Alunos que se submeteram a
exame na 2.ª fase confessaram-se surpreendidos por estâncias do poema épico de
Camões que nunca viram e questão de Matemática “sem resposta”.
Trata-se, num caso, da prova
de exame de Português do
12.º ano, código 639, na 2.ª fase em que foram surpreendidos por um excerto de canto
dos Lusíadas que não tinha sido lecionado e, no outro caso, da prova de MACS (Matemática Aplicada às Ciências Sociais), código 835, que tinha uma questão que supostamente não
tinha resposta.
Foi alegadamente, pela primeira vez, pedido aos alunos, num exame nacional
de Português do 12.º ano, que interpretassem um excerto da obra Os
Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, que não tinha sido lecionado durante as
aulas. O Público noticiou
que foi uma professora que alertou o IAVE, IP (Instituto de Avaliação
Educativa, Instituto Público), que justificou essa decisão com a necessidade de avaliar a capacidade
dos alunos de demonstração de capacidades de interpretação em vez da mera
reprodução de conhecimentos. O que não fica explicado é o facto de só neste
exame, de 2.ª fase, é que se tomou essa decisão, já que nos anos anteriores e,
também, no exame da 1.ª fase os alunos foram desafiados com a análise de
estâncias d’Os Lusíadas que tinham
sido analisadas em aula. Ora, esta última parte da informação não está correta,
pois na 1.ª fase, em 2019, o enunciado não contém nem manda fazer qualquer
abordagem a esta epopeia.
Além do caso de Português, o Público
acrescenta que há, também, um problema com o exame MACS, disciplina curricular
de alunos de Línguas e Humanidades. Com efeito, uma das questões continha um
“erro grave”, segundo um professor que detetou o caso e garante que a questão,
na forma como foi formulada, “não tem resposta”.
Na verdade, o presidente da SPM (Sociedade Portuguesa
de Matemática), Filipe Oliveira, alertou o IAVE para um “problema” nesta pergunta. E a
dirigente da APM (Associação de Professores de Matemática), Teresa Moreira, considera que “existe
uma imprecisão na formulação da questão referida, que pode gerar respostas
diferentes e que devem ser consideradas
corretas”.
No caso de MACS, o IAVE, depois de garantir ao professor que a tal pergunta
tinha sido “caucionada por peritos”, respondeu ao Público que existe uma “fragilidade” na formulação da pergunta, mas
garantiu que esta não terá, “previsivelmente, qualquer impacto na resolução nem
terá na sua classificação”.
No caso do exame do Português, em que os alunos ficaram surpreendidos com
as estâncias 26 a 29 do Canto VI d’Os
Lusíadas, a professora que detetou a situação, também é classificadora de
exames, manifestou “perplexidade e indignação” por, em sua opinião, ser “absolutamente inacreditável que os alunos
tenham de ler e compreender quatro estâncias de Os Lusíadas que não
correspondem a nenhuma das indicadas nos programas de Português”, mesmo
tendo sido sempre dito que as provas podem “incluir
suportes textuais diferentes dos indicados”.
A professora defende que “as
estâncias analisadas em aula já são suficientemente difíceis” e considera
que “não era preciso aumentar o grau de
dificuldade”, sobretudo tendo em conta que “esta obra é particularmente complexa e que os alunos têm grande
dificuldade” no seu estudo.
***
Não
me pronuncio sobre o caso de MACS, a não ser no sentido de uns falarem em erro
e outros falarem em formulação ambígua com possibilidade de várias respostas
que devem ser consideradas corretas. Há uma diferença significativa entre uma
denúncia e outra. Se se verifica a primeira, a questão deve ser anulada e as
cotações no grupo devem ser redistribuídas; a verificar-se a segunda, é só
afinar os critérios e os corretores validarem as respostas que forem certas. Vir
o IAVE, sem o explicar, que esta não terá, “previsivelmente, qualquer impacto na resolução nem
terá na sua classificação” é muito pouco.
Quanto ao exame de Português, há que desmentir que a 1.ª fase tenha
qualquer texto d’Os Lusíadas ou
qualquer tarefa sobre a mesma obra, quer sobre textos dados em aula quer sobre
outros, porquanto o Grupo I
suscita a leitura, na Parte A, de um
texto poético de Pessoa ortónimo, do programa, mas que muito bem pode não ter
sido dado em aula (os programas mandam escolher poemas do
ortónimo, obviamente não todos) e a resposta a 3 perguntas sobre o mesmo; na Parte B, leitura de um excerto do Sermão de Santo António, do Padre
António Vieira, e a resposta a 3 questões sobre o mesmo; e, na Parte C, a escrita de uma breve exposição orientada sobre o diálogo de
José Saramago com o ‘passado’, de que “emerge, em romances como Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, uma
visão crítica sobre o tempo histórico representado e sobre a sociedade desse
tempo”. No Grupo II consta um texto de Alberto Manguel, Uma História da Curiosidade, em que se
solicita a resposta a 5 questões de resposta fechada de escolha múltipla e duas
de resposta direta e curta. E o Grupo
III concita a realização de um texto de opinião que defenda uma
perspetiva pessoal sobre o seguinte tema:
“Se algumas pessoas consideram que o acesso
rápido e livre à informação é uma mais-valia na sociedade atual, outras
defendem que esta facilidade pode ter um impacto negativo, tanto em termos
pessoais como sociais”.
A
informação do IAVE, atempadamente distribuída pelas escolas, no âmbito do objeto
de avaliação, referia que “a prova tem por referência o Programa e
Metas Curriculares de Português do Ensino Secundário, privilegiando-se, em
todos os domínios, os conteúdos comuns ao Programa supracitado e aos Programas
de Português de 10.º, 11.º e 12.º anos de escolaridade, homologados em 2001 e
2002, independentemente do ano de lecionação desses conteúdos em cada um dos
referidos referenciais”. Por outro lado, “a prova permite avaliar a
aprendizagem passível de avaliação numa prova escrita de duração limitada,
incidindo sobre os domínios da Leitura, da Escrita, da Educação Literária e da
Gramática”.
Repare-se
que, no domínio da leitura, o
programa de Português do 10.º ano contém referência ao relato de viagem, que também pode ser abordado através do texto
literário, como é o caso das estâncias d’Os
Lusíadas nas estâncias do Canto VI em causa.
No
que diz respeito ao domínio da Educação
Literária – refere a predita informação do IAVE –“sempre que, no Programa,
se apresenta uma lista de autores ou de textos em alternativa, a prova pode
incluir suportes textuais diferentes dos indicados (outros
textos do mesmo autor, outros excertos da mesma obra ou textos de outros
autores, mas pertencentes ao mesmo género textual), privilegiando-se, nestes casos, a interpretação
do texto apresentado na prova.
Ora, não
percebo como se alega que o referido Canto VI não foi dado em aula por supostamente
não ser do programa e se esquece que o texto de Manuel Alegre, “A grande subversão”, in O Homem do País Azul (6.ª ed.,
Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2008, pp. 51-53) também não o é. Manuel
Alegre consta no Programa do 12.º ano no quadro dos “poetas do século XX” (escolher de 3 autores 4 poemas). O texto que integra a Parte A do Grupo I da prova é o 3.º conto de um conjunto de 10 sob o
título O Homem do País Azul. No mesmo
ano, no âmbito dos contos, devia escolher-se 2 ou de Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia” ou de Maria
Judite de Carvalho, “George” ou de
Mário de Carvalho, “Famílias desavindas”.
Mas Camões não está cá para reivindicar os seus direitos! Mas, pensando melhor,
vejo que Manuel da Fonseca e Maria Judite de Carvalho também não estão por cá!
Que se passa, professora de Português?
Não
me digam que, através das estâncias referenciadas do Canto VI, não se consegue
avaliar se o aluno conhece a índole e a força do texto argumentativo que faz
parte do programa do 12.º ano, nos domínios da compreensão do oral e da expressão
oral. Veja-se o teor da primeira questão formulada sobre o texto:
“Explicite as estratégias argumentativas
utilizadas por Baco (estâncias 27 e 28) para convencer Neptuno, Oceano e os
outros deuses marinhos a serem seus aliados”.
Por
outro lado, as preditas estâncias respondem bem a tópicos de conteúdos conexos
com Os Lusíadas e as estâncias
expressamente mencionadas no programa do 10.º ano:
Imaginário épico: matéria épica; feitos
históricos e viagem; sublimidade do canto; mitificação do herói. Reflexões do poeta; Linguagem, estilo e estrutura. A
epopeia: natureza e estrutura da obra; o conteúdo de cada canto. Os quatro planos: viagem, mitologia,
História de Portugal e reflexões do poeta. Sua
interdependência. Estrofe e métrica.
Recursos expressivos: a anáfora, a
anástrofe, a apóstrofe, a comparação, a enumeração, a hipérbole, a interrogação
retórica, a metáfora, a metonímia e a personificação.
Atente-se
na segunda questão formulada sobre o texto, para o caso da mitificação do
herói:
“Apresente dois aspetos distintos que, na
estância 29, evidenciem a mitificação do herói, fundamentando cada um deles com
uma transcrição pertinente”.
E
veja-se se na terceira questão não se tem em conta o quadro dos recursos
estilísticos:
“Complete as afirmações abaixo apresentadas, selecionando da tabela a
opção adequada a cada espaço. Na folha de respostas, registe apenas as letras e
o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos. Nestas
estâncias, são utilizados alguns recursos expressivos frequentes em Os
Lusíadas. Na expressão “peito oculto” (v. 3), está presente uma ______a)____; a
apóstrofe ocorre, por exemplo, em ______b)____.
a)
1. personificação, 2. anástrofe, 3. metáfora, 4. comparação; b) 1. ‘o mar
irado’ (v. 10), 2. ‘padre Oceano’ (v. 13), 3. ‘fracos e atrevidos’ (v. 24), 4.
‘humanos’ (v. 32).”.
A este
respeito, não me inibo de continuar a citar a informação sobre o exame de Português
divulgada pelo IAVE:
“A organização diacrónica dos conteúdos da Educação Literária pressupõe
a leitura dos textos em contexto, indissociável da reflexão sincrónica, e não
deverá traduzir-se em leituras meramente reprodutivas ou destituídas de sentido
crítico, já que, parafraseando Aguiar e Silva (2010, 239), contexto algum
obriga a dizer, muito menos de modo único. Mais do que insistir no uso de
vocabulário técnico específico dos estudos literários, o Programa privilegia o
contacto direto com os textos e a construção de leituras fundamentadas,
combinando reflexão e fruição, como é de esperar em quem termina a escolaridade
obrigatória.”.
Porém, para
que não restem dúvidas os programas deverão, ao indicar excertos, deverão apor
a explicitação “a título de exemplo” – isto para não perderem a sua “vis” programática.
Não
contesto a validade das questões para resposta sobre o texto de Manuel Alegre.
Só contesto a dualidade de critérios dos críticos a reagir quanto a Camões e a
ficar silentes sobre Alegre.
***
Tenho dito
que, nos últimos anos a prova é demasiado extensa. O Grupo I, que dantes tinha um
texto para ler com 5 questões para resposta orientada de média extensão e um
segmento textual para comentar (comentário não muito extenso – com indicação
de um mínimo e um máximo de palavras a utilizar), abrangia seis questões; agora, mantendo-se a
estrutura do Grupo II e do Grupo III como dantes, o Grupo I tem a extensão do
enunciado aumentada, o que implica mais tempo para a leitura de texto e
questões, que faz alta para o aluno pensar.
Não precisei
de ver Camões na prova para concluir que ela e longa ou difícil. Das duas uma
ou se volta à antiga forma no Grupo I ou se deve cortar o Grupo II. E esta segunda
hipótese também é viável para conseguir o objetivo do atual Grupo II porquanto a
isto o texto literário também responde, sobretudo se for em prosa, como o demonstra
a questão 6 do Grupo I, acima transcrita. Com efeito, a informação de Exame, difundida
pelo IAVE, explicita:
“No elenco dos textos complexos, o texto literário ocupa um lugar
relevante porque nele convergem todas as hipóteses discursivas de realização
da língua. Ao contemplar um conjunto de fatores que implicam a sedimentação
da compreensão histórica, cultural e estética, o texto literário permite o
estudo da rede de relações (semânticas, poéticas e simbólicas), da riqueza
conceptual e formal, da estrutura, do estilo, do vocabulário e dos objetivos que
definem um texto complexo (cf ACT,2006). Para tal, pressupõe o Programa também
uma adequada contextualização das obras a estudar, para que elas não surjam aos
olhos dos alunos “como ilhas sonâmbulas num lago preguiçoso; ou como acidentes
num percurso de lógica dificilmente apreensível” (Gusmão 2011,188).”.
***
Soube-se mais tarde que há mais um erro nos exames nacionais. Desta
feita é na prova de Física e Química A, código 715, do 11.º ano.
O secretário-geral da SPQ
(Sociedade
Portuguesa de Química), Adelino Galvão, disse que o erro “não devia ter acontecido”,
mas, como aconteceu, “nenhum aluno será prejudicado”.
Em causa está a questão 1.2 do Grupo II, que
tem na base o relato duma experiência química. Só que o resultado apresentado
para a experiência está errado, confirmou Adelino Galvão. No enunciado
afirma-se que “arrefecendo uma solução contendo iões [FeSCN]2+ (aq), observa-se
que a cor vermelha da solução vai ficando menos intensa”. Ora, acontece exatamente
o contrário, ou seja, ao arrefecer esta solução, a cor vermelha vai ficando
“mais intensa”.
Questionado, o IAVE não
reconhece explicitamente a existência do erro, optando por indicar que a
pergunta em causa “descreve o resultado hipotético de uma atividade
experimental” e que, deste modo, “a única interpretação possível é a que consta nos critérios de classificação” elaborados
por aquele organismo para serem seguidos pelos professores classificadores.
Nos critérios de
correção/classificação, pode ler-se:
“A
resposta deve apresentar os seguintes elementos:
A) O arrefecimento da
solução provoca uma diminuição da concentração do ião [FeSCN]2+ (aq ), o que
traduz um favorecimento da reação inversa.
B) A reação inversa
será exotérmica, pelo que se pode concluir que a variação de entalpia associada
à reação de formação do ião [FeSCN]2+ (aq ) é positiva.”.
Adelino Galvão refere
que a SPQ já tinha alertado o IAVE para esta questão, que teve “resposta em
menos de 24 horas” com a confirmação de que o erro “não terá repercussão nos
resultados”.
Sem mais explicação,
parece haver contradição em que refere o IAVE (a única interpretação possível é a…) e o que Galvão diz que IAVE lhe disse (não terá repercussão nos
resultados).
Não terá repercussão nos resultados, como?
***
Refere o secretário-geral da SPQ que “os exames
são feitos por humanos e, por vezes, há erros” e que aquilo que o preocupa mais neste caso
é que o erro se possa propagar no futuro, já que os alunos treinam para exames
com base nos enunciados de provas anteriores”.
A isto devo dizer que o professor deve ter em conta a
ambiguidade na aula (como faz se a editora
tem erros no manual ou nas atividades) e não se cingir ao treino dos testes de exame.
Depois, que são monstruosamente
hiperbólicas as exigências feitas aos professores vigilantes
(não
podem estar sentados, têm de vigiar se há na prova escritos a lápis e mandar
passar a tinta, têm os dois de rubricar os cabeçalhos, não podem ler nem
conversar nem ir à casa de banho, etc.), o quebra-cabeças
para os professores corretores é crescente, estabelece-se o anonimato do aluno
e da escola, o funcionário que embala um pacote de provas deixa lá um cartão
com o seu n.º para eventual reclamação. Mas, face a erro ou inexatidão em
provas, o IAVE faz ouvidos moucos, escudando-se nos peritos, nos critérios e na
previsível falta de consequências! Dois pesos e duas medidas…
2019.07.24 –
Louro de Carvalho
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