No prefácio que assina para o livro “Mulheres crucificadas. A vergonha do tráfico
relatada desde a rua” (Editora Rubbettino), divulgado na Itália, no dia 29, o Papa Francisco denunciou a escravatura
a que são sujeitas mulheres de todo o mundo, vítimas de tráfico e exploração
sexual.
Nesse texto, recorda
o encontro que teve, em 2016, com algumas das vítimas de tráfico e exploração
sexual. Com efeito, uma Sexta-feira
da Misericórdia do mês de agosto daquele ano, viu o Papa Francisco deslocar-se
a um condomínio na periferia da cidade de Roma, onde encontrou algumas mulheres
jovens que participam no projeto de recuperação da Comunidade Papa João XXIII,
fundada pelo Padre Benzi.
A visita
papal constituiu uma verdadeira surpresa para as 20 jovens que, ao abrir a
porta do apartamento privado, esperavam tudo menos ver o Santo Padre. Francisco
deteve-se por mais de uma hora com grande afabilidade a escutar as tristes
experiências destas jovens e encorajou-as a olhar para a frente com muita
confiança.
No encontro
estavam presentes o responsável nacional da Comunidade João XXIII, Giovanni
Paolo Ramonda, o assistente espiritual, Padre Aldo Bonaiuto, e algumas pessoas
que trabalham no caminho da Comunidade. Foi um ato de cortesia particular por
parte do Papa a este grupo representativo de jovens mulheres, com uma idade
média de 30 anos e provenientes da Roménia, da Nigéria, da Tunísia, da Ucrânia,
da Albânia e da Itália.
Em tempo de férias,
em que ganha maior peso o significado da descontração e do divertimento, não
raro sem ter em conta quaisquer regras, o sinal do Papa Francisco teve em vista
o reconhecimento e a pretensão de restituir a plena dignidade a estas mulheres
que sofreram não apenas atos isolados de fortes violências, estupros, e
intimidações, mas tudo isso em regime de continuação e intensificação por obra
das redes de tráfico da prostituição.
Com este
sinal de cortesia, o Papa pretendeu reiterar que a Misericórdia não é uma
palavra abstrata, mas uma ação concreta de desvelo a modo do desvelo do Pai misericordioso
e do Filho, imagem do Pai e caminho para Ele, mediante a qual nos comprometemos
também no campo social, para restituir a dignidade a pessoas submetidas a novas
formas de escravidão.
Na
verdade, a prostituição organizada e objeto de tráfico, além de pecado,
configura uma forma de escravidão em que as pessoas se submetem aos interesses
caprichosos do dinheiro, do prazer e do mando, através da subjugação, e uma
forma de comercialização do corpo em que o lucro reverte, não tanto em prol de
quem satisfaz o vício de outrem, mas de quem detém o poder na rede. É uma forma
de exploração da pessoa humana, sendo que muitos dos clientes e dos donos da
rede têm a lata hipócrita de se dizerem cristãos e comparecer engravatados às cerimónias
religiosas de impacto público em que a imagem lhes dá jeito.
***
Agora,
na denúncia a que Francisco põe mãos assinando o prefácio do livro
suprarreferido, feito púlpito ambulante, preconiza que “libertar
estas pobres escravas é um gesto de misericórdia e um dever para todos os seres
humanos de boa vontade” e que “o seu
grito de dor não pode deixar indiferente nem os indivíduos nem as instituições”.
Este duplo pregão assume o apelo à misericórdia de
modo a que pessoas singulares e pessoas coletivas com um pingo de sentido
evangélico e humanitário se confranjam perante esta situação de seres humanos
atirados para a valeta da estrada da sociedade hedónica e consumista, se
aproximem, olhem bem para eles, tratem deles, peguem neles, os levem para sítio
seguro e cuidem deles mobilizando outros para que participem ativamente nesse
cuidado (cf Lc 10,29-37). Por outro, lado chama a atenção para o dever de
cuidar dos irmãos na linha da interrogação de Deus “Onde está o teu irmão?” (cf Gn 4,9), na linha do decálogo (vd Ex
22,20-23; Dt 11,32) e na linha
paulina “Carregai as cargas uns dos outros e
assim cumprireis plenamente a lei de Cristo” (Gl
6,2). É um problema humanitário na linha terenciana: “Homo sum: et humani nihil a me
alienum puto” (Sou homem: e nada do que é humano julgo que me seja
alheio). E é um problema humano e cristão na linha
do Concilio Vaticano II:
“Gaudium et spes,
luctus et angor hominum huius temporis, pauperum praesertim et quorumvis
afflictorum, gaudium sunt et spes, luctus et angor etiam Christi discipulorum,
nihilque vere humanum invenitur, quod in corde eorum non resonet” (As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração).
(GS,1)
O livro em referência é da autoria do Padre Aldo
Buonaiuto, da Comunidade Papa João XXIII, fundada por Oreste Benzi,
suprarreferida.
Foi esta a comunidade que o Papa visitou numa das ‘Sextas-feiras da
Misericórdia’, durante o último Jubileu, a 12 de agosto de 2016.
Francisco não deixa de chamar os bois pelos seus nomes
ao escrever:
“Qualquer forma de prostituição é uma
redução à escravatura, um ato criminoso, um vício repugnante que confunde o
fazer do amor com o descarregar os próprios instintos, torturando uma mulher
indefesa”.
E, de forma um pouco mais
desenvolvida, vinca:
“É uma ferida na consciência
coletiva, um desvio ao imaginário corrente. É patológica a mentalidade segundo
a qual uma mulher é explorada como se fosse uma mercadoria, que se usa e depois
se deita fora. É uma doença da humanidade, uma maneira errada de pensar da
sociedade.”.
Todavia, não é lícito aproveitar o adjetivo patológico aplicado à mentalidade da
exploração da mulher como se de mercadoria se tratasse para enveredar pela via
da complacência e inimputabilidade de angariadores e clientes: uns buscam o
lucro a qualquer preço e outros satisfazem o instinto à custa de seres
humilhados que a sociedade se prepara para descartar.
Evocando a passagem pela
casa de acolhimento da Comunidade Papa João XXIII, na região metropolitana de
Roma, Francisco confessa: “Não pensei que
lá dentro iria encontrar mulheres tão humilhadas, debilitadas, exaustas.
Realmente mulheres crucificadas.”.
E, a propósito daquelas jovens libertadas do tráfico
da prostituição, oriundas da Roménia, Albânia, Nigéria, Tunísia, Itália ou
Ucrânia, que estiveram com o Papa, Francisco escreve:
“Quando numa das sextas-feiras da Misericórdia durante o Ano Santo
Extraordinário entrei na casa de acolhimento da Comunidade Papa João XXIII, não
pensei que lá encontraria mulheres tão humilhadas, tristes e provadas.
Realmente mulheres crucificadas. Na sala em que encontrei as mulheres
libertadas do tráfico da prostituição forçada, respirei toda a dor, a injustiça e o efeito da subjugação. Uma
oportunidade para reviver as feridas de Cristo. Depois de ter escutado as
narrações comoventes e tão humanas destas pobres mulheres, algumas delas com o
filho nos braços, senti um forte desejo, quase exigência, de lhes pedir perdão
pelas autênticas torturas que tiveram de suportar por causa dos clientes,
muitos dos quais se definiam cristãos.”.
Enfim, Mario Beergoglio leva até às últimas
consequências aquele grito terenciano acima mencionado e a primeira frase da Gaudium et Spes (GS), bem como o capítulo de Mateus em que ficam estatelados
os critérios do juízo final, ou seja as obras de misericórdia para com os irmãos
em primeira necessidade porque neles se serve a Cristo ou neles se deixa de O servir. Por isso e porque alguns dos prevaricadores
se dizem cristãos arrastando com ele a credibilidade e a eficácia do
cristianismo, o Papa como que sente a obrigação de pedir perdão.
E o Sumo Pontífice, convidando todos ao acolhimento
das vítimas do tráfico da prostituição forçada e da violência e recordando o
trabalho de quem ajuda as vítimas, sujeitos “aos perigos e às retaliações da
criminalidade, que fez destas jovens uma inesgotável fonte de lucros ilícitos e
vergonhosos” fala da urgência de libertar estas mulheres jovens e sustenta: “Uma pessoa nunca pode ser posta à venda”.
Depois, conclui:
“Libertar estas pobres escravas é um gesto
de misericórdia e um dever para todos os seres humanos de boa vontade. O seu
grito de dor não pode deixar indiferente: nem os indivíduos nem as
instituições. Ninguém pode voltar as costas ou lavar as mãos do sangue inocente
que é derramado nas estradas do mundo.”.
Sobre a
Comunidade Papa João XXIII, o Santo Padre não se poupa a elogioso comentário vertido
em escrita eminentemente pessoal:
“Estou feliz por conhecer o trabalho precioso e corajoso de assistência
e reabilitação que o Padre Aldo Buonaiuto realiza há vários anos, seguindo o
carisma de Oreste Benzi. Isso requer também a disponibilidade de se expor aos
perigos e retaliações da criminalidade que fez dessas mulheres uma fonte
inexaurível de ganhos ilícitos e vergonhosos.”.
Quanto ao
livro, deixa o seguinte voto:
“Gostaria que este livro fosse acolhido no contexto mais amplo possível
a fim de que, conhecendo as histórias que estão por trás do número chocante do
tráfico, se possa entender que, sem deter essa alta demanda de clientes, não
será possível combater de maneira eficaz a exploração e a humilhação de vidas
inocentes”.
Na verdade,
como diz e muito bem, é preciso combater o flagelo da prostituição organizada e
escravizante em todas as frentes: acolhendo as mulheres em situação de
fragilidade que as exponha à tentação da devassa por parte da rede e dos
clientes, apostando na recuperação das que se sentem amarradas pelo sistema e
ou ‘não querem’ (?) ou não podem sair, agindo sobre os angariadores e
lucradores da rede e desmotivando e travando a demanda de clientes
Isto é uma
forma abjeta de corrupção e a corrupção é uma “doença” pública que não se detém
sozinha. É necessária a “tomada de consciência individual e coletiva, e também
eclesial”, diz o Sumo Pontífice, “para ajudar realmente essas nossas
desventuradas irmãs e para impedir que a iniquidade do mundo caia sobre as criaturas
mais frágeis e indefesas”. Com efeito, “toda a forma de prostituição” –
repete-se – é escravidão, ato criminoso,
vício péssimo que confunde a relação de amor com “o desafogo dos próprios
instintos, torturando uma mulher indefesa.
É, pois,
urgente combater esta ferida na consciência coletiva, esta doença da
humanidade. Neste combate ninguém pode ficar indiferente. É a misericórdia
benevolente que deve prevalecer ao lado do dever a impelir-nos à conformação
com a vontade divina de recuperar todos os seres humanos para a dignidade que
lhes é consubstancial e inerente e para o caminho da salvação.
De facto, “libertar
essas pobres escravas é um gesto de misericórdia e um dever para todos os
homens de boa vontade”, que não podem ficar insensíveis ao seu grito de dor ou
lavar as mãos, como Pôncio Pilatos, “do sangue inocente que é derramado nas
estradas do mundo”. O contrário será a negação do serviço a Cristo com
esclarece o discurso do fim dos tempos (vd Mt 25,31,46).
E Cristo (e as pessoas em quem Ele se revê) merece tudo o que nós possamos fazer!
2019.07.30 – Louro de Carvalho
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