segunda-feira, 8 de julho de 2019

Deus envia-nos a testemunhar o seu Reino


É o que está evidenciado no Evangelho do 14.º domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 10,1-12.17-20), que, apresentando o número simbólico “72” dos discípulos enviados, nos quer dizer que a sua missão envolve todos os escolhidos e se dirige a todos os seres humanos, a todos os povos. É de si mobilizadora de todos os que são discípulos (pelo batismo e, nalguns casos, por vocação especial confirmada pelo sacramento da Ordem) e um destino universal.
Com efeito, aquele episódico envio em missão (exclusivo de Lucas), que tem de ser entendido em relação com Gn 10 (na versão grega do AT), onde o número se refere à totalidade das nações que habitam a terra, é antecipação do mandato confiado aos discípulos no fim do texto evangélico (cf Lc 24,47-48; Mc 16,15-18; Mt 28,1-20) e é lido à luz da Ressurreição e dos dons messiânicos. Se na perícopa em referência o conteúdo fundamental da pregação é “A paz esteja nesta casa… O Reino de Deus já está próximo de vós”, nos aludidos textos dos sinóticos, fala-se expressamente em ir por todo o mundo, fazer discípulos de todas as nações, ser testemunhas em toda a parte, pregar o arrependimento e o perdão dos pecados, provocar a conversão aos valores do Reino…  
Lucas, assinalando que os discípulos foram enviados dois a dois, assegura que o testemunho deles tem valor jurídico (cf Dt 17,6; 19,15) e que o anúncio do Evangelho é tarefa comunitária, não por iniciativa pessoal e própria, mas por mandato de Jesus e em comunhão com os irmãos. E, indicando que os discípulos são enviados às aldeias e localidades aonde Jesus “devia de ir”, quer dizer que a tarefa dos discípulos não é pregar a sua própria mensagem, mas preparar o caminho de Jesus e dar testemunho d’Ele.
Depois, o evangelista descreve o modo de concretização missão. Primeiro, temos o aviso sobre a dificuldade: os discípulos são enviados “como cordeiros para o meio de lobos” (v. 3), com reporte à imagem que, no AT (Antigo Testamento), descreve a situação do justo, perdido no meio dos pagãos (cf Sir 13,17; nalgumas versões, a imagem aparece em 13,21). Aqui, é a situação do discípulo fiel ante a hostilidade do mundo. A seguir, vem a exigência de pobreza e simplicidade: os discípulos não levam consigo bolsa, alforge ou sandálias; não se detêm a saudar ninguém pelo caminho (v. 4); não saltaricam de casa em casa (v. 7). Estas indicações sugerem que a força do Evangelho não reside nos meios materiais, mas na força libertadora da Palavra; indicam a urgência da missão, que não permite aos discípulos deterem-se nas intermináveis saudações peculiares da cortesia oriental, sob pena de o essencial – o anúncio do Reino – ser adiado; e querem dizer que a preocupação fundamental dos discípulos deve ser a dedicação total à missão e não o encontro duma hospitalidade mais confortável.
Os discípulos devem começar por desejar “a paz” (vv 5-6), não só como saudação normal entre os judeus, mas significando a paz messiânica que preside ao Reino e configurando o anúncio do mundo novo da fraternidade, da harmonia com Deus, consigo próprio, com os outros e com a criação, do bem-estar, da felicidade, enfim de tudo quanto significa a palavra hebraica “shalom”. E esse anúncio tem de ser acompanhado por gestos concretos de libertação, que mostrem a presença do Reino no meio dos homens (v. 9), tal como disse Jesus, segundo Marcos:
Estes sinais acompanharão aqueles que acreditarem: em meu nome expulsarão demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno mortal, não sofrerão nenhum mal; hão de impor as mãos aos doentes e eles ficarão curados. (…) Eles, partindo, foram pregar por toda a parte; o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam.” (Mc 16, 17-18.20).
Em Lucas, o Senhor diz:
E Eu vou mandar sobre vós o que meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força do Alto.” (Lc 24,49).
E, em Mateus, garante:
E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28,20).
A ameaça às cidades que recusem o acolhimento da mensagem (vv. 10-11), que não deve ser tomada à letra, é uma forma de dizer que a rejeição do Reino trará consequências nefastas à vida de quem escolhe continuar em caminhos de egoísmo, orgulho e autossuficiência.
E Lucas (vv. 17-20) refere o resultado daquela ação missionária dos discípulos. As palavras com que Jesus acolhe os discípulos evocam os sinais da presença do Reino enquanto realidade libertadora. Assim, as serpentes e escorpiões, frequentemente tidos como símbolos das forças do mal que escravizam o homem, mas aqui dominados, e a “queda de Satanás” significam que o reino do mal começa a desfazer-se em confronto com o Reino de Deus. Porém, não obstante o êxito da missão, Jesus alerta os discípulos contra o orgulho pela obra feita: não devem ficar contentes pelo poder que lhes foi confiado, mas porque os seus nomes estão “inscritos no Céu”. Anote-se que a imagem dum livro onde estão inscritos os nomes dos eleitos é frequente nesta época, particularmente na literatura apocalíptica (cf Dn 12,1; Ap 3,5; 13,8; 17,8; 20,12.15; 21,27).
Como se pode facilmente verificar, Lucas continua a situar-nos no contexto da caminhada de Jesus para Jerusalém. É mais uma etapa catequética, esta exclusiva do relato lucano, do “caminho espiritual”, em que Jesus vai oferecendo aos discípulos a revelação do Pai e os prepara para continuarem, após a sua partida, a missão de levar o Evangelho a todos os homens.
Nesta catequese, Lucas ensina que o cristão tem de continuar no mundo a missão de Jesus, tornando-se testemunha, para todos os homens, da proposta de salvação que Ele veio trazer.
***
A perícopa tomada para 1.ª leitura (Is 66,10-14c) insere-se no quadro desenhado pelos capítulos 56-66 do Livro de Isaías (designados como “Tritoisaías”), atribuídos pela maior parte dos estudiosos a diversos autores, vinculados espiritualmente ao Deuteroisaías (o autor dos capítulos 40-55) e que apresentaram a sua mensagem nos últimos anos do século VI e primeiros do século V a.C. Em Jerusalém, vários anos após o regresso do Exílio da Babilónia, a reconstrução é muito lenta e penosa; a maioria da população mergulha na miséria; os inimigos, atacando continuamente, põem em causa o esforço da reconstrução; e a esperança definha, com o Povo a perguntar “quando é que Deus vai realizar as promessas que fez, ainda na Babilónia”. Por isso, os profetas apresentam uma mensagem de salvação e alimentam a esperança para que o Povo recobre forças e confie em Deus. É neste contexto que se situa o hino que a perícopa em referência contém: o profeta apresenta um quadro de restauração (cf Is 66,7-14) e convoca os seus habitantes para a alegria. Neste quadro, o objetivo fundamental do profeta é “consolar” o Povo sofrido, que não vê perspetivas de futuro. Todo o quadro gravita em torno de Jerusalém como mãe. Depois de dar à luz o filho (o povo), sem esforço e antes do tempo (cf Is 66,7), Jerusalém alimenta-o com o leite abundante e reconfortante (cf Is 66,11). A referência à sucção do leite “até à saciedade”, ao “seio glorioso” evoca a imagem da fecundidade e da vida em abundância. No entanto, o profeta está consciente de que é Deus quem está por detrás desta corrente de vida e de fecundidade que a mãe-cidade dispensa ao filho-povo. Por isso, põe Deus a fazer chegar à cidade/mãe a paz e a riqueza das nações, para que ela as distribua pelo filho/povo. A paz (“shalom”) inclui aqui a saúde, fecundidade, prosperidade, amizade com Deus e com os outros – enfim, a felicidade total, que Deus Se propõe oferecer em abundância ao Povo. E é sugestiva a forma como se fala de Deus. É o pai que dá ao filho-povo a vida plena, o acaricia e consola como faz a mãe. O profeta apresenta a este Povo um Deus que ama e que, em cada dia, vem ao encontro dos homens para lhes trazer a salvação. Daí o insistente convite à alegria.
Assim, Deus é a esperança, a alegria, a consolação e a paz.
O convite de Isaías à alegria, à exultação e ao júbilo, depois de termos participado no pranto de Jerusalém, resulta da capacidade e vontade consoladoras e esperançosas de Deus. Na palavra do profeta, Deus mostra consolar o Seu Povo a partir de imagens tiradas da vida familiar, sobretudo da relação mãe-filho. Compara-nos à criança que chora faminta e desconsolada e a quem a mãe se esforça por consolar. E, nesta visão profética, o Senhor promete bens que contrastam com a situação atual do Povo. O clima humano em que vive contrasta com o ambiente inseguro e triste em que se encontrava nos tempos do cativeiro de Babilónia. Veja-se como era dantes:
Nas margens dos rios da babilónia sentamo-nos a chorar, lembrando-nos de Sião. / Nos salgueiros daquela terra, pendurávamos as nossas harpas, / porque os que nos tinham deportado pediam-nos um cântico. / Os nossos opressores exigiam de nós um hino de alegria: Cantai-nos um dos cânticos de Sião. / Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor em terra estranha? / Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita se paralise! /Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias.” (Sl 137,1-7).
Ora, importa que aceitemos os dons que o Senhor nos oferece na Sua Igreja. Se teimássemos em procurar teimosamente o prazer dos sentidos, estaríamos na situação de quem procura matar a sede com água salgada. Com efeito, para termos verdadeira alegria, precisamos de mudar de mentalidade, convertermo-nos às promessas de Deus. Ele será a nossa alegria e conforto.
Porque assim fala o Senhor: ‘Farei correr para Jerusalém a paz como um rio e a riqueza das nações como torrente transbordante’.”. Ora, a verdadeira paz é tranquilidade na ordem. Com efeito, há tranquilidade na desordem quando ela é fruto do medo, da prepotência de alguns que nos mantêm imobilizados. Mas é mais que tranquilidade na ordem: é a força anímica de crescer harmonicamente, conviver de forma saudável e partilhar; é servir e aceitar o serviço dos outros; é o exercício em concreto da fraternidade. Assim, a paz é um dom de Deus e nasce de uma consciência que, secundando o dom, procura conhecer e seguir a Sua vontade.
É curioso notar que, no mundo político – quando todos deveríamos estar à procura de uma melhoria de vida para todos, cada grupo reivindica o próprio interesse, mesmo que não seja justo. Ora, ao invés, é necessário reconhecer que pertencemos todos à mesma família dos filhos de Deus na terra, que somos irmãos uns dos outros e vamos todos a caminho do Céu. Se não alcançássemos esta meta, seríamos as mais desgraçadas de todas as pessoas, participando para sempre no ódio e tristeza de Satanás. Por isso, é tempo de parar com os gritos, os amuos, as formas de agressividade ou os entretenimentos egoístas, e fazer a aposta no sorriso e interajuda.
A falta de paz vem da falta de segurança interior em que muitas pessoas vivem porque, no fundo, sabem que estão enganadas e querem sufocar a voz da consciência para não ouvirem os seus gritos a pedir mudança radical de vida. Ora, Deus será a nossa paz, se O deixarmos entrar no nosso coração, para aí a derramar como um bálsamo confortante. É preciso lutar contra a desordem, os falsos deuses que entronizámos na nossa vida, para que a paz possa reinar.
Como a mãe que anima o filho, também Eu vos confortarei: em Jerusalém sereis consolados”.
Constitui uma verdade axial da nossa fé a filiação divina. Deus ama-nos tanto que nos torna Seus filhos pela morte e ressurreição de Cristo, em quem nos incorporamos pelo Batismo. Não somos filhos segundo a natureza, porque não somos deuses, mas não podemos reduzir a nossa filiação divina à simples filiação adotiva, que é uma ficção jurídica: a pessoa arvora-se em pai ou em mãe, mas não há uma verdadeira comunicação da riqueza contida em cada natureza. Os pais adotivos não podem fazer correr o seu próprio sangue nas veias do filho adotado. Na filiação divina é diferente. Pedro afirma, na sua primeira carta, que nós somos “participantes da natureza divina”. E Isaías, ao transmitir-nos a mensagem do Senhor, recorre a imagens da vida familiar: a criança que chora com desconforto – como os regressados do cativeiro de Babilónia – e a mãe que faz apelos ao seu carinho para a confortar. É a segurança dos braços da mãe e o calor do seu afeto que dá à criança a alegria de que precisa. Assim procede Deus para connosco. Deus faz-nos seus verdadeiros filhos e é por isso que o Ressuscitado trata aos discípulos por irmãos. E, na Carta aos Gálatas (é a única), o termo “irmãos” aparece na saudação final: é grito de angústia e de confiança, apelo à comunhão, expressão da esperança na fraternidade total.
E isto traz consequências. Não podemos viver uma vida esquizofrénica, acreditando, dentro do templo, na filiação divina, para logo a seguir, nos deixarmos mergulhar num pessimismo sem horizontes. A única coisa que o Senhor recusa fazer (porque é o melhor dos pais) é satisfazer-nos todos os caprichos, porque muitas vezes são maus e não nos resolvem os problemas.
Por outro lado, uma das consequências da nossa filiação divina é testemunhar e irradiar fraternidade. Deus quer agir no mundo para resolver os problemas que nos afligem, mas precisa da nossa cooperação. Sem esse pequeno nada que podemos fazer, Deus não agirá.
Designou o Senhor 72 discípulos e enviou-os dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir”. Jesus enviou, pois, à Sua frente os discípulos, para uma missão bem definida: preparar o acolhimento a Jesus Cristo. Todo o apostolado que fazemos se concretiza não na afirmação pessoal ou num projeto individual, mas na preparação do acolhimento a Jesus Cristo pela conversão pessoal. Quando somos enviados aos outros, não há uma separação física entre nós e Jesus, mas levamo-Lo presente. O Espírito Santo faz que Ele fale pela nossa boca. Não é a nossa eloquência que faz mudar as pessoas, mas a ação misteriosa e eficaz da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade presente em cada pessoa. É uma grande honra e um grande dever dar visibilidade a Jesus Cristo no mundo, restituir-Lhe o lugar a que Ele tem direito, na família, no trabalho, nos divertimentos e nas leis. Para isso precisamos de apostar na identificação com a vontade de Deus e na coerência de vida.
Identificação com a vontade de Deus. É preciso purificar a nossa mente e desprendê-la de interesses pessoais; e querer o que Deus quer, sem forçar a verdade teológica e moral para os nossos gostos e interesses. Mas, para querermos o que Deus quer, temos de saber o que Ele quer, ou seja, requer-se formação doutrinal e pedagógica. Aliás, podemos dar conselhos que, em vez de ajudar as pessoas, as afastam de Jesus Cristo e as levam a não O acolher.
Coerência. Deus não pede que nos tornemos santos antes de começarmos a fazer apostolado, mas que estejamos sinceramente dispostos a cumprir o que aconselhamos aos outros.
***
Enfim, somos enviados a testemunhar o Reino de Deus, a sua força e dinamismo. E o Reino merece tudo: empenhamento total, atenção aos seus sinais no mundo, seguimento das pegadas do Mestre, docilidade ao Espírito Santo, doação à comunidade e serviço aos que mais precisam – dando o rosto sempre que necessário, sabendo optar pela discrição quando ela convir ao desenvolvimento do Reino e sempre cantando “A terra inteira aclame o Senhor”.
2019.07.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário