A Academia das Ciências de Lisboa apresentou à Assembleia da República (AR) uma
proposta de aperfeiçoamento do texto do Acordo ortográfico de 1990 (AO) em vigor
desde 2015. Durante quase dois anos e meio, foram ouvidas 16 entidades, houve uma petição, um projeto de resolução chumbado e
uma iniciativa legislativa de cidadãos que não saiu da gaveta. E a AR continua
no mesmo ponto em que estava há quatro anos: os deputados não se entendem
sobre o que fazer ao acordo ortográfico.
O deputado do PSD José Carlos Barros, coordenador do grupo de trabalho (GT) – criado para a avaliação do impacto da aplicação do AO,
que desde março de 2017 voltou a ouvir quem está contra e a favor – fez um relatório em que recomendava ao
Governo uma “negociação político-diplomática” com os países da CPLP para aferir
do interesse de alterar o acordo. Porém, os partidos, no passado dia 17, recusaram
aprovar o relatório porque nunca discutiram fazer recomendações. Efetivamente,
os deputados do GT criticaram duramente o facto de o documento,
elaborado pelo coordenador, incluir um capítulo com recomendações quando estas
nunca foram discutidas no grupo. À esquerda, PS, BE e PCP não se reviam nas
conclusões e recomendações; e, à direita, PSD e CDS reviam-se, mas entendiam
que o coordenador não teria o poder de fazer recomendações que o grupo de
trabalho não discutiu.
Na primeira
versão, o relatório recomendava:
“O Governo dê início a uma negociação
político-diplomática entre as autoridades dos diversos Estados-membros da
CPLP, com vista à discussão da situação atual da aplicação do acordo
ortográfico de 1990 e a ponderação das decisões mais adequadas neste domínio,
incluindo a possibilidade e o interesse de se dar início a um processo de
alteração ou aperfeiçoamento do atual acordo ou à negociação de um novo acordo
ortográfico”.
Porem, o
relator propôs, depois, que se recomendasse, de uma forma mais geral, a
“criação de condições” para essa discussão, sem que fosse uma incumbência ao
Governo. A segunda recomendação era a da “constituição
de uma Comissão Científica para a Ortografia, formada por personalidades
representativas das comunidades académica, científica, literária e
profissionais, para efeitos de acompanhamento” daquelas negociações
político-diplomáticas que se estabelecessem. E a terceira propunha a realização
de estudos envolvendo os serviços do Estado e aquelas comunidades “com vista à avaliação das implicações na
aplicação do acordo no sistema educativo, no mercado editorial e na imprensa,
bem como ao nível da estabilidade ortográfica nos serviços públicos e nas
publicações oficiais”.
O relatório
devia ser votado no GT, no dia 17, para ser analisado e ratificado na Comissão de Cultura, ficando pronto
antes do plenário do dia 19 de julho. Apesar das várias alternativas discutidas
para ultrapassar as dificuldades de se estar a chegar ao fim do prazo dos
trabalhos, o PS pediu o adiamento potestativo da votação, pondo em risco até a
existência dum relatório.
José Carlos
Barros disponibilizou-se para retirar o conteúdo mais direto das recomendações
ao Governo, mas, face à recusa dos deputados, propôs transformar essas
recomendações apenas na opinião do relator, não vinculando, assim, os restantes
deputados e grupos parlamentares. Mas o PS manteve-se irredutível no
adiamento. Entretanto, CDS, BE e PCP advertiram que “não haver relatório dos trabalhos deixa-nos mal a todos”.
O relator
lamentou que “não haja condições no GT para fazer recomendações como um todo” e
que a questão do acordo ortográfico continue a ser um “tabu na sociedade e na
política” portuguesas. Na legislatura anterior, um grupo de trabalho no
Parlamento não fez quaisquer recomendações depois de todas as audições e
contributos que recebeu, tendo-se limitado a fazer um relatório descritivo.
Agora, José Carlos Barros, acrescentando que o PSD “deve, no mínimo, considerar
uma avaliação séria no seu programa eleitoral”, sustentou:
“Não podemos ter esta atitude de não abordar
o assunto. Temos de analisar o que se passa no ensino; saber porque, 30 anos
depois de assinado, ainda há quatro países que se opõem à sua aplicação,
como é o caso de Angola, que não o vai ratificar.”.
O assunto
poderá ser resolvido em reunião da Comissão
de Cultura no dia 19, às 8 horas da manhã, já que o último plenário da
legislatura começa às 9 e tem um extenso guião de votações.
***
Não morro de amores pela reforma
ortográfica de 1990, como não sinto saudades das anteriores. Prefiro a
designação de reforma à de acordo, porque as surgidas no quadro de acordo
internacional não vingaram como acordo, ficando o Brasil com uma ortografia e
Portugal e suas antigas colónias (que sobreviveram
até ao fim do 3.º quartel do século XX) ficou com outra.
A maior parte dos argumentos
contra a atual ortografia tanto permitem a reforma ortográfica como a
desaconselham, dependendo do anglo de apreciação. A comparação com as outras
línguas para forçar a persistência gráfica dos carateres mudos que representam
consoantes mudas esquece a realidade dessas línguas. Por exemplo, o francês
mantém o “c” em “action”, mas também o mantém na pronúncia. A multiplicação da sinonímia por
efeito da supressão dessas consoantes ou pela eliminação de alguns acentos
gráficos não é tão recorrente como alguns pensam e não é nada que não se
resolva pelo contexto. A analogia para justificar a manutenção da consoante
muda em palavras da mesma família, pronunciando-se numas e não em outras (vg: Egi[p]to e Egípcio), não se justifica porque a analogia, sendo um valor não funciona sempre
na pronúncia (dizemos cantávamos e cantáveis por analogia com as demais formas do singular do presente do
indicativo, mas a analogia não funciona no presente do conjuntivo e dizemos cantemos e canteis) e já tínhamos por força da reforma de 1945 muitos casos de dupla
grafia: vg: comprovativo e comprobativo. Aliás, a ortografia de 1990 não tem mais contradições que a de 1945.
Além disso, é de ter em conta que
a ortografia, embora não deva contrariar os princípios básicos do funcionamento
da língua, inscreve-se no âmbito da política da língua e da sua necessária
internacionalização tornando-a o mais comum possível entre as comunidades que a
utilizam.
Por outro lado, é de ter em conta
que a base predominante da ortografia é fonética. Com efeito, a pretensão de
fazer da etimologia a base da ortografia levou a exageros e até erros no século
XVI. Porém, a base fonética não legitima a expressão de cada fonema por um
grafema específico (para isso temos a
transcrição fonética internacional, que vulgarizada na escrita constituiria um
labirinto donde não se sairia), mas possibilita
a aproximação possível a todos os escreventes e leitores.
Já referia A. Gonçalves Viana (vd
Ortografia Nacional.
Simplificação e uniformização das
ortografias portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso,
1904): “A base para a regularização da ortografia
portuguesa tem de ser a história da língua no tempo e no espaço”.
Enfim, o tempo de vigência da
presente ortografia não é suficiente para aconselhar uma revisão de fundo (muito embora se possam fazer alterações pontuais, com destaque para a
diferenciação entre “para”, preposição, e “para”, forma verbal) independentemente
de os outros países da CPLP virem ou não a ratificar o acordo. Teremos de
esperar décadas para outra reforma se poder fazer com proveito.
***
O português
exige uma ortografia adequada – simples, mas que respeite a índole da língua,
que se reveste de grande complexidade, visível na necessidade de constante
recurso a vocabulários, dicionários, prontuários, para evitar erros
ortográficos. Simplificar a ortografia não reduz a complexidade, dadas as
particularidades do nosso idioma; e forçar uma simplificação drástica descaraterizaria
a língua no que ela tem de melhor: riqueza e diversidade.
Como
escreve Ana Salgado, “quando
não há notícia de tsunamis, furacões,
graus de licenciados anulados, políticos corruptos apanhados em flagrante,
árbitros incompetentes, etc.”, vem à liça volta o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa (1990).
A resistência
não é de agora. O tema da ortografia foi sempre assunto controverso, pois a
língua é-nos intrínseca, “faz parte do nosso património”. Que todas as reformas
ortográficas se depararam com resistências, pelo que a resistência a esta
reforma não é de espantar. Mas deve-se prosseguir, a longo prazo, na demanda de
um sistema ortográfico que se adeqúe aos territórios em que se fala e escreve
em português.
Veja-se
o que se passou com as reformas ortográficas nos últimos tempos.
Até
1910, não havia uma norma ortográfica que todos devessem seguir. Porém, na
sequência da implantação da República, surgiu uma comissão para estabelecer uma
ortografia simplificada e uniforme para ser usada nas publicações oficiais e no
ensino, cujos trabalhos culminaram na Reforma Ortográfica de 1911, que o Brasil
não adotou e que muitos escritores, como Fernando Pessoa, recusaram.
Em 1931,
a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras tentaram
estabelecer a unidade dos dois sistemas através do Acordo Ortográfico de 1931 (Portaria
n.º 7117, de 27 de maio de 1931),
na sequência do qual a Academia das Ciências de Lisboa publicou, em 1940, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa,
que o Brasil publicou em 1943.
A 29 de
dezembro de 1943, os Governos de Portugal e do Brasil negociaram a Convenção para a unidade e defesa do idioma
comum, assinada em Lisboa, a 29 de dezembro de 1943. E a Conferência
realizada em Lisboa, de julho a outubro de 1945, pretendia completar a obra da
unidade universal da língua portuguesa, de que resultou o Acordo Ortográfico de
1945, assinado em 10 de agosto e aprovado pelo Decreto n.º 35 228, de 8 de
dezembro de 1945.
O Brasil
não ratificou o Acordo e continuou a regular-se pelo Vocabulário Ortográfico de
1943. E, para reduzir as divergências ortográficas entre os dois países, foram
promulgadas alterações no Brasil em 1971 e, em Portugal, em 1973 (Decreto-lei
n.º 32/73, de 6 de fevereiro).
Em 1975,
a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram
novo projeto de acordo, que não foi aprovado oficialmente.
Num
encontro de 7 países de língua portuguesa (Angola, Brasil, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe), promovido pelo Presidente do
Brasil em 1986, foi apresentado o Memorando
sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – muito contestado. E, em
1990, foi elaborado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, instrumento que
visava criar uma ortografia unificada do português a ser usada por todos os
países de língua oficial portuguesa, que o assinaram em Lisboa, a 16 de
dezembro de 1990. O Acordo Ortográfico (AO) foi aprovado, para ratificação,
pela Resolução da Assembleia da República
n.º 26/91, de 23 de agosto, e foi ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, de 23 de agosto. A
entrada em vigor estava prevista para 1 de janeiro de 1994, “após depositados
os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da
República Portuguesa”, mas nem todos os Estados o ratificaram. O Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa, assinado na cidade da Praia, a 17 de julho de 1998,
pelos Governos dos 7 países de língua portuguesa, foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º
8/2000, de 28 de janeiro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 1/2000, de 28 de janeiro. A
entrada em vigor continuou dependente da sua ratificação por todos os Estados,
mas foi abandonada uma data fixa para o efeito. O Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, assinado em São Tomé e Príncipe, em 27 de julho de 2004 (Já
eram 8 os países, pois Timor-Leste já era independente) foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º
35/2008, de 29 de julho, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de julho. E,
a 17 de setembro de 2010, foi publicado em Diário da República o Aviso n.º 255/2010, do Ministério dos
Negócios Estrangeiros, dando conta do depósito do instrumento de
ratificação do Acordo por Portugal, em 13 de maio de 2009. A AR passou “a
aplicar a ortografia constante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” a
partir de 1 de janeiro de 2012, de acordo com a Deliberação n.º 3-PL/2010, de 15 de dezembro, publicada no Diário
da Assembleia da República II Série A, n.º 55, de 22 de dezembro de 2010.
***
Para a já
mencionada Ana Salgado, uma boa e adequada ortografia deveria estruturar-se em
sete pilares: simplificação, fonética, etimologia, analogia, tradição ortográfica ou consagração pelo uso,
exaustividade e bom senso.
A simplificação leva a que o padrão sirva para “todo o âmbito geográfico e social
da língua”. E Gonçalves Viana, grande impulsionador da reforma de 1911, considerava
que “uma reforma científica da ortografia
teria de conjugar a representação fónica com a história da língua”, mas,
devendo levar a cabo “determinadas
concessões etimológicas”. Na mesma linha, seguiu Rebelo Gonçalves no
Vocabulário de 1940. E, em 1986 surgiu novo projeto, que, por drástico e
simplificador, não foi acolhido. Retrocedeu-se em alguns pontos e surgiu o
Acordo de 1990.
Um ponto
encarado como problemático é o facto de um vocábulo apresentar mais de uma
grafia correta (grafia
dupla) e a proliferação
da facultatividade na ortografia. A grafia dupla representa pronúncias
diferentes, quer entre diferentes países, quer dentro do território nacional A
facultatividade, não sendo novidade, colide com o escopo da unificação. A este
respeito, uma nota explicativa do AO refere:
“Os
dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em
todos os casos de dupla grafia, esclarecerão, tanto quanto possível, sobre o
alcance geográfico e social desta oscilação de pronúncia”.
Deixa-se a
resolução do problema para outros decisores, nomeadamente os lexicógrafos.
E lê-se no Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a
Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa (2010):
“Nos
pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção
por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição
ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e
considerada válida em todos os contextos de utilização da língua, em particular
nos sistemas educativos”.
Deixa-se a
resolução a outros decisores, nomeadamente os lexicógrafos e entidades
nacionais.
O critério fonético (da pronúncia) é um dos critérios norteadores das normas
ortográficas na demanda dum padrão ortográfico único. Este princípio (criticado como um critério de fraco
valor científico) visa
simplificar a ortografia e reduzir as divergências entre as práticas
ortográficas.
A escrita não
se limita à representação da fala, mas faz a aproximação possível. Por isso, a
primazia dada ao critério fonético deve ser ponderada. Sempre que a consoante é
pronunciada, a é conservada e, quando não é pronunciada, é eliminada em nome da
simplificação. No entanto, a criação de palavras com a aplicação da nova ortografia
deve dar azo a nova reflexão, como é o caso das grafias aceção, receção, etc.
Se o princípio é unificador, não deveriam existir casos de grafias diferentes
entre as duas normas, sobretudo se não existiam no sistema ortográfico português.
Isto, para lá dos riscos de ambiguidade que muitos destes casos apresentam. Por
isso e dado que os casos são residuais, deve prestar-se atenção ao contexto. Por
outro lado, sempre tivemos palavras parónimas para significar a mesma
realidade: vg: regime e regímen, abdome e abdómen, registo e registro…
Uma ortografia rigorosamente etimológica é
impraticável (Há tantas palavras
de origem obscura e tantos fenómenos de atração fonética!). Porém, há casos em que, por bom
senso, se deve regressar às origens, para evitar determinadas incoerências,
sobretudo no plano paradigmático e em linguagens técnicas e científicas. Exemplo
da premência deste critério é o uso do “h” inicial, que se mantém por “força da
etimologia” ou “em virtude de adoção convencional”. Contrariamente à fonética,
a etimologia une os falantes na escrita.
O pilar da analogia (o de menor peso: se
calhar, deveríamos dizer ouvo, dizo, façado, ouvisto…) permite
fazer comparações para evitar determinadas incoerências que, por analogia com
palavras da mesma família, são casos únicos, como Egito vs egípcio, egiptologia, egiptólogo, etc, interrupção e interruptor,
insurreto e ressurecto, rutura e rotura, apesar de as grafias divergirem em
algumas obras de referência.
É
também importante respeitar a tradição
gráfica do português e preservar certos usos já consagrados. E, neste
aspeto, o AO falha sobretudo na composição de algumas palavras, não obviamente naquelas
em que o primeiro elemento é um falso prefixo.
No atinente à
exaustividade, é de ter em conta que “uma
condição necessária para a elaboração de um bom e rigoroso tratado de
ortografia e que bem sirva a escrita portuguesa deve passar pela
disponibilização de listas exaustivas que sejam devidamente analisadas e
tratadas de forma pormenorizada e o mais completa possível por equipas de
especialistas, que reúnam, definitivamente, lexicógrafos, linguistas,
tradutores, etc., ou seja, todos os profissionais da língua” (Ana Salgado).
Por fim, o pilar do bom senso, em nome do qual é vantajoso definir uma política da língua que
sirva de instrumento de conservação do vasto património que representa o nosso
idioma, no reconhecimento da sua pluralidade e diversidade, em que prevaleça o
bom senso de uso, sejam devidamente ponderadas as decisões e haja uma forte
coerência no conjunto da aplicação das normas, devendo ser tida em conta a
peculiaridade de cada país e região.
(cf Ana Salgado, Os sete pilares da língua portuguesa, 18
de outubro de 2016: http://porticodalinguaportuguesa.pt/index.php/acordo-ortografico/artigos-ao/item/os-7-pilares-da-ortografia)
***
Provavelmente é melhor o Parlamento
deixar o AO em banho-maria e deixar que a experiência dite possíveis alterações,
esperando que se dicionarizem mais vocábulos e se recuperem outros que foi pena
terem caído em desuso.
2019.07.18 – Louro de Carvalho
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