando PSD e CDS o acusavam de ter promovido um novo perdão fiscal como medida extraordinária para tapar o buraco nas contas públicas deste ano. Disse o governante:
“Este programa não engorda a receita fiscal num ano e permite parar execuções e penhoras em curso e libertar a tesouraria das empresas. É uma profunda diferença que explica porque é que as outras medidas eram má e esta é boa. (…) Em vez de termos a avidez de querer apanhar todo o dinheiro que as empresas podem pagar, os devedores podem diluir esse pagamento, permitindo às empresas usarem os seus recursos para investir e ter a situação fiscal regularizada para terem acesso a fundos comunitários.”.
E declarou não haver previsões sobre a receita prevista, dependendo da adesão dos contribuintes à opção de pagamentos em prestações que adia a entrada de dinheiro nos cofres do Estado.
Ora, os fiscalistas respondem à questão se o simples perdão de juros é perdão de dívida. Por exemplo, Luís Leon, da Deloitte, refere que “é pacífico que os juros, custas e coimas integram o conceito de dívida fiscal”, pois, “na realidade, o contribuinte incumpridor vai pagar menos agora que um contribuinte incumpridor que tenha pago até ao final de setembro por exemplo”. Por seu turno, Rogério Fernandes Ferreira, remete para o artigo 22.º da LGT (Lei Geral Tributária), que distingue dívidas tributárias (dívidas fiscais) de juros e de custas. É certo que os três fatores “são qualificados como uma responsabilidade tributária”, porém, embora o programa preveja o perdão, ou alívio no caso da adesão ao regime de prestações, dos juros e custas judiciais, não toca no valor em dívida. Assim, estamos ante um “perdão” das responsabilidades tributárias. E Jaime Esteves, partner da KPMG, fica-se numa posição intermédia, dizendo “que há perdão fiscal em sentido lato e não há um perdão fiscal em sentido estrito”, dado que “estamos ante um perdão de acréscimos pelo atraso no pagamento, sobretudo de juros, e um incentivo pela possibilidade de pagamento em prestações”. Contudo, “não há perdão de tributos”.
Não sendo o perdão fiscal propriamente um conceito técnico, nunca será assumido politicamente. Todos os programas desta índole têm sido qualificados como regimes extraordinários, especiais ou excecionais; têm prazo-limite curto para o pagamento especial; e configuram um incentivo financeiro ou legal os aderentes. Assim, estamos ante uma discussão meramente política ou “bizantina”. Por outro lado, o desmentido do Governo é enganador, pois, há, de facto, um perdão parcial do valor em dívida ao fisco (juros e custas integram a dívida como serviço da dívida). Com efeito, os contribuintes ficam isentos de pagar juros e custas (o que é perdoado para incentivar a adesão à medida). Porém, o desmentido não é totalmente destituído de sentido, já que a LGT diz que os juros e custas são elementos à parte do que é considerado dívida ao fisco. Não obstante, um contribuinte incumpridor que tenha pago a dívida este ano, antes da implementação do programa, sente-se prejudicado em relação ao contribuinte que adira agora ao plano: pagou mais, porque uma componente da dívida não foi perdoada e teve de desembolsar a totalidade da verba sem a hipótese de recorrer a prestações.
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A medida não concentra a recolha de receita neste ano, mas garante entrada de verbas nos cofres do Estado em 2017 e anos seguintes, não fazendo sentido admitir não se saber quanto se pode arrecadar com a medida, dado que é uma medida extraordinária para este ano, mas, se alguma dívida pode ser paga este ano, outra pode sê-lo mais tarde.  
Foi esta ambivalência da medida que João Galamba reforçou no Parlamento, no dia 7, dizendo:
“Em relação ao [regime] de 2013, há duas diferenças muito significativas: primeiro, o plano prestacional, ou seja, não visa arrecadar receita no curto prazo, mas sim dar condições às empresas e famílias para poderem pagar ao longo do tempo. Outra diferença é que, em 2013, em determinadas circunstâncias, havia amnistias fiscais para fraudes ou alguns crimes fiscais”.
Há, de facto, semelhança e diferença entre este programa e programas anteriores. Ao nível da semelhança é claro que as empresas e particulares que tenham dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social terão de pagar todos os impostos em dívida. Ao nível das diferenças, diga-se que, se aderirem ao plano como foi desenhado, poderão, se assim o entenderem, pagar a prestações até 11 anos (10+1), com alívio ou até isenção de juros e sem custas processuais. Mas, caso optem pelo pagamento faseado, os contribuintes devem liquidar à cabeça 8% do valor em dívida. E ficam fora deste plano os casos de fraude e crime fiscais.
Já o RERD previa um “perdão” para contribuintes que tivessem dívidas ao fisco e à Segurança Social, isentando-os de pagar juros de mora e juros compensatórios, custas administrativas e cobrando coimas mais baixas se aceitassem regularizar a situação, bem como a redução das coimas por atraso na entrega de declarações a 10% do montante mínimo legal, desde que a obrigação em falta estivesse regularizada e cobrando um valor mínimo de 10 euros.
Em suma, pode sustentar-se que o espírito dos dois regimes é parecido:
Dar aos devedores uma possibilidade de regularizarem a sua situação fiscal para investirem e terem acesso a fundos comunitários, ao mesmo tempo que potenciar no curto prazo a receita fiscal, ainda que o atual Executivo não assuma esse objetivo.
Mas apresenta-se uma diferença fundamental: o plano desenhado pelo XIX Governo não previa a possibilidade de pagamento em prestações.
E Rocha Andrade reconheceu, no Parlamento, existirem paralelismos entre as duas medidas.
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Também o PS criticava, neste capítulo, as medidas do Governo PSD/CDS. Em outubro de 2013, o socialista Eduardo Cabrita, atual ministro-adjunto de Costa, acusava o Governo de recorrer ao perdão fiscal como um “expediente orçamental de vista curta” que reforçava “o sentimento de injustiça e retirava credibilidade” ao Executivo. Os socialistas utilizavam uma expressão que hoje rejeitam, “perdão fiscal”. Ora, os dois regimes excecionais apenas perdoam juros e custas processuais, independentemente da questão das prestações. Se o programa de Passos pode ser chamado de “perdão fiscal”, este também.
O BE, em 2013, pela voz de Pedro Filipe Soares, foi perentório, ao dizer que “este perdão fiscal custou um submarino e que a maioria PSD/CDS só fica descansada “quando perdoa a alguns e vai ao bolso de todos”. Porém, o BE apresenta agora posição similar. Catarina Martins diz que “o Bloco de Esquerda nunca foi favorável a estes perdões fiscais e não mudou de ideias”, sendo que “[o perdão] seria utilizado para computar receitas de défice para a Europa ver”.
Por seu turno, o PCP, pela mão de Paulo Sá, acusou PSD e CDS, em 2013, de tentarem mascarar os números do défice recorrendo a “perdão fiscal” extraordinário: uma “encenação montada pelo Governo em torno do défice para fazer crer aos portugueses que os sacrifícios valeram a pena, visando mais brutais medidas de austeridade”. O mesmo Paulo Sá clarifica agora a posição do partido, contraposta ao que se passava com o Governo anterior, que só incluía quem pudesse pagar a totalidade da dívida, vigorando durante um período especial e considerando a amnistia de crimes fiscais:
“O que o Governo agora anunciou é um programa extraordinário de regularização de dívida ao Estado – Fisco e Segurança Social – que não prevê qualquer perdão do capital. Ou seja, toda a dívida deve ser paga integralmente, prevendo-se isenções de coimas e juros no caso de pagamento imediato ou uma isenção parcial no caso de ser feito a prestações.”.
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Feito o balanço prático, há perdão na medida, seja só de responsabilidades tributárias, seja de outras. Alguém deve o que não pagou e mais alguma coisa porque não pagou e, via fiscal, acarretou despesas ao Estado. Chame-se a isto o que se quiser.
Trata-se de um regime excecional, semelhante a outros, mas a que já nos vimos habituando, embora com diferenças: todos os devedores serão abrangidos, prevê-se a opção prestacional e a plurianualidade e não se incluem os crimes fiscais tout court.
Entende-se que haja famílias e empresas que não tenham satisfeito as suas obrigações fiscais e contributivas por dificuldades reais, mas não se tolera que algumas não declarem valores, coloquem dinheiro a salvo no estrangeiro e, sobretudo, que programem falhar com a mira de que surjam programas extraordinários deste jaez.
Percebe-se que o Governo sinta dificuldades do cumprimento das metas orçamentais, mas estranha-se que tome medidas destas junto ao fim do ano ou que diga que tem em vista “só ajudar”.
Finalmente, fica ferido o princípio da igualdade em relação aos que já pagaram recentemente sem estes benefícios.
É a vida, como diz Costa. E a vida custa, Costa, é madrasta, Costa!

2106.10.09 – Louro de Carvalho   

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