O facto de o enunciado da prova de Português 12.º
ano (cód 639), na 2.ª fase dos exames nacionais, ter feito a
transcrição das estâncias 26-29 do Canto VI d’ Os Lusíadas, no quadro do
Consílio dos deuses marinhos (estâncias
16-37), cuja convocação foi feita, através de Tritão, por Neptuno a rogo de
Baco para tentar induzir os deuses marinhos a impedirem os lusos de alcançar a
Índia, fez-me pensar na função da mitologia na epopeia camoniana e, em
especial, nas intenções e nos papéis de Baco e Vénus na trama, representando os
interesses antagónicos dos seres humanos. E se a mitologia, preceituada pelas
regras clássicas na epopeia, parece anacrónica e obsoleta na época moderna da
História e ímpia num poema dum autor cristão (pelo que foi objeto de tantas críticas), não deixa de se
configurar, segundo o discurso pessoano, em “O mito é o
nada que é tudo (…) /Assim a lenda se escorre / A entrar na realidade (…).”
Enquanto Homero e Virgílio terão acreditado nos
deuses greco-romanos, Camões, homem de fé cristã, cria no único Deus vivo e
verdadeiro, próximo e transcendente. Porém, como poeta, figurou a crença
funcional naqueles deuses, não os encarando na obra como simples ornamento. Com
efeito, a mitologia n’Os Lusíadas não é mero enfeite, nem simples
coletânea de símbolos; Camões, alcandorando os deuses e deusas ao estatuto de
personagens da narrativa, apôs-lhes a chancela da credibilidade e ornou-os com
a garantia da verosimilhança, inerentes ao estatuto da personagem. No universo
ficcional plasmado no texto, os deuses têm existência verídica e intervêm na
ação. E a sua intervenção na economia da epopeia materializa-se na sequência
narrativa da viagem, sequência central na complexa estrutura da epopeia
camoniana, funcionando eles à laia de motores de propulsão do devir dos acontecimentos.
E fazem-no, ora de forma individual e bilateral, ora de forma solene e
coletiva, mas nesta salvaguardando a celestial hierarquia. Assim, irrompem os
dois consílios: o ecuménico no canto I (início do 1.º ciclo épico), no Olimpo, convocado por Júpiter, o Padre dos deuses
e dos homens, através de Mercúrio; e o provincial, o dos deuses marinhos, no
Canto VI (início do 2.º ciclo épico),
convocado por Neptuno. Por outro lado, narração inicia-se in medias res
sendo interrompida logo no início, para dar lugar ao consílio dos deuses no
Olimpo. Assim, o que se passar depende da vontade e ação dos deuses, tal como,
a partir da deliberação de Neptuno, no segundo consílio, a ação vai depender da
vontade dos deuses do mar, deuses prestes ao penoso esbulho de seus domínios.
A armada de Vasco Gama não entra em Mombaça por
dificuldades de manobra; surge a tempestade marítima (fenómeno natural, cientificamente explicável).
Contudo, para o poeta n’ Os Lusíadas, que não são livro de História nem tratado
científico de fenómenos atmosféricos, quem impediu a destruição da armada, em
porto hostil, foi Vénus e “as alvas filhas de Nereu” (II,18-23); e quem desencadeou a raivosa procela foram os
ventos que Éolo soltou “do cárcere fechado”, cumprindo assim a resolução do
consílio dos deuses marinhos, e apoiando, desta forma, os planos de Baco, que
assim o solicitara:
Já lá o soberbo Hipótades soltava / o cárcere
fechado os furiosos /Ventos, que com palavras animava /Contra os varões audaces
e animosos. /Súbito, o céu sereno se obumbrava, /Que os ventos, mais que nunca
impetuosos, /Começam novas forças a ir tomando, /Torres, montes e casas derribando. (VI, 37).
***
Nestes termos, a presença dos deuses não é esfumada
ou diáfana, mas tangível e poderosa. O retrato físico de Vénus é de contornos
mais nítidos que o de Maria ou o de Inês de Castro; o retrato psicológico de
Baco é mais matizado que o do Gama. Os deuses têm, por vezes, como personagens,
maior densidade que os humanos. Por exemplo, o Gama, figura obcecada, fica-se
no sentido de obediência às distantes ordens de Dom Manuel, transformando-se
num capitão cumpridor, não se deixando desviar por nenhuma curiosidade e tendendo
para um estatismo pouco adequado a um comandante em chefe e ao desenvolvimento
da ação. Baco, ao invés, é vivo, contraditório, sempre em movimento físico e
anímico. São, pois, os deuses quem verdadeiramente dinamiza a ação e geram o interesse
narrativo da epopeia: lutam e fazem dos homens instrumentos da sua luta e
ambição. O móbil da luta de Baco é o interesse pessoal, tal como o de Vénus, a
deusa aguerrida, como decorre claramente da estância 34 do canto I:
Estas causas moviam Citereia, /E mais, porque das
Parcas claro entende /Que há de ser celebrada a clara Deia /Onde a gente
belígera se estende. /Assi que, um, pela infâmia que arreceia, /E outro, pelas
honras que pretende, /Debatem, e na porfia permanecem; /A qualquer seus amigos
favorecem.
Os navegadores portugueses, em vez de protagonistas
da luta, surgem como objeto das lutas que os ultrapassam. Vénus luta por eles, porque
os considera aliados e fautores da fama e glória da Deusa; Baco hostiliza-os
ativamente, até pela traição e dissimulação, porque se sente ameaçado pela
desonra infâmia que eles lhe provocarão. Vénus quer ser sempre amada e adorada,
pelo que aproveita o fado dos portugueses como fator dessa adoração. Obviamente
não o diz, antes justifica a sua proteção aos lusitanos, aduzindo que lhe
recordam os romanos, até pela língua, que parece a latina pouco alterada. Mas
tal elogio e afeição não são o seu escopo, mas um pretexto para justificar a
sua atitude, não são a sua verdadeira e fundamental razão (IX,38,1-4).
Por sua vez, Baco não quer deixar de ser adorado na
Índia (região que, nos termos da lenda, tomou e submeteu),
pelo que luta, por todos os meios ao seu alcance, contra os novos potenciais
dominadores que o condenarão ao esquecimento. Ambas as divindades em causa conhecem
o desfecho dos acontecimentos, porque a lei do Destino caprichoso é inexorável
a ponto de nem o Padre Júpiter a poder revogar ou alterar (I, 28,1-2). Vénus sabe que os portugueses levarão a melhor e
contribui para que a viagem decorra com o mínimo de incómodo. Baco também o
sabe e sabe que da irremediável e irreversível derrota que sofrerá, mas, em vez
de abdicar da manutenção do seu status no Oriente, aceitando a lei do
Fado, luta constantemente, procurando vencer a guerra que sente perdida. O
desafio de Baco ao Destino configura a hýbris da tragédia vindo a travar o ágnon,
acabando por se aproximar das vítimas que sofrem a catástrofe, quando, após a
peripécia, o látego do destino se abate sobre o pretenso herói. Baco é uma
personagem sem esperança alicerçada na razão, pelo que, o seu descontrolo é
demencial, o que o torna uma figura que tanto desperta repulsa como compaixão (éleos), enquanto Vénus aparece como uma figura atraente,
simpática, mas não mobilizadora para quem a contemple. A deusa do amor e da
beleza é sedutora e utiliza, com saber e astúcia, o seu poder sedutor; Baco,
por seu turno, é também sabedor e astuto, mas o peso da derrota anunciada e não
aceite dá-lhe uma dimensão patética (páthos), contrastante com a leveza de Vénus. Tais
situações ficam ilustradas com as cenas das lágrimas como instrumento de
súplica e dissuasão. Assim, o choro sedutor de Vénus ante Júpiter não surpreende.
As lágrimas, embora convençam e comovam Júpiter, despertam-lhe, sobretudo, o
ardor erótico (II,42,5-8). Já
as lágrimas de Baco, coroando um quadro de encenação, têm a força expressiva
que as de Vénus não têm, aproximando-se do comovente e convincente “medonho
choro” do Adamastor (V, 60), uma
das figuras mais dramáticas de Os Lusíadas, e remetem-nos para as várias
cenas de lágrimas, mormente a da partida das naus, quando nos aparecem nas
tocantes figuras da mãe desamparada e da jovem esposa inconsolável (IV, 89-92). Vénus chora “de mimosa”, por não estar a correr como
desejava a empresa que sabe que vai ser coroada de êxito; e Baco chora de
desespero, por saber que, mesmo com todas as artimanhas utilizadas e a utilizar
e mesmo com a ajuda dos deuses marinhos, não vencerá:
«E
por isso do Olimpo já fugi, /Buscando algum remédio a meus pesares, /Por ver o
preço que no Céu perdi, /e por dita acharei nos vossos mares.» /Mais quis
dizer, e não passou daqui, /Porque as lágrimas já, correndo a pares, /Lhe
saltaram dos olhos, com que logo /Se acendem as Deidades d’água em fogo. (VI, 34).
É sobre este deus invejoso, rebelde, enlouquecido,
com o desconcerto e a birra dum adolescente, que se abate a lei do Destino; e a
rejeição dessa lei inexorável não o torna particularmente repulsivo. Ele não é
apenas o deus “odioso”; é o lutador, condenado à má fortuna, a que o poeta também
não escapou. Além disso, é necessário ao interesse da ação o papel negativo
deste deus, sobre quem se abate a acusação de inveja da parte de Marte, o
grande aliado de Vénus, por quem andara outrora perdido de amores (amores e guerra costumam ser bons aliados). Sem
as suas artimanhas não havia interesse narrativo, porque o cumprimento das leis
dum destino favorável aos portugueses não cria, por si, conflito nem drama. Por
outro lado, o deus da vinha e do vinho, das festarolas e orgias, essencial ao
progresso da ação, é conveniente para o reforço valorativo da ação dos
portugueses, pois, se estes têm valor, ele provém da capacidade de lutar contra
as adversidades, sob a tutela de Vénus. As importantes intervenções de Vénus não
contribuem para realçar o valor dos portugueses, que são seus protegidos, mas
para relevar o valor da deusa e das suas cooperadoras, ao passo que Baco, sem o
pretender, releva o valor dos nautas lusitanos. A deia intervém depois do divo,
que toma a iniciativa da ação, enquanto Vénus se limita a reagir.
E Baco tem um outro papel fundamental: o da visão
do outro lado da moeda do comportamento dos portugueses. O ponto de vista desta
personagem quanto às ações e caráter dos lusos é muito negativo. Os lusitanos
são, na sua ótica, ladrões e assassinos. É óbvio que a focalização de Camões-narrador
aponta num outro sentido, mas a perspetiva da personagem e a do narrador não se
afastam de maneira total. Por exemplo, na cena da escaramuça na ilha de
Moçambique, Baco, disfarçado de velho Mouro sábio, estimado pelo Xeque local,
dirige-se-lhe nestes termos:
–
E sabe mais (lhe diz), como entendido /Tenho destes Cristãos sanguinolentos, /Que
quási todo o mar têm destruído /Com roubos, com incêndios violentos; /E trazem
já de longe engano urdido /Contra nós; e que todos seus intentos /São pera nos
matarem e roubarem, /E mulheres e filhos cativarem. (I, 79).
E, na estância 89 do canto I, o narrador relata a
escaramuça entre Portugueses e Mouros:
Não se contenta a gente Portuguesa, /Mas, seguindo
a vitória, estrui e mata; /A povoação sem muro e sem defesa /Esbombardeia,
acende e desbarata. /Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa, /Que bem cuidou
comprá-la mais barata; /Já blasfema da guerra, e maldizia /O velho inerte e a
mãe que o filho cria.
Baco não estava totalmente errado quando apontava a
índole sanguinolenta destes cristãos. O interesse egoísta de Baco (filho de Luso) desmonta a dita generosidade dos novos senhores,
que vêm de longe, com um interesse também egoísta. E Camões acusa, por vezes,
os portugueses de mesquinhos, egoístas e mesmo traidores, alguns algumas vezes.
E o exaustivo levantamento das inúmeras batalhas e o assassinato de Inês de Castro,
por pressão do povo e conselho régio, também revelam o caráter sanguinário dos
portugueses, que não se inibem de fazer a guerra aos inimigos. Baco recusa ser
vítima do pior dos males – o esquecimento – que na cosmovisão camoniana é uma
condenação sem remédio e letal.
Depois, a luta de Baco tem uma dimensão solidária e
comunitária, pois o deus pretende assumir-se como defensor das terras que estão
a ser conquistadas. Enquanto Vénus protege o invasor, Baco protege o invadido.
Por isso, a sua denúncia aproxima-se dos impropérios do Velho do Restelo e das
censuras do poeta. Como diz Vasco Graça Moura, “Baco...é fundamentalmente a
voz que desfia o requisitório das populações do oriente atingidas por quase um
século de expansão cobiçosa e de não muito fundos escrúpulos”. É, pois,
também uma voz humanista a juntar-se àquelas que denunciam a ganância, a busca
da fama, a perda inexorável de vidas.
Como
ficou entredito, a posição de Camões não é inquestionavelmente encomiástica dos
portugueses. O vate não pensa que os portugueses sejam ladrões e assassinos. Quem
pensa isso é Baco, personagem construída e modelada pelo poeta; porém, os
portugueses não são todos e sempre os heróis grandiosos enunciados na Proposição, na Invocação e na Dedicatória
do canto I. Anote-se que o herói é coletivo (o povo português), mas aristocrático (“
peito ilustre lusitano”).
O herói não é a arraia-miúda enaltecida por Fernão Lopes, mas o peito (os
nobres ou equiparados)
ilustre (os
esforçados ou que merecem a fama).
E mesmo estes poderiam ter cultivado as letras como faziam os antigos, que
tinham numa das mãos a espada e na outra a pena, como poderiam não se deixar
levar pelo dinheiro que tudo subverte e manter sempre a dignidade e a honradez.
É certo
que, no final do canto V, o Gama termina o longo discurso em que narra ao rei
de Melinde a história de Portugal, enquadrada no espaço europeu e africano rumo
à Asia, respondendo assim ao pedido que o rei lhe formulara na estância 109 do
canto II “Mas antes, valeroso
Capitão,/Nos conta...”. E, ao
findar o relato, insiste no heroísmo dos portugueses, e diz no final da
estância 89:
A
verdade que eu conto, nua e pura, /Vence toda a grandíloca escritura.
Não
obstante, ao retomar o comando do discurso narrativo, Camões-narrador atenua a
grandiosidade hiperbólica do relato de Vasco da Gama:
“Trabalha por mostrar Vasco da Gama /Que essas navegações que o mundo
canta /Não merecem tamanha glória e fama /Como a sua, que o Céu e a Terra
espanta. /Sim; mas...” (V, 94, 1-5).
Na
verdade, segundo o épico, “o valeroso capitão” não merece o esforço do poeta,
porque, à semelhança de outros portugueses ilustres, é um herói incompleto (V,97-99). A menção de Eneias, Aquiles,
Júlio César, Alexandre, Homero e
Virgílio, põe a reflexão do poeta sob o signo da dúvida e da desilusão. Camões
evolui ao longo do poema, parecendo que o envelhecimento lhe traz a desilusão. O
otimista do início do canto I não é o mesmo que, desapontado, emerge no final
do canto V. Começando pela superação das figuras heroicas de Alexandre e
Trajano por parte dos portugueses, nos dois últimos versos do poema, são ainda
mencionados Alexandre e Aquiles, como se o poeta, numa atitude de incentivo e
súplica a Dom Sebastião, reconhecesse que não tinha ainda heróis reais capazes
de suplantar os ficcionados. Como diz Eduardo Lourenço “Procura-se o herói da epopeia e não se
encontra ou encontra-se e fica-se desiludido pelo seu perfil de figurante de
papelão”. Assim, parece que os
verdadeiros aliados do poeta são Vénus, Baco, as Ninfas (do Tejo e do Mondego), Calíope e todas as
divindades construídas pelo poeta, que vêm a contribuir para propiciar ao
escritor/narrador e ao leitor/ouvinte o poder e o prazer da poesia. Com efeito,
são eles que não permitem que se alague cedo “o fraco batel”
(VII,78). E, quando, no canto X, estância 82, Tétis diz a
Gama “Só pera fazer versos deleitosos/servimos…”,
fica desmascarado o papel da mitologia. Estes deuses e deusas, as musas e as
ninfas só têm existência em poema, não na realidade viva. E é sobretudo a
beleza dos versos deleitosos (em si
mesmos e nos efeitos que produzem no leitor/ouvinte), que
faz d’ Os Lusíadas um texto atual, vivo e cativante. Mas a mitologia
serve, para lá dos versos deleitosos, para espelhar as lutas pela fama, poder e
haveres que movem os humanos por interesse e inveja, medo de perder privilégios
e status, objetivos tantas vezes disfarçados de desapego, solidariedade,
altruísmo e bairrismo.
Humanizando os deuses e despindo-os da aura da
divindade, cria-se o vazio no Olimpo, para que os humanos que o merecem “por
obras valerosas” ocupem o lugar dos deuses.
(vd A. Manuel Ferreira, Duas
personagens de Os Lusíadas: Vénus e
Baco – Universidade de Aveiro, in II
Colóquio Clássico, Actas)
***
Assim, as
estrofes transcritas para o enunciado da referida prova de exame, que se podem
ler abaixo, dão-nos conta da argumentação de Baco para convencer Neptuno,
Oceano e os outros deuses marinhos a serem seus aliados, constante do discurso
do deus inimigo dos lusos, proferido logo que os componentes do conselho marinho
se acondicionaram nos seus lugares (estância 26) após o rodopio gerado pela convocação
badalada por Tritão. Na verdade, muito parecido com tantos humanos, Baco (estâncias
27 e 28) adula
Neptuno a quem denomina de Príncipe, Oceano e os outros deuses marinhos, quer
pela vastidão dos seus domínios, quer pelo estilo firme com que exercem habitualmente
o poder (Com
efeito Neptuno
e o grande Oceano dominam os mares e impedem que os humanos ultrapassem os
limites por eles definidos e impostos; os demais deuses marinhos vingam-se de
qualquer humano que se atreva a atravessar o seu território: era o caso do
Adamastor);
a seguir, recorrendo
à interrogação retórica, denuncia-lhes o descuido face ao atrevimento dos
portugueses e a brandura com que os tratam, revelando distração, subvalorização
destes invasores e fraqueza supina. Assim, esfumar-se-á o poder dos deuses e
prevalecerá a ousadia dos lusos. E, obtida a permissão de Júpiter e esvaziado o
poder dos deuses do mar, cria-se espaço propício à mitificação do herói, ou
seja, a mítica divinização do peito ilustre, visível: na valorização da
coragem/atrevimento dos Portugueses, capazes de desafiar os deuses – “Vistes que, com grandíssima ousadia, /Foram
já cometer o Céu supremo” (vv. 25-26); no relevo conferido à
capacidade de superar a condição humana, patente no facto de os Portugueses se
aventurarem pelo mar desconhecido – “Vistes
aquela insana fantasia /De tentarem o mar com vela e remo” (vv.
27-28); e, no
reconhecimento da superioridade dos Portugueses em relação aos outros homens,
patente no receio de Baco de que estes se convertam em Deuses e os Deuses em
humanos – “temo /Que do Mar e do Céu, em
poucos anos, /Venham Deuses a ser, e nós, humanos” (vv.
30-32).
Mas foram
os deuses que possibilitaram tais gestas. Disse Marte:
“E
tu, Padre de grande fortaleza, /Da determinação que tens tomada /Não tornes por
detrás (…). /Mercúrio, pois excede em ligeireza /Ao vento leve e à seta bem
talhada, Lhe vá mostrar a terra onde se informe Da Índia, e onde a gente se
reforme.” /Como isto disse, o Padre poderoso, /A cabeça inclinando, consentiu /No
que disse Mavorte valeroso /E néctar sobre todos esparziu. (I,
60-61).
E (…)Thétis,
indinada, lhe bradou: /Neptuno sabe bem o
que mandou! (VI, 36).
***
Eis as
estrofes da prova de exame, que ilustram quanto foi dito:
26
|
Estando
sossegado já o tumulto
Dos
Deuses e de seus recebimentos,
Começa
a descobrir do peito oculto
A
causa o Tioneu de seus tormentos;
Um
pouco carregando-se no vulto,
Dando
mostra de grandes sentimentos,
Só
por dar aos de Luso triste morte
Co
ferro alheio, fala desta sorte:
|
28
|
«E
vós, Deuses do Mar, que não sofreis
Injúria
algũa em vosso reino grande,
Que
com castigo igual vos não vingueis
De
quem quer que por ele corra e ande:
Que
descuido foi este em que viveis?
Quem
pode ser que tanto vos abrande
Os
peitos, com razão endurecidos
Contra
os humanos, fracos e atrevidos?
|
|
27
|
—
«Príncipe, que de juro senhoreias,
Dum
Polo ao outro Polo, o mar irado,
Tu,
que as gentes da Terra toda enfreias,
Que
não passem o termo limitado;
E
tu, padre Oceano, que rodeias
O
Mundo universal e o tens cercado,
E
com justo decreto assi permites
Que
dentro vivam só de seus limites;
|
29
|
«Vistes
que, com grandíssima ousadia,
Foram
já cometer o Céu supremo;
Vistes
aquela insana fantasia
De
tentarem o mar com vela e remo;
Vistes,
e ainda vemos cada dia,
Soberbas
e insolências tais, que temo
Que
do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham
Deuses a ser, e nós, humanos.
|
(VI,26-29)
|
Deuses descem
abaixo dos homens e homens ocupam o lugar de deuses!
2019.07.19 –
Louro de Carvalho
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