O Santo Padre, antes da recitação do Angelus com os peregrinos concentrados
na Praça de São Pedro, apresentou a compaixão como a chave da vida cristã.
Comentando a
parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), recordou
o elo indissolúvel que existe entre o amor a Deus e o amor concreto e generoso
pelos irmãos. Para o Papa, esta parábola tornou-se paradigmática da vida cristã
ou, por outras palavras, “tornou-se o modelo do modo de ação do cristão”. Por isso,
convidou os fiéis a lerem o “tesouro” contido no Evangelho de Lucas.
A história
do homem reto passa por duas questões: “Que
fazer para ter a vida eterna como herança?”; e “Quem é o meu próximo?”.
Porém, apesar
de se tratar de um dos pontos basilares da condição do discipulado, Jesus não
dá definições exatas. Põe o interlocutor a pensar no que diz a Lei e na forma
como ela a lê, em relação à primeira questão, e conta um episódio elucidativo
em que estão em confronto (e mesmo em conflito) o dever de cumprir os códigos e o dever de socorrer um homem
marginalizado pela maldade de outros, um homem às portas da morte, um homem que
tinha o direito de viver.
Em Mateus,
quem aparece a fazer a pergunta é um fariseu e doutor da lei (eîs ex autôn [pharisaíôn] nomicós), que pretende saber qual é o maior mandamento da Lei,
e, em Marcos é um dos escribas (eîs tôn grammatéôn), que deseja saber o mesmo. Já em Lucas, cujos
leitores são cristãos provindos do paganismo, nada preocupados com a Lei, quem
surge a fazer a pergunta é um legista ou doutor da Lei (nomicós tis), que se mostra
preocupado com a vida eterna. Jesus devolve-lhe a questão (o que não
sucede em Mt e MC, em que Jesus diz expressamente o que diz a Lei), perguntando o que diz a Lei e como a lê. E o
legista diz de cor a resposta citando a Escritura (Dt 6,4; Lv
19,18). E Jesus responde: “Respondeste bem. Faz isso e viverás.”. É uma resposta respaldada no AT (Lv 18,5) e assumida claramente no NT (cf Gl 3,12;
Rm 10,5).
Na verdade,
o livro do Deuteronómio (cf Dt 30,10-14) fala-nos
da maravilha que é possuir uma lei feita por Deus – que está impregnada no âmago
do nosso ser – e que, por isso, leva à Vida. Com efeito, ela “está ao seu alcance: está na sua boca e no
seu coração”. Isso significa que não deveremos ficar presos a um código de
regras, de prescrições, mas que nos entreguemos, sem reservas, à promoção da
Vida. E pouco importa que a Lei exista, se ela não for praticada ou se for mal
entendida e de prática distorcida. A prática da Lei tem de estar ao serviço da
vida.
Mas o
legista não ficou satisfeito na sua curiosidade ou na sua provocação e atirou: “Quem é o meu próximo”? Aqui, Jesus não
se limitou a devolver a pergunta; teve, antes, a paciência de ilustrar a
curiosidade do legista ou aniquilar a sua atitude provocatória com uma lição de
seriedade e de vida, mostrando que a letra da lei sem o espírito vivificante
pode levar à morte.
O doutor da
lei quis saber o que é necessário para herdar a vida eterna. Jesus convidou-o a
achar a resposta nas Escrituras: “Amarás
o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, e ao teu
próximo como a ti mesmo!”. Havia, porém, diferentes interpretações sobre
quem seria o “próximo”. E Jesus conta a parábola do samaritano, que recorre a
um caso-limite.
O protagonista
é um samaritano, à época desprezado pelos judeus. Portanto, não é casual a
escolha do tido como herege para personagem positiva da parábola. Ao longo duma
estrada, o samaritano encontra um homem roubado e agredido por assaltantes.
Antes dele, por aquela estrada, haviam passado um sacerdote e um levita, isto
é, pessoas que se dedicavam ao culto de Deus. Mas não pararam, fizeram de conta
que não viram, pois supostamente não podiam contaminar-se com sangue sob pena
de o culto e o demais serviço do Templo poder ficar inquinado e eventualmente
desagradar a Deus: ritualismo versus atenção
ao próximo.
O único que
lhe presta socorro é justamente o samaritano, quem alegadamente “não tinha fé”.
Os caminhantes
referidos na parábola (o assaltado, o sacerdote, o levita e o samaritano) “baixavam de Jerusalém para Jericó”. De facto,
Jerusalém está a 760 metros acima do nível do mar, ao passo que Jericó está a
250 metros abaixo do nível do mar. O termo aplicado por Lucas para denominar os
assaltantes ou bandidos é “lêstês, oû”,
o mesmo que se aplica a Barrabás (Jo 18,40) e aos dois malfeitores crucificados com Jesus (Mc 15,27). O sacerdote, pessoa consagrada, representante dos
dirigentes religiosos do povo, e o levita, um assistente do Templo, receavam a
aproximação ao homem caído na berma por pensarem que estava morto, o que lhes poderia
ser causa de impureza ritual. E o samaritano era uma das pessoas com quem Jesus
habitualmente não se relacionava (cf Jo 4,9), mas aqui é a chave da lição.
Jesus denuncia
o fracasso dos ministros de Deus em confronto com a atitude do odiado samaritano,
que se esqueceu de si mesmo para a acudir ao estranho debilitado. Assim, os
ouvintes do discurso de Jesus puderam compreender que o mandamento do amor não
conhece limites. E o Papa Francisco comentou:
“Também nós pensamos em tantas pessoas que
conhecemos, talvez agnósticas, que fazem o bem. Jesus escolhe como modelo
alguém que não era homem de fé. E este homem, amando o irmão como a si mesmo,
demonstra que ama a Deus com todo o coração e com todas as forças – o Deus que
não conhecia! – e expressa ao mesmo tempo verdadeira religiosidade e plena
humanidade.”.
Diz o texto evangélico:
“O samaritano chegou ao pé dele (do marginado) e, vendo-o, encheu-se de
compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou
dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo:
‘Trata bem dele e, o que gastares a mais,
pagar-to-ei quando voltar’.”.
São estas as
ações que servem de bitola para a ação em prol do próximo: chegar ao pé, ver,
compadecer-se ao máximo, aproximar-se, tratar as feridas, colocar no meio de transporte,
levar a sítio de acolhimento, cuidar e implicar outrem no cuidado. Uma só
pessoa é insuficiente para cuidar. Não vale a pena procurar protagonismo, que é
descabido e iníquo.
Enfim, quem
tinha o segredo da vida eterna era um estrangeiro que não tinha conhecimento da
Lei nem preocupações com a sua própria segurança, como o legista, nem tinha a
dignidade ou a categoria do estado sacerdotal e levítico. Movido pela compaixão,
mostra um amor espontâneo sem as malhas da Lei, desinteressado, terno, pessoal
e eficaz.
Depois de
contar a parábola, Jesus dirige-se novamente ao doutor da lei e pergunta-lhe: “Na tua opinião, qual dos três foi o próximo
do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”. Ao que ele respondeu: “Aquele que se mostrou misericordioso para
com ele”. Esta é, na verdade, a definição existencial de “próximo”. Anote-se
que, mesmo depois da parábola, o legista não conseguiu pronunciar a palavra “samaritano”. Estaria mesmo interessado
na vida eterna?
Porém, Jesus
ultrapassou esse persistente gelo interior do legista e receitou:
“Vai e faz tu também o mesmo”.
Para o Papa,
Jesus inverteu a pergunta do seu interlocutor e também a lógica de todos nós:
“Ele faz-nos entender que não somos nós, com base nos nossos critérios,
que definimos quem é o próximo e quem não é, mas é a pessoa em situação de
necessidade que deve poder reconhecer quem é o seu próximo, isto é, quem usou
de misericórdia para com ele”.
A isto o Santo Padre acrescentou elucidando, não
em nome da filosofia, mas da vida:
“Ser capazes de sentir compaixão: esta é a
chave. Esta é a nossa chave. Se diante de uma pessoa necessitada, tu não sentes
compaixão, o teu coração não se comove, significa que algo não funciona. Fica
atento, estejamos atentos. Não nos deixemos levar pela insensibilidade
egoística. A capacidade de compaixão tornou-se a medida do cristão, ou melhor,
do ensinamento de Jesus.”.
O Pontífice
exemplificou com o caso dos moradores de rua e com o modo como nos comportamos
diante de alguém caído no chão. E desafiou:
“Pergunta-te se o teu coração não endureceu, se não se tornou gelo.
(...) A misericórdia diante de uma vida humana na situação de necessidade é a
verdadeira face do amor.”.
***
Podemos
apreender o ensinamento eficaz ao jeito de Jesus. Se, para alguns, a salvação
está no cumprimento das leis e, para outros, nos atos realizados dentro dum
templo, para o samaritano, está em assumir a Vida e colocar-se a caminho dos
que estão a ser privados dela. A opção válida é seguir a lógica existencial do
samaritano. Leia-se Mt 25,31-46 e tenha-se em conta o que diz o apóstolo Tiago:
“A religião pura e sem mácula diante daquele
que é Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e
não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27).
A misericórdia
promove a Vida, pois não faz rodeios para salvar o ser humano. A Vida está em
primeiro lugar. Salvaguardar a Vida, seja de quem for, é a Lei Máxima. E Vida não
é só a vida física, mas também a moral, a psíquica, a espiritual. Fala-se da
Vida do Homem. Tudo deve estar subordinado a esse valor, porque Deus é Vida e
Ele quis que assim fosse. Por isso, atentar física ou moralmente contra a vida
de alguém é pecado grave. Por outro lado, qualquer atitude que demonstre falta
de misericórdia significa desconhecimento da revelação do Amor de Deus, pois está
escrito: “Quero a misericórdia e não o
sacrifício” (Os 6,6; Mt 9,13).
Jesus coloca
um samaritano a praticar a misericórdia na parábola, não para incomodar os
judeus, embora tenha a intenção e o desejo de alertar os seus concidadãos, mas para
estabelecer o contraste entre aqueles que têm conhecimento da Lei – mas a
observam só no atinente ao que lhes interessa, criando receios e inventando pretextos
para a não cumprirem em aspetos fundamentais – e quem, desconhecendo os códigos
vigentes, se deixa mover pela misericórdia ditada pela lucidez da inteligência e
pela força humana do coração. De facto,
a Lei de Deus está inscrita no coração humano e alegra-o. Para isso, é necessário
estar atento.
Jesus quer
destacar que o homem nascido na Samaria agiu somente por causa do seu coração. Teve
a sensibilidade de perceber a situação de miséria em que se encontrava o homem
assaltado. Ajudou muito, para que tivesse compaixão, a origem samaritana, de
marginalizado. Identificou-se com o pobre coitado e agiu como Deus, isto é,
teve compaixão.
Segundo
Lucas, só Jesus tem verdadeira compaixão. É Ele o verdadeiro bom samaritano, embora
o não diga. A misericórdia é um gesto eminentemente divino e pode exprimir-se
num aforismo divino como o seguinte: “O
que é meu é teu – quero que tu tenhas vida”.
Ao solidarizar-se
com o marginalizado, o samaritano encontrou Deus e a verdadeira religião.
***
Se calhar, é mesmo salutar e positivo seguir o Papa Francisco na sua
profunda e insistente devoção mariana e rezar para “que a Virgem Maria nos
ajude a compreender e, sobretudo, a viver sempre mais o elo indissolúvel que
existe entre o amor a Deus, nosso Pai, e o amor concreto e generoso pelos
nossos irmãos e nos dê a graça de ter e crescer na compaixão”.
***
2019.07.14 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário