É o
que está evidenciado no Evangelho do 14.º domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 10,1-12.17-20), que, apresentando o número simbólico “72”
dos discípulos enviados, nos quer dizer que a sua missão envolve todos os
escolhidos e se dirige a todos os seres humanos, a todos os povos. É de si
mobilizadora de todos os que são discípulos (pelo batismo e, nalguns casos, por vocação especial
confirmada pelo sacramento da Ordem) e um destino universal.
Com efeito,
aquele episódico envio em missão (exclusivo de Lucas), que tem de ser entendido em relação com Gn 10 (na versão grega do AT), onde o número se refere à
totalidade das nações que habitam a terra, é antecipação do mandato confiado
aos discípulos no fim do texto evangélico (cf Lc 24,47-48; Mc 16,15-18; Mt 28,1-20) e é lido à luz da Ressurreição e
dos dons messiânicos. Se na perícopa em referência o conteúdo fundamental da
pregação é “A paz esteja nesta casa… O Reino de Deus já está próximo de vós”, nos aludidos textos dos sinóticos, fala-se expressamente
em ir por todo o mundo, fazer discípulos de todas as nações, ser testemunhas em
toda a parte, pregar o arrependimento e o perdão dos pecados, provocar a
conversão aos valores do Reino…
Lucas,
assinalando que os discípulos foram enviados dois a dois, assegura que o
testemunho deles tem valor jurídico (cf Dt 17,6; 19,15) e que o anúncio do Evangelho é tarefa comunitária, não por
iniciativa pessoal e própria, mas por mandato de Jesus e em comunhão com os
irmãos. E, indicando que os discípulos são enviados às aldeias e localidades aonde
Jesus “devia de ir”, quer dizer que a tarefa dos discípulos não é pregar a sua
própria mensagem, mas preparar o caminho de Jesus e dar testemunho d’Ele.
Depois, o evangelista descreve o modo de concretização missão.
Primeiro, temos o aviso sobre a dificuldade: os discípulos são enviados “como cordeiros para o meio de lobos” (v.
3), com reporte à imagem que, no AT (Antigo Testamento), descreve a situação do justo, perdido no meio dos pagãos (cf Sir 13,17; nalgumas versões, a
imagem aparece em 13,21).
Aqui, é a situação do discípulo fiel ante a hostilidade do mundo. A seguir, vem
a exigência de pobreza e simplicidade: os discípulos não levam consigo bolsa,
alforge ou sandálias; não se detêm a saudar ninguém pelo caminho (v. 4); não saltaricam de casa em casa (v. 7). Estas indicações sugerem que a força do Evangelho
não reside nos meios materiais, mas na força libertadora da Palavra; indicam a
urgência da missão, que não permite aos discípulos deterem-se nas intermináveis
saudações peculiares da cortesia oriental, sob pena de o essencial – o anúncio
do Reino – ser adiado; e querem dizer que a preocupação fundamental dos
discípulos deve ser a dedicação total à missão e não o encontro duma
hospitalidade mais confortável.
Os discípulos devem começar por desejar “a paz” (vv 5-6), não só como saudação normal entre os judeus, mas
significando a paz messiânica que preside ao Reino e configurando o anúncio do
mundo novo da fraternidade, da harmonia com Deus, consigo próprio, com os
outros e com a criação, do bem-estar, da felicidade, enfim de tudo quanto significa
a palavra hebraica “shalom”. E esse anúncio tem de ser acompanhado por gestos
concretos de libertação, que mostrem a presença do Reino no meio dos homens (v. 9), tal como disse Jesus, segundo Marcos:
“Estes sinais
acompanharão aqueles que acreditarem: em meu nome expulsarão demónios, falarão
línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno
mortal, não sofrerão nenhum mal; hão de impor as mãos aos doentes e eles
ficarão curados. (…) Eles, partindo, foram pregar por toda a parte; o Senhor
cooperava com eles, confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam.”
(Mc 16, 17-18.20).
Em Lucas, o Senhor diz:
“E Eu vou mandar sobre
vós o que meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes
revestidos com a força do Alto.” (Lc 24,49).
E, em Mateus, garante:
“E sabei que
Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28,20).
A ameaça às cidades que recusem o acolhimento da mensagem (vv. 10-11), que não deve ser tomada à letra, é
uma forma de dizer que a rejeição do Reino trará consequências nefastas à vida
de quem escolhe continuar em caminhos de egoísmo, orgulho e autossuficiência.
E Lucas (vv. 17-20) refere
o resultado daquela ação missionária dos discípulos. As palavras com que Jesus
acolhe os discípulos evocam os sinais da presença do Reino enquanto realidade
libertadora. Assim, as serpentes e escorpiões, frequentemente tidos como
símbolos das forças do mal que escravizam o homem, mas aqui dominados, e a
“queda de Satanás” significam que o reino do mal começa a desfazer-se em
confronto com o Reino de Deus. Porém, não obstante o êxito da missão, Jesus
alerta os discípulos contra o orgulho pela obra feita: não devem ficar
contentes pelo poder que lhes foi confiado, mas porque os seus nomes estão
“inscritos no Céu”. Anote-se que a imagem dum livro onde estão inscritos os
nomes dos eleitos é frequente nesta época, particularmente na literatura
apocalíptica (cf Dn 12,1;
Ap 3,5; 13,8; 17,8; 20,12.15; 21,27).
Como se pode facilmente verificar, Lucas continua a
situar-nos no contexto da caminhada de Jesus para Jerusalém. É mais uma etapa
catequética, esta exclusiva do relato lucano, do “caminho espiritual”, em que Jesus
vai oferecendo aos discípulos a revelação do Pai e os prepara para continuarem,
após a sua partida, a missão de levar o Evangelho a todos os homens.
Nesta catequese, Lucas ensina que o cristão tem de continuar
no mundo a missão de Jesus, tornando-se testemunha, para todos os homens, da
proposta de salvação que Ele veio trazer.
***
A
perícopa tomada para 1.ª leitura (Is 66,10-14c) insere-se no quadro desenhado pelos capítulos 56-66 do Livro de Isaías (designados como “Tritoisaías”), atribuídos pela maior parte dos
estudiosos a diversos autores, vinculados espiritualmente ao Deuteroisaías (o autor dos capítulos 40-55) e que apresentaram a sua mensagem
nos últimos anos do século VI e primeiros do século V a.C. Em Jerusalém, vários
anos após o regresso do Exílio da Babilónia, a reconstrução é muito lenta e
penosa; a maioria da população mergulha na miséria; os inimigos, atacando
continuamente, põem em causa o esforço da reconstrução; e a esperança definha,
com o Povo a perguntar “quando é que Deus vai realizar as promessas que fez,
ainda na Babilónia”. Por isso, os profetas apresentam uma mensagem de salvação
e alimentam a esperança para que o Povo recobre forças e confie em Deus. É
neste contexto que se situa o hino que a perícopa em referência contém: o
profeta apresenta um quadro de restauração (cf Is 66,7-14) e convoca os seus habitantes para a alegria. Neste quadro, o objetivo
fundamental do profeta é “consolar” o Povo sofrido, que não vê perspetivas de
futuro. Todo o quadro gravita em torno de Jerusalém como mãe. Depois de dar à
luz o filho (o povo), sem esforço e antes do tempo (cf Is 66,7), Jerusalém alimenta-o com o leite
abundante e reconfortante (cf Is 66,11). A
referência à sucção do leite “até à saciedade”, ao “seio glorioso” evoca a
imagem da fecundidade e da vida em abundância. No entanto, o profeta está
consciente de que é Deus quem está por detrás desta corrente de vida e de
fecundidade que a mãe-cidade dispensa ao filho-povo. Por isso, põe Deus a fazer
chegar à cidade/mãe a paz e a riqueza das nações, para que ela as distribua
pelo filho/povo. A paz (“shalom”) inclui aqui a saúde, fecundidade,
prosperidade, amizade com Deus e com os outros – enfim, a felicidade total, que
Deus Se propõe oferecer em abundância ao Povo. E é sugestiva a forma como se
fala de Deus. É o pai que dá ao filho-povo a vida plena, o acaricia e consola
como faz a mãe. O profeta apresenta a este Povo um Deus que ama e que, em cada
dia, vem ao encontro dos homens para lhes trazer a salvação. Daí o insistente
convite à alegria.
Assim,
Deus é a esperança, a alegria, a consolação e a paz.
O convite de
Isaías à alegria, à exultação e ao júbilo, depois de termos participado no
pranto de Jerusalém, resulta da capacidade e vontade consoladoras e
esperançosas de Deus. Na palavra do profeta, Deus mostra consolar o Seu Povo a
partir de imagens tiradas da vida familiar, sobretudo da relação mãe-filho.
Compara-nos à criança que chora faminta e desconsolada e a quem a mãe se
esforça por consolar. E, nesta visão profética, o Senhor promete bens que
contrastam com a situação atual do Povo. O clima humano em que vive contrasta
com o ambiente inseguro e triste em que se encontrava nos tempos do cativeiro
de Babilónia. Veja-se como era dantes:
“Nas
margens dos rios da babilónia sentamo-nos a chorar, lembrando-nos de Sião. /
Nos salgueiros daquela terra, pendurávamos as nossas harpas, / porque os que
nos tinham deportado pediam-nos um cântico. / Os nossos opressores exigiam de
nós um hino de alegria: Cantai-nos um dos cânticos de Sião. / Como poderíamos
nós cantar um cântico do Senhor em terra estranha? / Se eu me esquecer de ti, ó
Jerusalém, que minha mão direita se paralise! /Que minha língua se me apegue ao
paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as
minhas alegrias.” (Sl 137,1-7).
Ora, importa que
aceitemos os dons que o Senhor nos oferece na Sua Igreja. Se teimássemos em
procurar teimosamente o prazer dos sentidos, estaríamos na situação de quem
procura matar a sede com água salgada. Com efeito, para termos verdadeira
alegria, precisamos de mudar de mentalidade, convertermo-nos às promessas de
Deus. Ele será a nossa alegria e conforto.
“Porque assim fala o Senhor: ‘Farei correr
para Jerusalém a paz como um rio e a riqueza das nações como torrente
transbordante’.”. Ora, a verdadeira paz é tranquilidade na ordem. Com
efeito, há tranquilidade na desordem quando ela é fruto do medo, da prepotência
de alguns que nos mantêm imobilizados. Mas é mais que tranquilidade na ordem: é
a força anímica de crescer harmonicamente, conviver de forma saudável e
partilhar; é servir e aceitar o serviço dos outros; é o exercício em concreto
da fraternidade. Assim, a paz é um dom de Deus e nasce de uma consciência que, secundando
o dom, procura conhecer e seguir a Sua vontade.
É curioso
notar que, no mundo político – quando todos deveríamos estar à procura de uma
melhoria de vida para todos, cada grupo reivindica o próprio interesse, mesmo
que não seja justo. Ora, ao invés, é necessário reconhecer que pertencemos
todos à mesma família dos filhos de Deus na terra, que somos irmãos uns dos
outros e vamos todos a caminho do Céu. Se não alcançássemos esta meta, seríamos
as mais desgraçadas de todas as pessoas, participando para sempre no ódio e
tristeza de Satanás. Por isso, é tempo de parar com os gritos, os amuos, as
formas de agressividade ou os entretenimentos egoístas, e fazer a aposta no
sorriso e interajuda.
A falta de
paz vem da falta de segurança interior em que muitas pessoas vivem porque, no
fundo, sabem que estão enganadas e querem sufocar a voz da consciência para não
ouvirem os seus gritos a pedir mudança radical de vida. Ora, Deus será a
nossa paz, se O deixarmos entrar no nosso coração, para aí a derramar como
um bálsamo confortante. É preciso lutar contra a desordem, os falsos deuses que
entronizámos na nossa vida, para que a paz possa reinar.
“Como a mãe que anima o filho, também Eu vos
confortarei: em Jerusalém sereis consolados”.
Constitui uma verdade axial da nossa fé a filiação divina.
Deus ama-nos tanto que nos torna Seus filhos pela morte e ressurreição de
Cristo, em quem nos incorporamos pelo Batismo. Não somos filhos segundo a
natureza, porque não somos deuses, mas não podemos reduzir a nossa filiação
divina à simples filiação adotiva, que é uma ficção jurídica: a pessoa
arvora-se em pai ou em mãe, mas não há uma verdadeira comunicação da riqueza
contida em cada natureza. Os pais adotivos não podem fazer correr o seu próprio
sangue nas veias do filho adotado. Na filiação divina é diferente. Pedro
afirma, na sua primeira carta, que nós somos “participantes da natureza
divina”. E Isaías, ao transmitir-nos a mensagem do Senhor, recorre a imagens da
vida familiar: a criança que chora com desconforto – como os regressados do
cativeiro de Babilónia – e a mãe que faz apelos ao seu carinho para a
confortar. É a segurança dos braços da mãe e o calor do seu afeto que dá à
criança a alegria de que precisa. Assim procede Deus para connosco. Deus faz-nos
seus verdadeiros filhos e é por isso que o Ressuscitado trata aos
discípulos por irmãos. E, na Carta aos Gálatas (é a única), o termo “irmãos” aparece na saudação final: é grito de
angústia e de confiança, apelo à comunhão, expressão da esperança na
fraternidade total.
E isto traz
consequências. Não podemos viver uma vida esquizofrénica, acreditando, dentro
do templo, na filiação divina, para logo a seguir, nos deixarmos mergulhar num
pessimismo sem horizontes. A única coisa que o Senhor recusa fazer (porque é o melhor dos pais) é satisfazer-nos todos os
caprichos, porque muitas vezes são maus e não nos resolvem os problemas.
Por outro
lado, uma das consequências da nossa filiação divina é testemunhar e irradiar
fraternidade. Deus quer agir no mundo para resolver os problemas que nos afligem,
mas precisa da nossa cooperação. Sem esse pequeno nada que podemos fazer, Deus
não agirá.
“Designou o Senhor 72 discípulos e enviou-os
dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir”.
Jesus enviou, pois, à Sua frente os discípulos, para uma missão bem definida:
preparar o acolhimento a Jesus Cristo. Todo o apostolado que fazemos se
concretiza não na afirmação pessoal ou num projeto individual, mas na
preparação do acolhimento a Jesus Cristo pela conversão pessoal. Quando somos
enviados aos outros, não há uma separação física entre nós e Jesus, mas
levamo-Lo presente. O Espírito Santo faz que Ele fale pela nossa boca. Não é a
nossa eloquência que faz mudar as pessoas, mas a ação misteriosa e eficaz da
Terceira Pessoa da Santíssima Trindade presente em cada pessoa. É uma grande
honra e um grande dever dar visibilidade a Jesus Cristo no mundo, restituir-Lhe
o lugar a que Ele tem direito, na família, no trabalho, nos divertimentos e nas
leis. Para isso precisamos de apostar na identificação com a vontade de Deus e na
coerência de vida.
Identificação com a vontade de Deus. É preciso purificar a nossa mente e
desprendê-la de interesses pessoais; e querer o que Deus quer, sem forçar a
verdade teológica e moral para os nossos gostos e interesses. Mas, para
querermos o que Deus quer, temos de saber o que Ele quer, ou seja, requer-se
formação doutrinal e pedagógica. Aliás, podemos dar conselhos que, em vez de
ajudar as pessoas, as afastam de Jesus Cristo e as levam a não O acolher.
Coerência. Deus não pede que nos tornemos
santos antes de começarmos a fazer apostolado, mas que estejamos sinceramente
dispostos a cumprir o que aconselhamos aos outros.
***
Enfim, somos
enviados a testemunhar o Reino de Deus, a sua força e dinamismo. E o Reino
merece tudo: empenhamento total, atenção aos seus sinais no mundo, seguimento
das pegadas do Mestre, docilidade ao Espírito Santo, doação à comunidade e
serviço aos que mais precisam – dando o rosto sempre que necessário, sabendo
optar pela discrição quando ela convir ao desenvolvimento do Reino e sempre
cantando “A terra inteira aclame o Senhor”.
2019.07.07 – Louro de Carvalho
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