O Concílio
Vaticano II foi inaugurado em 1962, a 11 de outubro, então dia litúrgico da
Maternidade de Maria, que passou para o dia um de janeiro de cada ano com a
reforma do calendário litúrgico que decorreu na sequência do evento conciliar.
O espírito
que presidiu à abertura da magna aula dos bispos encontra-se espelhado no
discurso do Papa São João XXIII, que a anunciou, convocou e a cuja inauguração
presidiu pessoalmente.
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Como os
demais concílios ecuménicos, também este,
“testemunha claramente a vitalidade da Igreja Católica” e constitui ponto
luminoso “da sua história” – dizia Roncalli.
Era sua pretensão afirmar “a continuidade do magistério eclesiástico, para o apresentar,
em forma excecional, a todos os homens do nosso tempo, tendo em conta os desvios,
as exigências e as possibilidades deste nosso tempo”.
Além da
contemplação do passado cujas vozes aclamam “em perenidade de fervor o triunfo
da instituição divina e humana, a Igreja de Cristo, que recebe dele o nome, a
graça e o significado”, o Papa almejava que o Concílio lançasse, no presente, o
olhar para “Cristo sempre a brilhar no centro da história e da vida”, sendo que
os homens ou estão com ele e com a Igreja e “gozam da luz, da bondade, da ordem
e da paz”, ou estão sem ele ou contra ele e deliberadamente contra a Igreja e “tornam-se
motivo de confusão, causando aspereza nas relações humanas, e perigos contínuos
de guerras fratricidas”.
Assim, o
Concílio celebra solenemente a “união de Cristo e da sua Igreja” e leva “à
irradiação universal da verdade, à reta direção da vida individual, doméstica e
social ao reforço das energias espirituais, em perene elevação para os bens
verdadeiros e eternos” e revisita os testemunhos do magistério extraordinário
da Igreja, recolhido em vários volumes imponentes como “património sagrado dos
arquivos eclesiásticos”, em Roma e nas bibliotecas mais célebres do mundo
inteiro.
Depois, o
Pontífice assinalou como origem desta assembleia magna a expressão “Concílio
Ecuménico” inesperadamente proferida diante do Sacro Colégio no dia 25 de
janeiro de 1959, festa da Conversão de são Paulo, que despertou “um grande
fervor” em todo o mundo. E, durante três anos, desenvolveu-se um complexo de
trabalhos de “preparação laboriosa” a indagar ampla e profundamente as condições
modernas da fé e da prática religiosa e da vitalidade cristã e católica.
A esta luz, a
Igreja “engrandecerá em riquezas espirituais e, recebendo a força de novas
energias, olhará intrépida para o futuro”. E, “com atualizações oportunas e com
a prudente coordenação da colaboração mútua”, “conseguirá que os homens, as
famílias e os povos voltem realmente a alma para as coisas celestiais” e ficará
singularmente reconhecida “ao supremo dispensador de todos os bens”, celebrando
“com cânticos de exultação a glória de Cristo Senhor, Rei glorioso e imortal
dos séculos e dos povos”.
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O Concílio ia celebrar-se num momento em que abundavam os profetas da
desgraça que apenas viam ruína e prevaricação no mundo em comparação com as
épocas passadas, profecias essas que era necessário esconjurar, pois, no presente momento histórico, a
Providência está a levar-nos “para uma nova ordem de relações humanas, que, por
obra dos homens e o mais das vezes para além do que esperam, se dirigem para a
satisfação de desígnios superiores e inesperados”; e “tudo, mesmo as
adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja”.
É certo que
“o mundo hodierno” está deveras ocupado “com a política e as controvérsias de
ordem económica”, sem disposição para as questões de ordem espiritual, mas não
se pode negar que as novas condições da vida moderna têm a vantagem de ter
suprimido aqueles inúmeros obstáculos, com que, em tempos passados, “os filhos
do século impediam a ação livre da Igreja”. Basta percorrer a história
eclesiástica, para verificar que os Concílios Ecuménicos, “cujas vicissitudes
constituíram uma sucessão de verdadeiras glórias para a Igreja Católica, foram
muitas vezes celebrados com alternativas de dificuldades gravíssimas e de
tristezas, por causa da intromissão indevida das autoridades civis”, que se
propunham “proteger com toda a sinceridade a Igreja”, mas, o mais das vezes,
não “sem dano e perigo espiritual”, já que “procediam segundo as conveniências
da sua política interesseira e perigosa”.
O Papa
lamentava a ausência de muitíssimos Bispos “por estarem presos devido à sua
fidelidade a Cristo ou detidos por outros impedimentos” e por quem pedia
orações, mas, com grande esperança e conforto para a alma, via que a Igreja, “livre
de tantos obstáculos de natureza profana, como acontecia no passado, pode desta
Basílica Vaticana, como de um segundo Cenáculo Apostólico, fazer sentir por
vosso meio a sua voz, cheia de majestade e de grandeza”.
O fim principal do Concílio era que fosse “guardado e ensinado de forma mais eficaz” o
depósito sagrado da doutrina cristã, doutrina que “abarca o homem inteiro,
composto de alma e corpo, e a nós, peregrinos nesta terra, manda-nos tender
para a pátria celeste”. Por isso, é mister que ordenemos “a nossa vida mortal
de modo a cumprirmos os nossos deveres de cidadãos da terra e do céu e conseguirmos
assim o fim estabelecido por Deus”. é certo que a nossa prioridade há de ser a procura do Reino de Deus e
da sua justiça (cf Mt 6,33). Porém, não devemos esquecer as
outras palavras daquela exortação do Senhor, “todas estas coisas vos serão
dadas por acréscimo” (id et ib). Com efeito, existiram e existem,
na Igreja, “os que, embora procurem com todas as forças praticar a perfeição
evangélica, não se esquecem de ser úteis à sociedade” de modo que, do “seu
exemplo de vida” e das “suas iniciativas de caridade toma vigor e incremento o
que há de mais alto e mais nobre na sociedade humana”.
Ora, para que
a doutrina atinja os múltiplos níveis da atividade humana – indivíduos,
famílias e vida social, importa que “a Igreja não se aparte do património
sagrado da verdade, recebido dos seus maiores” e olhe “para o presente, para as
novas condições e formas de vida introduzidas no mundo hodierno, que abriram
novos caminhos ao apostolado católico”. Por isso, dizia o Papa:
“A Igreja não assistiu indiferente ao
admirável progresso das descobertas do género humano e não lhes negou o justo
apreço, mas, seguindo estes progressos, não deixa de avisar os homens para que,
bem acima das coisas sensíveis, elevem os olhares para Deus, fonte de toda a
sabedoria e beleza; e eles, a quem foi dito, ‘Submetei
a terra e dominai-a’ (Gn 1,28),
não esqueçam o mandamento gravíssimo, ‘Adorarás
o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’ (Mt 4,10; Lc 4,8), para que não suceda que a
fascinação efémera das coisas visíveis impeça o verdadeiro progresso.”
Quanto à promoção da doutrina, o XXI Concílio Ecuménico, que se aproveitará da eficaz e
importante soma de experiências, transmitirá pura e íntegra a doutrina, sem atenuações
nem subterfúgios, que por 20 séculos, apesar das dificuldades e das oposições,
se tornou património comum dos homens, não recebido por todos, mas riqueza “sempre
ao dispor dos homens de boa vontade” e que urge conservar. Não se trata, pois,
de novas discussões doutrinais, mas de uma nova formulação da doutrina e
sobretudo da sua incidência pastoral.
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Na sucessão
das épocas, sucedem-se as opiniões dos homens excluindo-se umas às outras e
muitas vezes os erros dissipam-se logo ao nascer, como a névoa ao despontar o
sol. A Igreja sempre se opôs aos erros, tendo-os condenado com a maior
severidade. Porém, agora, a esposa de Cristo prefere usar “mais o remédio da
misericórdia do que o da severidade”, julgando “satisfazer melhor às
necessidades de hoje” ao mostrar a validez
da sua doutrina do que “a renovar condenações”. Com efeito, os homens vão-se
convencendo cada vez mais de que “a dignidade da pessoa humana, o seu aperfeiçoamento
e o esforço que exige são coisa da máxima importância”, sendo que “a violência
feita aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem em
nada para a feliz solução dos graves problemas que os atormentam”.
Nestes
termos, a Igreja Católica, erguendo o facho da verdade religiosa, quer
mostrar-se “mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e
bondade também com os filhos dela separados”. E “ao género humano, oprimido por
tantas dificuldades, diz, como outrora Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: ‘Não tenho nem ouro nem prata, mas dou-te
aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda’” (At 3,6). Ou seja, dizia João XXIII:
“A Igreja não oferece aos homens de
hoje riquezas caducas, não promete uma felicidade só terrena; mas comunica-lhes
os bens da graça divina, que, elevando os homens à dignidade de filhos de Deus,
são defesa poderosíssima e ajuda para uma vida mais humana; abre a fonte da sua
doutrina vivificante, que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo,
compreender bem o que eles são na realidade; a sua excelsa dignidade e o seu
fim; e mais, por meio dos seus filhos, estende a toda parte a plenitude da
caridade cristã, que é o melhor auxílio para eliminar as sementes da discórdia;
e nada é mais eficaz para fomentar a concórdia, a paz justa e a união fraterna.”
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No atinente à promoção da unidade na família cristã e humana, a
solicitude da Igreja visa a promoção e defesa da verdade, correspondendo ao desígnio de Deus que “quer
salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). Contudo, a família cristã, não atingiu ainda, plena e
perfeitamente, esta visível unidade na verdade. Por isso, a Igreja Católica
julga dever seu “empenhar-se ativamente para que se realize o grande mistério
daquela unidade que Jesus Cristo pediu com oração ardente ao Pai celeste, pouco
antes do seu sacrifício”. É, pois, triste verificar que “a maior parte do género
humano”, apesar de ter sido remido pelo sangue de Cristo, não partilha “daquelas
fontes da graça divina que existem na Igreja”. Por isso, “à Igreja Católica,
cuja luz tudo ilumina e cuja força de unidade sobrenatural beneficia toda a
humanidade”, bem quadram as palavras de São Cipriano:
“A Igreja, aureolada de luz divina,
envia os seus raios ao mundo inteiro; é, porém, luz única, que por toda a parte
se difunde sem que fique repartida a unidade do corpo. Estende os seus ramos
sobre toda a terra pela sua fecundidade, difunde sempre mais e mais os seus
regatos: contudo, uma só é a cabeça, única é a origem, uma é a mãe copiosamente
fecunda; por ela fomos dados à luz, alimentamo-nos com o seu leite, vivemos do
seu espírito” (De Catholicae
Ecclesiae unitate, 5).
Isto se
propôs o Concílio Vaticano II, que, enquanto unia as melhores energias da
Igreja e se empenhava por fazer acolher pelos homens o anúncio da salvação,
como que preparava e consolidava o caminho para aquela unidade do género
humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se
conforme à semelhança da celeste “em que
reina a verdade, é lei a caridade, e a extensão é a eternidade” (cf Santo Agostinho, Epist. CXXXVIII, 3).
Foi isto (e só isto) o que fez o Concílio? Avançámos
mais na melhoria do mundo, no ecumenismo, no diálogo inter-religioso e na união
das pessoas e dos povos? O Concílio chegou a atingir o homem todo e todos os
homens, em todos os setores da atividade humana? O mundo melhorou mesmo? O homem
deixou de ser o inimigo do homem?
2016.10.12 – Louro de Carvalho
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