O Papa Francisco, na sua preocupação de ir às periferias como
sinal de Igreja em saída, não se contenta com o serviço vaticano tout court e com as deslocações aonde quer
que lho solicitem. Porém, não abdica do uso da palavra em grandes areópagos e
de se dirigir às multidões.
Certamente que discursar perante o Congresso americano ou no
Parlamento Europeu e no Conselho da Europa não constitui uma jornada papal de
procura de prestígio. Será, antes, um levantar da voz do qualificado discípulo
de Cristo e servo dos servos de Deus nos espaços onde devem ser e até dizem que
são tratados os assuntos que dizem respeito à pessoa humana nas suas angústias,
explorações, marginalizações, direitos e deveres. Depois, é a oportunidade que
Francisco utiliza para enaltecer o trabalho daqueles e daquelas que se dedicam
aos pobres, aos doentes, aos pecadores, pelo serviço da fé. E o Papa argentino
visita, pessoalmente ou por outrem, hospitais, lares de idosos, centros de
deficientes profundos, lares de crianças, reclusos, vítimas das guerras, do
holocausto, comunidades em tensão religiosa, política, social, étnica e
económica e países ou regiões que sofreram os horrores da guerra ou de
catástrofes naturais.
Em suma, Francisco é o paladino da voz, da vez e dos direitos
dos pobres, o peregrino da paz, o pegureiro do ecumenismo e do diálogo
inter-religioso ou o embaixador da boa vontade dos homens e da benevolência
misericordiosa de Deus.
***
A recente viagem apostólica à Geórgia e ao Azerbaijão, ainda
fresca na memória, além do mais que já dissemos noutras ocasiões e que a
comunicação social sublinha, configura a atenção e proximidade de Francisco a
comunidades católicas minúsculas, uma delas com cerca de 600 pessoas,
pequeninos rebanhos onde vive e se revigora a Igreja Católica, explicitamente
referenciada a Jesus Cristo e ao Bispo de Roma.
A Missa que celebrou na Igreja da Imaculada Conceição no
Centro Salesiano de Baku, Azerbaijão, a 2 de outubro, no XXVII domingo do Tempo
Comum, configura uma autêntica confirmação na fé (Lc 22,32) daquela pequena comunidade católica e um forte apelo
ao serviço.
A propósito da fé, o Sucessor de Pedro, na sua solicitude por
todas as Igrejas, enuncia duas petições dirigidas ao Senhor: a súplica de
justiça e paz; e o aumento da fé.
A primeira, na voz de Habacuc, suplica de forma lancinante a
Deus a sua intervenção para restabelecer a justiça e a paz que os homens rompem
com violência, lutas e contendas. Porém, Deus não intervém diretamente, nem
resolve subitamente a situação, nem Se torna presente com força e poder. Ao
invés, sublinhando a importância da fé, sugere que se aguarde com paciência,
sem perda da esperança, pois o homem viverá pela sua fé (cf Hab 2,4). Assim continua Deus a proceder
connosco: não pactuando com o nosso desejo de mudar imediata e continuamente o
mundo e os outros, mas visando, antes de mais, curar o coração de cada um, pois
é mudando os corações que Deus muda o mundo. Para isso, porque não o pode nem
quer fazer sem nós, o Senhor deseja que Lhe abramos a porta do coração para
poder entrar na nossa vida. Com efeito, quando encontra um coração aberto e
confiante, pode nele realizar maravilhas. E é a abertura confiante e
colaborante que induz o “poder vitorioso que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4).
A seguir, vem a segunda petição ao Senhor, a dos apóstolos:
“Aumenta a nossa fé!” (Lc
17,5).
Na verdade, diz o Papa, “ter fé – uma fé viva – não é fácil”.
Por isso, a súplica dos apóstolos é a súplica que devemos fazer nossa. Porém, o
Senhor como que nos devolve a petição: “Se tivésseis fé...” Assim, cruza-se o pedido
de Deus com o nosso. Quer isto dizer que, se a fé “é um dom de Deus, que sempre
se deve pedir, tem de ser, por sua vez, cultivada também por nós”. Não se trata
de “força mágica que desce do céu” ou “dote pessoal que se recebe duma vez para
sempre” ou “superpoder que sirva para resolver os problemas”. De facto, “fé
útil para satisfazer as nossas necessidades” seria “fé egoísta”, centrada em
nós. Por outro lado, não se pode confundir a fé com a sensação de conforto. Assim,
Francisco entende a fé como “o fio de ouro que nos liga ao Senhor, a pura alegria
de estar com Ele”, “unido a Ele” e “o dom que vale a vida inteira, mas que só
dá fruto, se fizermos a nossa parte. E a nossa parte é o serviço na
simplicidade.
***
Na perspetiva do Papa, o serviço é uma resposta da fé, uma
componente da fé – o que nos faz compreender a tese do apóstolo Tiago de que a
fé sem obras é morta (cf
Tg 2,14-26) e a de Paulo
de que as obras sem fé não justificam o homem, não o salvam (Gl 2,16; Rm 3,28).
Por isso, como assegura o Papa, “fé e serviço não se podem
separar; antes, pelo contrário, estão intimamente ligados, atados entre si”. E,
para ilustrar esta asserção utiliza a imagem do tapete, já que os tapetes do
Azerbaijão “são verdadeiras obras de arte e provêm duma tradição muito antiga”,
tal como a vida cristã, “dom que recebemos na Igreja e que provém do coração de
Deus, nosso Pai, que deseja fazer de cada um de nós uma obra-prima da criação e
da história”. Ora, como cada tapete é “tecido segundo a teia e a tecedura”,
pois “só com esta estrutura é que o conjunto resulta bem composto e harmonioso”,
assim a vida cristã “tem de ser pacientemente tecida cada dia”, entrelaçando
entre si teia e tecedura bem definidas: “teia da fé” e “tecedura do serviço”. E
o enlaçamento da fé com o serviço torna o coração aberto e jovem, a dilatar-se
ao fazer o bem. Então, a fé “torna-se poderosa e faz maravilhas”. Fé produz e
espelha serviço; e serviço espelha a fé e produz mais fé!
E o Papa esclarece sobre o que entende por serviço:
“Poderíamos
pensar que consistisse apenas em ser fiéis aos próprios deveres ou na prática
de qualquer obra boa. Mas, para Jesus, é muito mais. No Evangelho de hoje [cf
Lc 17,7-10], pede-nos, mesmo com palavras muito fortes e radicais, uma
disponibilidade total, uma vida totalmente disponível, sem olhar a cálculos nem
conveniências.”.
Tal exigência resulta de Ele nos amar assim, fazendo-Se nosso
servo “até ao extremo” (Jo
13,1), vindo “para
servir e dar a sua vida” (Mc
10,45), o que sucede
quando celebramos a Eucaristia:
“O
Senhor vem estar no meio de nós e, por mais que nos proponhamos de O servir e
amar, é sempre Ele que nos precede, servindo-nos e amando-nos imensamente mais
de quanto possamos imaginar e merecer. Dá-nos a sua própria vida; e convida-nos
a imitá-Lo, dizendo: Se alguém Me serve,
que Me siga” (Jo 12,26).
E seguir Jesus não é “servir apenas para ter uma recompensa”,
mas “para imitar Deus, que Se fez servo por nosso amor”. E não é servir de vez
em quando, mas “viver servindo”. Assim, “o serviço é um estilo de vida”, “resume
em si todo o estilo cristão de vida: servir a Deus na adoração e na oração;
estar abertos e disponíveis; amar concretamente o próximo; trabalhar com ardor
pelo bem comum”.
Depois, mencionando as tentações que afastam do estilo de
serviço e tornam a vida inútil, evidencia duas: deixar o coração entibiar-se; e
a excessiva atividade. O tíbio “fecha-se numa vida preguiçosa e sufoca o fogo
do amor”, vivendo para satisfazer as próprias comodidades, “que nunca bastam e,
por isso, nunca está contente”, sendo que “pouco a pouco acaba por se contentar
com uma vida medíocre”, reservando, a Deus e aos outros, apenas “uma
determinada percentagem do seu tempo e do seu coração”. Assim a sua vida é uma
sensaboria. Porém, o Pontífice crê que aquela comunidade, fixando o exemplo dos
que a precederam na fé, não deixará entibiar o coração; e a Igreja inteira, que
por ela nutre “simpatia especial, tem os olhos postos em vós e vos encoraja: sois um rebanho pequeno mas muito precioso
aos olhos de Deus”. Esta confirmação na fé e no serviço é bem-vinda a esta
comunidade pequena e como que entalada em tantas religiões e solicitações! Por
sua vez, a excessiva atividade configura “a tentação de pensar como donos,
trabalhar apenas para ganhar crédito e tornar-se alguém”. Aí, o serviço torna-se
meio para alcançar um fim – o prestígio, o poder, o desejo de ser grande. Ora,
Jesus quer que não seja assim e que, se alguém quiser fazer-se grande, seja
servo (cf Mt 20,26).
E, retomando a imagem do tapete, o Papa assegura a cada um
que é como “um esplêndido fio de seda” e que “os vários fios só criam uma
composição bonita se estiverem bem entrelaçados uns com os outros”. Por isso,
apela à união “vivendo humildemente em caridade e alegria”, pois o Senhor, se cria
a harmonia nas diferenças, os guardará. Para tanto, apresenta e invoca como
exemplos de fé e serviço na simplicidade a Virgem Imaculada e os Santos, especialmente
“Santa Teresa de Calcutá, cujos frutos de fé e serviço estão presentes no meio
de vós”.
***
Também, na manhã do dia 1 de outubro o Papa celebrou a
Missa no Estádio Meskhi em Tiblissi na Geórgia e, aproveitando o ensejo da
memória litúrgica de Santa Teresinha do Menino Jesus, enalteceu o grande valor
das mulheres que sobressaem “entre os numerosos tesouros deste país esplêndido”
e que “amam a Deus em número muito maior que os homens”. Com efeito, “na
Geórgia, há muitas avós e mães que continuam a guardar e transmitir a fé,
semeada nesta terra por Santa Nino, e levam a água fresca da consolação de Deus
a muitas situações de deserto e conflito” – refere o Pontífice. E, baseado na
profecia de Isaías, acentuou a dimensão maternal de Deus:
“Como uma mãe toma sobre si os pesos e
fadigas de seus filhos, assim Deus gosta de tomar conta dos nossos pecados e inquietações;
Ele, que nos conhece e ama infinitamente, é sensível à nossa oração e sabe
enxugar as nossas lágrimas. Vendo-nos, sempre Se comove e enternece com entranhado
amor, porque, para lá do mal que possamos fazer, sempre somos os seus filhos;
deseja pegar-nos no colo, proteger-nos, livrar-nos dos perigos e do mal.
Deixemos ressoar no nosso coração esta palavra que hoje nos dirige: ‘Como uma
mãe, Eu vos consolarei’ (Is 66,13).”.
A consolação que almejamos nos eventos tumultuosos da
vida é a presença de Deus no coração obtida pela fé confiante – presença em nós
que é a fonte da verdadeira consolação, perdurando, libertando do mal, trazendo
a paz e fazendo crescer a alegria. Ora, “para que o Senhor habite estavelmente
em nós, é preciso abrir-Lhe a porta e não O deixar fora”. E “há portas da
consolação que se devem manter sempre abertas” – por elas, o Senhor entra e dá
novo sabor às coisas – “porque Jesus gosta de entrar por elas”. E são: o
Evangelho lido cada dia e trazido sempre connosco, a oração silenciosa e de
adoração, a Confissão, a Eucaristia”. Se, porém, a porta do coração se fecha, “a
luz d’Ele não chega e fica-se às escuras” e caímos no pessimismo, no erro e no
fixismo da vida, fechados “na tristeza, nos subterrâneos da angústia, sozinhos
dentro de nós”. Ao invés, escancarando as portas à consolação, entra a luz do
Senhor.
Mas Deus não consola apenas no coração, mas em
Jerusalém, cidade de Deus, na comunidade. Na Igreja, que é a casa da consolação,
encontra-se consolação. Ora, quem está na Igreja deve ser portador da
consolação de Deus, saber acolher com simplicidade o outro como um hóspede e
consolar quem vemos cansado e dececionado. E, mesmo em aflições e isolamento, o
cristão é chamado, por imperativo e por contraste, “a infundir esperança em quem
se deu por vencido, reanimar quem está desanimado, levar a luz de Jesus, o
calor da sua presença, a renovação do seu perdão”. Por isso, Bergoglio adverte:
“Não é bom habituar-se a um ‘microclima’
eclesial fechado; bom é compartilhar horizontes de esperança amplos e abertos,
vivendo a coragem humilde de abrir as portas e sairmos de nós mesmos.”
***
Para receber esta consolação, exige-se-nos que nos
tornemos como crianças (cf Mt 18,3-4), como
crianças saciadas ao colo da mãe (cf Sl 131/130,2). Para acolher o amor divino, é necessária a pequenez
de coração, pois “só como pequenos é que podemos estar no colo da mãe”. E quem
se fizer pequeno como uma criança é o maior no Reino do Céu (cf Mt
18,4). De facto, não conhece a Deus através
dos “altos pensamentos e muito estudo” ou acumulando honras e prestígio ou
riquezas, mas “com a pequenez dum coração humilde e confiante” e esvaziando-se
de si mesmo.
As crianças “dizem-nos que Ele realiza grandes coisas
com quem não Lhe opõe resistência, com quem é simples e sincero, sem
duplicidade”, como nos mostra o Evangelho:
“Com poucos pães e dois peixes (cf Mt 14,15-20),
com um grão de mostarda (cf Mc 4,30-32), com o grão de trigo que morre na terra
(cf Jo 12,24), com um único copo de água que se dá (cf Mt 10,42), com duas
moedinhas duma viúva pobre (cf Lc 21,1-4), com a humildade de Maria, a serva do
Senhor (cf Lc 1,46-55).”.
A grandeza surpreendente de Deus, cheio de surpresas e
amigo das surpresas, faz lembrar “que somos, sempre e antes de tudo, seus
filhos, não donos da vida, mas filhos do Pai; não adultos autónomos e
autossuficientes, mas filhos sempre carecidos de ser pegados ao colo, a receber
amor e perdão”. Nesta simplicidade, Francisco lança muito oportunamente, as suas
bem-aventuranças eclesiais:
-Felizes as comunidades cristãs que vivem a genuína
simplicidade evangélica – pobres de meios e ricas de Deus.
- Felizes os “pastores” que não cavalgam a lógica do
sucesso mundano, mas seguem a lei do amor: o acolhimento, a escuta, o serviço.
- Feliz a Igreja que não se abandona aos critérios de
funcionalidade e eficiência organizativa ou do fazer boa figura, mas “pequeno e
amado rebanho” que se dedica tanto, na Geórgia à caridade e à formação, acolhe
o encorajamento do Bom Pastor, se entrega a Ele que a leva aos ombros e a consola.
Finalmente, resume os pensamentos da pequenez do homem
e da Igreja ante Deus com palavras de Santa Teresinha do Menino Jesus. Na
verdade, Ela indica-nos o seu “pequeno caminho” para Deus, o do “abandono da
criança pequena, que adormece sem temor nos braços de seu pai” todavia,
infelizmente, “Deus encontra “poucos corações que se abandonem a Ele sem
reservas, que compreendam toda a ternura do seu Amor infinito”. Mas a jovem
santa e doutora da Igreja, perita na “ciência do Amor”, ensina que a caridade
perfeita consiste em suportar os defeitos dos outros, sem ficar surpreendido
com os seus pontos fracos, em sentir-se edificado pelos mínimos atos de virtude
que lhes veja praticar e que “não pode ficar fechada no fundo do coração”.
Por isso, em Igreja, devemos pedir a graça de um
coração simples, que crê e vive na força suave do amor, a graça de “viver com
confiança serena e total na misericórdia de Deus”.
É a simplicidade da força da fé tornada serviço na
simplicidade e serviço a espelhar e induzir, na simplicidade, mais fé, capaz de
remover aveleiras ou mesmo montanhas – fé, serviço e simplicidade que Francisco
confirma nos irmãos enquanto Sucessor de Pedro.
2016.10.08 – Louro de Carvalho
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