O Governo aprovou, no dia 6 de outubro, o Programa Especial de
redução do Endividamento ao Estado (PERES), ou seja, um regime especial para reduzir as
dívidas fiscais e à Segurança Social, podendo o contribuinte ficar isento de
juros se pagar toda a dívida ou beneficiar de reduções se optar pelo pagamento
em prestações. As reações não se fizeram esperar.
O PSD, pela voz de Jorge Paulo de Oliveira acusou:
“A avidez
fiscal deste Governo parece não ter limites. O Governo acorda a pensar no
aumento de impostos, deita-se a pensar no aumento de impostos e não digo que
sonha, porque não dorme sequer. A avidez é tanta que ainda hoje apresentou ao
país um novo programa de regularização de dívidas. A máscara caiu.”
Rocha Andrade, Secretário dos Assuntos Fiscais, rejeitou as
acusações do socialdemocrata, explicando que “o objetivo da medida é o de criar
um quadro para cumprimento voluntário das dívidas, permitindo que empresas e
famílias tenham a sua situação fiscal regularizada”.
O governante afirmou desconhecer se a medida terá, ou não, adesão
por parte dos contribuintes e se terá impacto na receita fiscal arrecadada pelo
Estado, pois, a dívida tanto pode ser “cobrada ou paga este ano” como “paga em
planos prestacionais” até 2016, já que o contribuinte pode optar por um plano
de pagamento faseado, a 10 anos.
Os contornos da medida foram explicados pelo predito Secretário de
Estado na conferência de imprensa do Conselho de Ministros do dia, em que
revelou que as empresas e famílias que tenham dívidas fiscais ou contributivas
“Podem optar
por um regime de pagamento integral, tendo perdão dos juros e das custas
associadas, ou optar por um pagamento em prestações que pode ir até 150
prestações mensais, com uma redução de juros tanto maior quanto mais curto for
o plano de pagamento”.
Porém, ao início da tarde, explicitou que o PERES se destina “a
dívidas que já tenham sido liquidadas e que estejam em incumprimento”, referindo-se,
pois, “fundamentalmente aos anos passados”, num contexto de crescimento da
dívida fiscal em “cerca de 2000 milhões de euros” nos últimos 3 anos, que
resulta num 'stock' de 25 mil milhões de euros em dívida acumulada
Entretanto, a deputada do CDS-PP Cecília Meireles questionou o
membro do executivo sobre a abrangência da medida, nomeadamente, no respeitante
à Galp, ao que Rocha Andrade, salvaguardando que não podia divulgar “dados
relativos a um contribuinte”, respondeu sem mencionar o nome da empresa:
“Se há um
contribuinte que litiga com o fisco um valor relativamente elevado (...)
posso-lhe dizer que este regime se aplica à divida em execução ativa e à dívida
em execução suspensa e, portanto, qualquer contribuinte que esteja a litigar
com o fisco e que não tenha feito esse pagamento pode fazer o pagamento nos
termos deste regime”.
Entretanto o Ministro das Finanças já esclareceu que o programa
não se aplica à dita petrolífera.
***
Quanto a mim, não percebo nem a insistência do Executivo em negar que seja
um perdão fiscal, pelo menos parcial, nem a ferocidade das oposições a
criticar algo que vem sendo recorrente na governança de República.
O Governo
desmente categoricamente que o programa de redução das dívidas ao Estado (ao fisco e à
Segurança Social) seja
perdão fiscal, como acusa a oposição, dado não se tratar de perdão de capital,
mas de mera anulação, ao menos parcial, de juros e de custas processuais. Quem
não se lembra, por exemplo do RERT (regime especial de regularização
tributária) de 2011, do BERD (Regime
Excecional de Regularização de Dívidas Fiscais e à Segurança Social), de 2013, e dos regimes anteriores de regularização
tributária para dinheiro colocado no estrangeiro, a troco de taxa fiscal
reduzida?
Depois das notícias e reações políticas a dizer que estava em curso
mais um perdão fiscal, surgiu nas redações um comunicado “urgente” do gabinete do primeiro-ministro, de que se destacam
as seguintes asserções:
“Não é verdade que o Governo tenha aprovado hoje
[dia 6] um perdão fiscal.” “O Governo
desmente categoricamente que tenha sido aprovado um perdão fiscal. Não há
nenhum perdão fiscal. As empresas e particulares terão de pagar todos os
impostos em dívida.” “As
empresas e particulares que aderirem a este plano apenas poderão pagar a
prestações e ter isenção de juros de dívida e custas processuais. O objetivo
desta medida não é o encaixe financeiro, mas preparar as empresas para se
recapitalizarem a partir de janeiro de 2017.”.
Ora, o PERES
prevê o pagamento até ao final do ano – mais propriamente 20 de dezembro – dos
valores em dívida, tendo como contrapartida o perdão de juros e de custas
judiciais, um prémio aos contribuintes em falta, várias vezes usado no passado
para acelerar a cobrança fiscal.
Só que o
anúncio acontece quando se multiplicavam as notícias sobre a derrapagem na receita fiscal e
dificuldade, resultante das previsões pessimistas, do cumprimento das metas do
défice. E, se o ataque é fortíssimo à direita, a esquerda do Governo mostrou
sinais de desconforto em relação a uma medida para a qual não terá sido
consultada.
O Governo esclareceu,
desde logo, que não se trata de mais um perdão fiscal, comparável com o aplicado
pelo Governo PSD-CDS com o objetivo de apenas aumentar a receita fiscal. Pelo contrário,
para o Ministério das Finanças, o PERES configura uma “mudança de paradigma” em relação
ao passado, sendo o seu objetivo não captar mais receita, mas apoiar os
contribuintes, particulares e sobretudo as empresas, na redução do endividamento após um período de
crise:
“Um plano de redução do endividamento que não é vocacionado para quem tem
fundos disponíveis, mas optou por não pagar os seus impostos e/ou esconder os
seus rendimentos; um plano de redução do endividamento que não é vocacionado
estritamente para a arrecadação imediata de receita, sendo orientado para uma
reestruturação de longo prazo da dívida das famílias e empresas.”
Na audição parlamentar
para discutir o relatório de Combate à Fraude e Evasão Fiscal de 2015, Fernando
Rocha Andrade não poupou explicações sobre o programa, sobretudo quando PSD e CDS
o acusavam de ter promovido um novo
perdão fiscal como medida extraordinária para tapar o buraco nas
contas públicas deste ano. Disse o governante:
“Este programa não engorda a receita fiscal num ano e permite parar execuções
e penhoras em curso e libertar a tesouraria das empresas. É uma profunda
diferença que explica porque é que as outras medidas eram má e esta é boa. (…)
Em vez de termos a avidez de querer apanhar todo o dinheiro que as empresas
podem pagar, os devedores podem diluir esse pagamento, permitindo às empresas
usarem os seus recursos para investir e ter a situação fiscal regularizada para
terem acesso a fundos comunitários.”.
E declarou
não haver previsões sobre a receita prevista, dependendo da adesão dos
contribuintes à opção de pagamentos em prestações que adia a entrada de
dinheiro nos cofres do Estado.
Ora, os
fiscalistas respondem à questão se o simples perdão de juros é perdão de dívida.
Por exemplo, Luís Leon, da
Deloitte, refere que “é pacífico que os juros, custas e coimas integram o
conceito de dívida fiscal”, pois, “na realidade, o contribuinte incumpridor vai pagar menos agora que um
contribuinte incumpridor que tenha pago até ao final de setembro por exemplo”.
Por seu turno, Rogério Fernandes
Ferreira, remete para o artigo 22.º da LGT (Lei Geral
Tributária), que distingue dívidas tributárias (dívidas
fiscais) de juros
e de custas. É
certo que os três fatores “são qualificados como uma responsabilidade
tributária”, porém, embora o programa preveja o perdão, ou alívio no caso da
adesão ao regime de prestações, dos juros e custas judiciais, não toca no valor
em dívida. Assim, estamos ante um “perdão” das responsabilidades tributárias. E Jaime Esteves, partner da KPMG, fica-se
numa posição intermédia, dizendo “que
há perdão fiscal em sentido lato e não há um perdão fiscal em sentido estrito”,
dado que “estamos ante um perdão de acréscimos pelo atraso no pagamento,
sobretudo de juros, e um incentivo pela possibilidade de pagamento em prestações”.
Contudo, “não há perdão de tributos”.
Não sendo o perdão
fiscal propriamente um conceito técnico, nunca será assumido politicamente.
Todos os programas desta índole têm sido qualificados como regimes extraordinários,
especiais ou excecionais; têm prazo-limite curto para o pagamento especial; e configuram
um incentivo financeiro ou legal os aderentes. Assim, estamos ante uma
discussão meramente política ou “bizantina”. Por outro lado, o desmentido do
Governo é enganador, pois,
há, de facto, um perdão parcial do valor em dívida ao fisco (juros e
custas integram a dívida como serviço da dívida). Com efeito, os contribuintes ficam isentos de pagar juros e custas (o que é
perdoado para incentivar a adesão à medida). Porém, o
desmentido não é totalmente destituído de sentido, já que a LGT diz que os
juros e custas são elementos à parte do que é considerado dívida ao fisco. Não
obstante, um contribuinte incumpridor que tenha pago a dívida este ano, antes
da implementação do programa, sente-se prejudicado em relação ao contribuinte
que adira agora ao plano: pagou mais, porque uma componente da dívida não foi
perdoada e teve de desembolsar a totalidade da verba sem a hipótese de recorrer
a prestações.
***
A medida não
concentra a recolha de receita neste ano, mas garante entrada de verbas nos
cofres do Estado em 2017 e anos seguintes, não fazendo sentido admitir não se saber
quanto se pode arrecadar com a medida, dado que é uma medida extraordinária
para este ano, mas, se alguma dívida pode ser paga este ano, outra pode sê-lo
mais tarde.
Foi esta
ambivalência da medida que João Galamba reforçou no Parlamento, no dia 7,
dizendo:
“Em relação ao [regime] de 2013, há duas diferenças muito
significativas: primeiro, o plano prestacional, ou seja, não visa
arrecadar receita no curto prazo, mas sim dar condições às empresas e famílias
para poderem pagar ao longo do tempo. Outra diferença é que, em 2013, em
determinadas circunstâncias, havia amnistias fiscais para fraudes ou alguns
crimes fiscais”.
Há, de facto,
semelhança e diferença entre este programa e programas anteriores. Ao nível da
semelhança é claro que as empresas e particulares que tenham dívidas à
Autoridade Tributária e à Segurança Social terão
de pagar todos os impostos em dívida. Ao nível das diferenças, diga-se que, se aderirem ao plano como
foi desenhado, poderão, se assim o entenderem, pagar a prestações até 11 anos (10+1), com alívio ou até isenção de juros e sem custas
processuais. Mas, caso optem pelo pagamento faseado, os contribuintes
devem liquidar à cabeça 8% do valor em dívida. E ficam fora deste
plano os casos de fraude e crime fiscais.
Já o RERD previa
um “perdão” para contribuintes que tivessem dívidas ao fisco e à Segurança
Social, isentando-os de
pagar juros de mora e juros compensatórios, custas administrativas e cobrando
coimas mais baixas se aceitassem regularizar a situação, bem como a redução das
coimas por atraso na entrega de declarações a 10% do montante mínimo legal,
desde que a obrigação em falta estivesse regularizada e cobrando um valor
mínimo de 10 euros.
Em suma, pode
sustentar-se que o espírito dos dois regimes é parecido:
Dar aos devedores uma possibilidade de regularizarem a sua situação
fiscal para investirem e terem acesso a fundos comunitários, ao mesmo tempo que
potenciar no curto prazo a receita fiscal, ainda que o atual Executivo não
assuma esse objetivo.
Mas
apresenta-se uma diferença fundamental: o plano desenhado pelo XIX
Governo não previa a possibilidade de pagamento em prestações.
E Rocha Andrade reconheceu, no
Parlamento, existirem paralelismos entre as duas medidas.
***
Também o PS criticava, neste capítulo, as medidas
do Governo PSD/CDS. Em outubro de 2013, o socialista Eduardo
Cabrita, atual ministro-adjunto de Costa, acusava o Governo de recorrer ao
perdão fiscal como um “expediente
orçamental de vista curta” que reforçava “o sentimento de
injustiça e retirava credibilidade” ao Executivo. Os socialistas utilizavam uma expressão que hoje rejeitam,
“perdão fiscal”. Ora, os
dois regimes excecionais apenas perdoam juros e custas processuais,
independentemente da questão das prestações. Se o programa de Passos
pode ser chamado de “perdão fiscal”, este também.
O BE, em
2013, pela voz de Pedro Filipe Soares, foi perentório, ao dizer que “este perdão fiscal custou um submarino e que a maioria PSD/CDS só fica descansada “quando perdoa a alguns e vai
ao bolso de todos”. Porém, o BE apresenta agora posição similar. Catarina
Martins diz que “o Bloco de Esquerda nunca foi
favorável a estes perdões fiscais e não mudou de ideias”, sendo que “[o
perdão] seria utilizado para computar receitas de défice para a Europa ver”.
Por seu
turno, o PCP, pela mão de Paulo Sá, acusou PSD e CDS, em 2013, de tentarem
mascarar os números do défice recorrendo a “perdão fiscal” extraordinário: uma “encenação montada pelo Governo em torno do défice para fazer crer aos
portugueses que os sacrifícios valeram a pena, visando mais brutais medidas de
austeridade”. O mesmo Paulo Sá clarifica agora a posição do partido,
contraposta ao que se passava com o Governo anterior, que só incluía
quem pudesse pagar a totalidade da dívida, vigorando durante um período especial e considerando a amnistia
de crimes fiscais:
“O que o Governo agora anunciou é um
programa extraordinário de regularização de dívida ao Estado – Fisco e
Segurança Social – que não prevê qualquer perdão do capital. Ou seja, toda a
dívida deve ser paga integralmente, prevendo-se isenções de coimas e juros no
caso de pagamento imediato ou uma isenção parcial no caso de ser feito a
prestações.”.
***
Feito
o balanço prático, há perdão na medida, seja só de responsabilidades tributárias,
seja de outras. Alguém deve o que não pagou e mais alguma coisa porque não
pagou e, via fiscal, acarretou despesas ao Estado. Chame-se a isto o que se
quiser.
Trata-se
de um regime excecional, semelhante a outros, mas a que já nos vimos habituando,
embora com diferenças: todos os devedores serão abrangidos, prevê-se a opção
prestacional e a plurianualidade e não se incluem os crimes fiscais tout court.
Entende-se
que haja famílias e empresas que não tenham satisfeito as suas obrigações
fiscais e contributivas por dificuldades reais, mas não se tolera que algumas não
declarem valores, coloquem dinheiro a salvo no estrangeiro e, sobretudo, que
programem falhar com a mira de que surjam programas extraordinários deste jaez.
Percebe-se
que o Governo sinta dificuldades do cumprimento das metas orçamentais, mas
estranha-se que tome medidas destas junto ao fim do ano ou que diga que tem em
vista “só ajudar”.
Finalmente,
fica ferido o princípio da igualdade em relação aos que já pagaram recentemente
sem estes benefícios.
É
a vida, como diz Costa. E a vida custa, Costa, é madrasta, Costa!
2106.10.09 – Louro de Carvalho
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