quinta-feira, 18 de julho de 2019

Deputados não se entendem sobre o acordo ortográfico


A Academia das Ciências de Lisboa apresentou à Assembleia da República (AR) uma proposta de aperfeiçoamento do texto do Acordo ortográfico de 1990 (AO) em vigor desde 2015. Durante quase dois anos e meio, foram ouvidas 16 entidades, houve uma petição, um projeto de resolução chumbado e uma iniciativa legislativa de cidadãos que não saiu da gaveta. E a AR continua no mesmo ponto em que estava há quatro anos: os deputados não se entendem sobre o que fazer ao acordo ortográfico.
O deputado do PSD José Carlos Barros, coordenador do grupo de trabalho (GT) – criado para a avaliação do impacto da aplicação do AO, que desde março de 2017 voltou a ouvir quem está contra e a favor – fez um relatório em que recomendava ao Governo uma “negociação político-diplomática” com os países da CPLP para aferir do interesse de alterar o acordo. Porém, os partidos, no passado dia 17, recusaram aprovar o relatório porque nunca discutiram fazer recomendações. Efetivamente, os deputados do GT criticaram duramente o facto de o documento, elaborado pelo coordenador, incluir um capítulo com recomendações quando estas nunca foram discutidas no grupo. À esquerda, PS, BE e PCP não se reviam nas conclusões e recomendações; e, à direita, PSD e CDS reviam-se, mas entendiam que o coordenador não teria o poder de fazer recomendações que o grupo de trabalho não discutiu.
Na primeira versão, o relatório recomendava:
O Governo dê início a uma negociação político-diplomática entre as autoridades dos diversos Estados-membros da CPLP, com vista à discussão da situação atual da aplicação do acordo ortográfico de 1990 e a ponderação das decisões mais adequadas neste domínio, incluindo a possibilidade e o interesse de se dar início a um processo de alteração ou aperfeiçoamento do atual acordo ou à negociação de um novo acordo ortográfico”.
Porem, o relator propôs, depois, que se recomendasse, de uma forma mais geral, a “criação de condições” para essa discussão, sem que fosse uma incumbência ao Governo. A segunda recomendação era a da “constituição de uma Comissão Científica para a Ortografia, formada por personalidades representativas das comunidades académica, científica, literária e profissionais, para efeitos de acompanhamento” daquelas negociações político-diplomáticas que se estabelecessem. E a terceira propunha a realização de estudos envolvendo os serviços do Estado e aquelas comunidades “com vista à avaliação das implicações na aplicação do acordo no sistema educativo, no mercado editorial e na imprensa, bem como ao nível da estabilidade ortográfica nos serviços públicos e nas publicações oficiais”.
O relatório devia ser votado no GT, no dia 17, para ser analisado e ratificado na Comissão de Cultura, ficando pronto antes do plenário do dia 19 de julho. Apesar das várias alternativas discutidas para ultrapassar as dificuldades de se estar a chegar ao fim do prazo dos trabalhos, o PS pediu o adiamento potestativo da votação, pondo em risco até a existência dum relatório.
José Carlos Barros disponibilizou-se para retirar o conteúdo mais direto das recomendações ao Governo, mas, face à recusa dos deputados, propôs transformar essas recomendações apenas na opinião do relator, não vinculando, assim, os restantes deputados e grupos parlamentares. Mas o PS manteve-se irredutível no adiamento. Entretanto, CDS, BE e PCP advertiram que “não haver relatório dos trabalhos deixa-nos mal a todos”.
O relator lamentou que “não haja condições no GT para fazer recomendações como um todo” e que a questão do acordo ortográfico continue a ser um “tabu na sociedade e na política” portuguesas. Na legislatura anterior, um grupo de trabalho no Parlamento não fez quaisquer recomendações depois de todas as audições e contributos que recebeu, tendo-se limitado a fazer um relatório descritivo. Agora, José Carlos Barros, acrescentando que o PSD “deve, no mínimo, considerar uma avaliação séria no seu programa eleitoral”, sustentou:
Não podemos ter esta atitude de não abordar o assunto. Temos de analisar o que se passa no ensino; saber porque, 30 anos depois de assinado, ainda há quatro países que se opõem à sua aplicação, como é o caso de Angola, que não o vai ratificar.”.
O assunto poderá ser resolvido em reunião da Comissão de Cultura no dia 19, às 8 horas da manhã, já que o último plenário da legislatura começa às 9 e tem um extenso guião de votações.
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Não morro de amores pela reforma ortográfica de 1990, como não sinto saudades das anteriores. Prefiro a designação de reforma à de acordo, porque as surgidas no quadro de acordo internacional não vingaram como acordo, ficando o Brasil com uma ortografia e Portugal e suas antigas colónias (que sobreviveram até ao fim do 3.º quartel do século XX) ficou com outra. 
A maior parte dos argumentos contra a atual ortografia tanto permitem a reforma ortográfica como a desaconselham, dependendo do anglo de apreciação. A comparação com as outras línguas para forçar a persistência gráfica dos carateres mudos que representam consoantes mudas esquece a realidade dessas línguas. Por exemplo, o francês mantém o “c” em “action”, mas também o mantém na pronúncia. A multiplicação da sinonímia por efeito da supressão dessas consoantes ou pela eliminação de alguns acentos gráficos não é tão recorrente como alguns pensam e não é nada que não se resolva pelo contexto. A analogia para justificar a manutenção da consoante muda em palavras da mesma família, pronunciando-se numas e não em outras (vg: Egi[p]to e Egípcio), não se justifica porque a analogia, sendo um valor não funciona sempre na pronúncia (dizemos cantávamos e cantáveis por analogia com as demais formas do singular do presente do indicativo, mas a analogia não funciona no presente do conjuntivo e dizemos cantemos e canteis) e já tínhamos por força da reforma de 1945 muitos casos de dupla grafia: vg: comprovativo e comprobativo. Aliás, a ortografia de 1990 não tem mais contradições que a de 1945.
Além disso, é de ter em conta que a ortografia, embora não deva contrariar os princípios básicos do funcionamento da língua, inscreve-se no âmbito da política da língua e da sua necessária internacionalização tornando-a o mais comum possível entre as comunidades que a utilizam.
Por outro lado, é de ter em conta que a base predominante da ortografia é fonética. Com efeito, a pretensão de fazer da etimologia a base da ortografia levou a exageros e até erros no século XVI. Porém, a base fonética não legitima a expressão de cada fonema por um grafema específico (para isso temos a transcrição fonética internacional, que vulgarizada na escrita constituiria um labirinto donde não se sairia), mas possibilita a aproximação possível a todos os escreventes e leitores.   
Já referia A. Gonçalves Viana (vd Ortografia Nacional. Simplificação e uniformização das ortografias portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1904): “A base para a regularização da ortografia portuguesa tem de ser a história da língua no tempo e no espaço”.
Enfim, o tempo de vigência da presente ortografia não é suficiente para aconselhar uma revisão de fundo (muito embora se possam fazer alterações pontuais, com destaque para a diferenciação entre “para”, preposição, e “para”, forma verbal) independentemente de os outros países da CPLP virem ou não a ratificar o acordo. Teremos de esperar décadas para outra reforma se poder fazer com proveito.  
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O português exige uma ortografia adequada – simples, mas que respeite a índole da língua, que se reveste de grande complexidade, visível na necessidade de constante recurso a vocabulários, dicionários, prontuários, para evitar erros ortográficos. Simplificar a ortografia não reduz a complexidade, dadas as particularidades do nosso idioma; e forçar uma simplificação drástica descaraterizaria a língua no que ela tem de melhor: riqueza e diversidade.
Como escreve Ana Salgado, “quando não há notícia de tsunamis, furacões, graus de licenciados anulados, políticos corruptos apanhados em flagrante, árbitros incompetentes, etc.”, vem à liça volta o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
A resistência não é de agora. O tema da ortografia foi sempre assunto controverso, pois a língua é-nos intrínseca, “faz parte do nosso património”. Que todas as reformas ortográficas se depararam com resistências, pelo que a resistência a esta reforma não é de espantar. Mas deve-se prosseguir, a longo prazo, na demanda de um sistema ortográfico que se adeqúe aos territórios em que se fala e escreve em português.
Veja-se o que se passou com as reformas ortográficas nos últimos tempos.
Até 1910, não havia uma norma ortográfica que todos devessem seguir. Porém, na sequência da implantação da República, surgiu uma comissão para estabelecer uma ortografia simplificada e uniforme para ser usada nas publicações oficiais e no ensino, cujos trabalhos culminaram na Reforma Ortográfica de 1911, que o Brasil não adotou e que muitos escritores, como Fernando Pessoa, recusaram.
Em 1931, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras tentaram estabelecer a unidade dos dois sistemas através do Acordo Ortográfico de 1931 (Portaria n.º 7117, de 27 de maio de 1931), na sequência do qual a Academia das Ciências de Lisboa publicou, em 1940, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que o Brasil publicou em 1943.
A 29 de dezembro de 1943, os Governos de Portugal e do Brasil negociaram a Convenção para a unidade e defesa do idioma comum, assinada em Lisboa, a 29 de dezembro de 1943. E a Conferência realizada em Lisboa, de julho a outubro de 1945, pretendia completar a obra da unidade universal da língua portuguesa, de que resultou o Acordo Ortográfico de 1945, assinado em 10 de agosto e aprovado pelo Decreto n.º 35 228, de 8 de dezembro de 1945.
O Brasil não ratificou o Acordo e continuou a regular-se pelo Vocabulário Ortográfico de 1943. E, para reduzir as divergências ortográficas entre os dois países, foram promulgadas alterações no Brasil em 1971 e, em Portugal, em 1973 (Decreto-lei n.º 32/73, de 6 de fevereiro).
Em 1975, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram novo projeto de acordo, que não foi aprovado oficialmente.
Num encontro de 7 países de língua portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe), promovido pelo Presidente do Brasil em 1986, foi apresentado o Memorando sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – muito contestado. E, em 1990, foi elaborado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, instrumento que visava criar uma ortografia unificada do português a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa, que o assinaram em Lisboa, a 16 de dezembro de 1990. O Acordo Ortográfico (AO) foi aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, de 23 de agosto, e foi ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, de 23 de agosto. A entrada em vigor estava prevista para 1 de janeiro de 1994, “após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa”, mas nem todos os Estados o ratificaram. O Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado na cidade da Praia, a 17 de julho de 1998, pelos Governos dos 7 países de língua portuguesa, foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 8/2000, de 28 de janeiro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 1/2000, de 28 de janeiro. A entrada em vigor continuou dependente da sua ratificação por todos os Estados, mas foi abandonada uma data fixa para o efeito. O Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em São Tomé e Príncipe, em 27 de julho de 2004 (Já eram 8 os países, pois Timor-Leste já era independente) foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de julho, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de julho. E, a 17 de setembro de 2010, foi publicado em Diário da República o Aviso n.º 255/2010, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dando conta do depósito do instrumento de ratificação do Acordo por Portugal, em 13 de maio de 2009. A AR passou “a aplicar a ortografia constante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” a partir de 1 de janeiro de 2012, de acordo com a Deliberação n.º 3-PL/2010, de 15 de dezembro, publicada no Diário da Assembleia da República II Série A, n.º 55, de 22 de dezembro de 2010.
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Para a já mencionada Ana Salgado, uma boa e adequada ortografia deveria estruturar-se em sete pilares: simplificação, fonética, etimologia, analogia, tradição ortográfica ou consagração pelo uso, exaustividade e bom senso.
A simplificação leva a que o padrão sirva para “todo o âmbito geográfico e social da língua”. E Gonçalves Viana, grande impulsionador da reforma de 1911, considerava que “uma reforma científica da ortografia teria de conjugar a representação fónica com a história da língua”, mas, devendo levar a cabo “determinadas concessões etimológicas”. Na mesma linha, seguiu Rebelo Gonçalves no Vocabulário de 1940. E, em 1986 surgiu novo projeto, que, por drástico e simplificador, não foi acolhido. Retrocedeu-se em alguns pontos e surgiu o Acordo de 1990.
Um ponto encarado como problemático é o facto de um vocábulo apresentar mais de uma grafia correta (grafia dupla) e a proliferação da facultatividade na ortografia. A grafia dupla representa pronúncias diferentes, quer entre diferentes países, quer dentro do território nacional A facultatividade, não sendo novidade, colide com o escopo da unificação. A este respeito, uma nota explicativa do AO refere:
Os dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia, esclarecerão, tanto quanto possível, sobre o alcance geográfico e social desta oscilação de pronúncia”.
Deixa-se a resolução do problema para outros decisores, nomeadamente os lexicógrafos.
E lê-se no Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa (2010):
Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos os contextos de utilização da língua, em particular nos sistemas educativos”.
Deixa-se a resolução a outros decisores, nomeadamente os lexicógrafos e entidades nacionais.
O critério fonético (da pronúncia) é um dos critérios norteadores das normas ortográficas na demanda dum padrão ortográfico único. Este princípio (criticado como um critério de fraco valor científico) visa simplificar a ortografia e reduzir as divergências entre as práticas ortográficas.
A escrita não se limita à representação da fala, mas faz a aproximação possível. Por isso, a primazia dada ao critério fonético deve ser ponderada. Sempre que a consoante é pronunciada, a é conservada e, quando não é pronunciada, é eliminada em nome da simplificação. No entanto, a criação de palavras com a aplicação da nova ortografia deve dar azo a nova reflexão, como é o caso das grafias aceção, receção, etc. Se o princípio é unificador, não deveriam existir casos de grafias diferentes entre as duas normas, sobretudo se não existiam no sistema ortográfico português. Isto, para lá dos riscos de ambiguidade que muitos destes casos apresentam. Por isso e dado que os casos são residuais, deve prestar-se atenção ao contexto. Por outro lado, sempre tivemos palavras parónimas para significar a mesma realidade: vg: regime e regímen, abdome e abdómen, registo e registro…
Uma ortografia rigorosamente etimológica é impraticável (Há tantas palavras de origem obscura e tantos fenómenos de atração fonética!). Porém, há casos em que, por bom senso, se deve regressar às origens, para evitar determinadas incoerências, sobretudo no plano paradigmático e em linguagens técnicas e científicas. Exemplo da premência deste critério é o uso do “h” inicial, que se mantém por “força da etimologia” ou “em virtude de adoção convencional”. Contrariamente à fonética, a etimologia une os falantes na escrita.
O pilar da analogia (o de menor peso: se calhar, deveríamos dizer ouvo, dizo, façado, ouvisto) permite fazer comparações para evitar determinadas incoerências que, por analogia com palavras da mesma família, são casos únicos, como Egito vs egípcio, egiptologia, egiptólogo, etc, interrupção e interruptor, insurreto e ressurecto, rutura e rotura, apesar de as grafias divergirem em algumas obras de referência.
É também importante respeitar a tradição gráfica do português e preservar certos usos já consagrados. E, neste aspeto, o AO falha sobretudo na composição de algumas palavras, não obviamente naquelas em que o primeiro elemento é um falso prefixo.
No atinente à exaustividade, é de ter em conta que “uma condição necessária para a elaboração de um bom e rigoroso tratado de ortografia e que bem sirva a escrita portuguesa deve passar pela disponibilização de listas exaustivas que sejam devidamente analisadas e tratadas de forma pormenorizada e o mais completa possível por equipas de especialistas, que reúnam, definitivamente, lexicógrafos, linguistas, tradutores, etc., ou seja, todos os profissionais da língua” (Ana Salgado).
Por fim, o pilar do bom senso, em nome do qual é vantajoso definir uma política da língua que sirva de instrumento de conservação do vasto património que representa o nosso idioma, no reconhecimento da sua pluralidade e diversidade, em que prevaleça o bom senso de uso, sejam devidamente ponderadas as decisões e haja uma forte coerência no conjunto da aplicação das normas, devendo ser tida em conta a peculiaridade de cada país e região.
(cf Ana Salgado, Os sete pilares da língua portuguesa, 18 de outubro de 2016: http://porticodalinguaportuguesa.pt/index.php/acordo-ortografico/artigos-ao/item/os-7-pilares-da-ortografia)
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Provavelmente é melhor o Parlamento deixar o AO em banho-maria e deixar que a experiência dite possíveis alterações, esperando que se dicionarizem mais vocábulos e se recuperem outros que foi pena terem caído em desuso.
2019.07.18 – Louro de Carvalho

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