É o primeiro verso dum poema de
Fernando Pessoa ortónimo, escolhido para análise na parte A do grupo I da Prova
de Português (cód. 639)
do 12.º ano, 1.ª fase, e que se transcreve e se comenta na esteira do
pretendido pelos organizadores da prova, embora, por vezes, com um certo sentido
crítico-interpretativo:
Bem sei que há ilhas lá ao sul de
tudo
Onde há paisagens que não pode
haver.
Tão belas que são como que o
veludo
Do tecido que o mundo pode ser.
Bem sei. Vegetações olhando o mar,
Coral, encostas, tudo o que é a
vida
Tornado amor e luz, o que o sonhar
Dá à imaginação anoitecida.
Bem sei. Vejo isso tudo. O mesmo
vento
Que ali agita os ramos em torpor
Passa de leve por meu pensamento
E o pensamento julga que é amor.
Sei, sim, é belo, é longe, é
impossível,
Existe, dorme, tem a cor e o fim,
E, ainda que não haja, é tão
visível
Que é uma parte natural de mim.
Sei tudo, sei, sei tudo. E sei
também
Que não é lá que há isso que lá
está.
Sei qual é a luz que essa paisagem
tem
E qual a rota que nos leva lá.
Fernando Pessoa, Poesia do Eu,
edição de Richard Zenith, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, pp.
314-315.
***
Na
questão 1, insinua-se que o poema (de 5 quadras com alternância entre rimas agudas e rimas graves) se
pode entender como dividido em duas partes ou marcado por dois momentos, o que
me parece bem. Com efeito, as
primeiras 3 estrofes, embora sujeitas ao fio condutor pessoal do emissor
lírico, expresso na forma verbal “sei”
(1.ª
pessoa do singular do presente do indicativo, com igual peso das rimas pobres e
das ricas), vertida
aqui na convicta e convincente anáfora corporizada na repetição do segmento
textual “bem sei”, gravitam em torno dos espaços que formam, não
exaustivamente, a configuração do lugar imaginado pelo poeta.
Obviamente
que a idealização deste lugar, que não existe, é mero fruto da imaginação que
se alimenta do jogo de ideias resultantes da avidez do desejo de mais e melhor
da parte do sujeito poético, inconformado com o que possui. Esta operação
mental expressa-se, na 1.ª estrofe, pela metáfora hiperbólica e oximórica de “ilhas lá ao sul de tudo” – não pode
haver sul ao fundo de tudo, mas apenas em relação a um determinado ponto –;
pela asserção autocontradicente da existência de “paisagens que não pode haver”; pelo juízo altamente valorativo dessas
paisagens esboçadas pela “imaginação
anoitecida”, expresso pelo grupo adjetival “tão belas” a postular a oração subordinada adverbial consecutiva com
que ficam enganchadas a oração subordinada adverbial comparativa e a subordinada
adjetiva relativa restritiva; pela comparação das paisagens com o veludo; pela
metáfora veludo-mundo, que torna extensiva a todo o mundo a textura que enforma
aquela paisagem idealizada pela imaginação poética fértil e extravasante.
Enfim,
o poeta triturado pelas andanças da vida, descontente da sua sorte familiar,
sofrido pela itinerância, sem a profissão almejada, sem sucesso no amor,
abandonado dos amigos e refugiado no álcool, encontra pascigo no produto da
imaginação, que lhe dá ilusoriamente, neste momento poético, a macieza do
veludo, pespegada nas “vegetações”
viradas para o mar, no coral, nas encostas, da 2.ª estrofe – acumulação de
elementos sintetizados naquele pronome indefinido, feito quantificador
universal “tudo”, palavra-chave da
estrofe e que os faz desembocar metaforicamente na “vida”, no “amor”, na “luz”, no “sonho”. Mais: tudo isto que o poeta evoca a sugerir descrição
valorativa é dádiva do sonho à imaginação anoitecida. Será a noite romântica em
que o poeta se refugia para se encontrar consigo, sofrer por via do muito
imaginar e sentir ou a sensação de que a vida lhe está a fugir debaixo dos pés
ou a desviá-lo do abismo em que teima precipitar-se?
Lá
está. A 3.ª estrofe dá-nos já não só a imaginação do lugar idealizado, mas a
sua visualização concreta (“isso”) e totalizante (“tudo”), “vejo isso tudo”, na linha do fingimento
como técnica poética, ou seja, o pensamento como ficção, tornando palpável o
imaginado, tal como faz a criança, que joga ao faz-de-conta. Neste sentido, o
poeta vê “o mesmo vento” das
vegetações, do coral ou do mar, o mesmo vento que agita os ramos das árvores a
passar de leve (note-se a
antítese: “agita os ramos em torpor”,
mas “passa de leve” pelo pensamento
do poeta). E, ainda, no jogo do faz-de-conta, surge a forte subjetividade da
metáfora avaliativa do pensamento-amor – um instante de enlevo amoroso, talvez
a compensar a falta de correspondência ao amor que sente por alguém, o que o
leva a refugiar-se no êxtase poético.
Nas outras
duas estrofes, há o reforço do empenhamento discursivo do “eu” poético na afirmação da beleza do que a sua imaginação observa
plasmado no emprego da forma verbal “sei”,
mas agora a iniciar o verso, seguida elo conector de afirmação “sim”. A par disso, o sujeito poético tem
a consciência clara de que o espaço imaginado é tão distante que se lhe torna
inacessível. Porém, faz de conta que existe. Atente-se no animismo “dorme” e no visualismo da “cor” e no caráter finito (“fim”)
daquele espaço idealizado (contrasta
com a idealização), que resultam na confissão do poeta de que, mesmo
que tal não exista, é uma parte de si. Teremos aqui a fragmentação do “eu” ou a sua aniquilação, dado que o “eu” se identifica com a não existência? Que
poder do sonho, da desilusão da vida ou a da vontade de viver pela antítese da
vida!
Se o “sei” do verso 13 abre para as variantes
da anáfora das primeiras três estrofes, o primeiro verso da última (v. 17), confirma a anáfora a que junta a diácope a
iteração da afirmação “sei” a propósito
do “tudo” que o poeta sabe, porque o
imaginou e sonhou. E a anáfora mete-se pelo meio do verso para enformar o
oxímoro “não é lá que há isso que lá está”, que insinua a transcendência
desse espaço. Ou seja, o poeta sabe que não pode aceder a ele, mas sabe da luz
que dá origem aquela paisagem e sabe o caminho para a ceder a essa luz. Enfim,
no meio da desilusão, tédio e desamparo, o poeta tem a esperança que lhe dá azo
à resignação a esta vida e o incita a procurar outra bem melhor. E ele o sabe (vd
v. 19, iniciado por “sei”, último lanço da anáfora).
***
Os
organizadores da prova pretendiam que o examinando, considerando que, “nas três primeiras estrofes, o
sujeito poético descreve um lugar idealizado”, apresentasse duas caraterísticas
desse espaço exemplificando cada uma delas com uma transcrição pertinente.
Já insinuei que o predito espaço,
ao invés de fruto da idealização, enquanto lugar a atingir, não passa de
produto da imaginação de quem sonha (ou seja, dom do sonho à
imaginação vespertina).
Agora devo dizer que o lugar não é descrito, mas apenas pincelado por um
conjunto de elementos, que poderiam servir de subsídios para uma descrição que
vão acumulando até desembocarem no “tudo”
que apontei e de que dimanam, não em perspetiva linear, uma série de outros
elementos que a acumulação desmultiplica. E não acredito que os professores de
Português não tenham ensinado aos alunos em escola o conceito e as técnicas da
descrição! Posto isto, devo dizer que, se os critérios de correção não foram
alterados ao longo do processo de avaliação da prestação na prova, as hipóteses
de resposta me parecem decorrentes da boa leitura do poema, sendo importante
atender que, além dos tópicos avançados, devem ser considerados outros
igualmente relevantes que o aluno apresente. São elas: espaço de sonho/espaço da imaginação – “Onde há paisagens que não
pode haver” (v. 2)/
“Sei, sim, é belo, é longe, é impossível” (v. 13)/ “E, ainda que não haja” (v.
15); espaço belo, suave e acolhedor – “Tão
belas que são como que o veludo” (v. 3); espaço perspetivado como promessa de felicidade – “tudo o que é a
vida / Tornado amor e luz” (vv. 6-7); e espaço propiciador da ilusão do amor – “Passa de leve por meu
pensamento / E o pensamento julga que é amor” (vv. 11-12).
Não obstante, tendo sido
mencionadas as três primeiras estrofes, devia ter sido explicitamente indicado
que o suporte da resposta à questão podia ser encontrado também nas outras.
Depois,
era pedido
que o aluno explicasse “o conteúdo dos versos 3 e 4” e o relacionasse com “a
temática pessoana em evidência no poema”. E as sugestões de resposta são: a “comparação entre a beleza das ilhas e o “veludo”, para sugerir a suavidade/a
felicidade que o mundo pode proporcionar, se existir harmonia/se a tessitura dos
seus elementos for harmoniosa; e o enquadramento
na temática do sonho e da realidade, na medida em que as ilhas imaginadas
permitem ao sujeito poético vislumbrar um mundo de plenitude a que, no entanto,
só pode aceder através do sonho.
Se nada tenho a apontar em
relação à 2.ª, a meu ver, a 1.ª sugestão não mostra claramente a ligação à
temática pessoana, a menos que se considerem alguns aspetos estilísticos, como
o arrojo da comparação entre as ilhas e o veludo, pinçando a sua beleza que se
faz coincidir, de certo modo como a macieza, que dá comodidade e afago a quem
sente a aspereza da vida, em compensação da inquietação, da angústia existencial, da solidão interior, da melancolia da
resignação, ou do tédio, da náusea, do desencontro dos outros, do desamparo, e
da nostalgia do bem perdido e do mundo fantástico da infância feliz – aspetos
vivenciais e de introspeção-extroversão ultrapassados poeticamente no enlevo da
beleza visualizada no sonho. Por
outro lado, podia ter-se explorado a musicalidade e o ritmo dos versos, como
marca da reminiscência da felicidade vivida na infância e como amostra da transfiguração da emoção pela razão.
Por fim, era pedido ao estudante
que explicitasse dois sentidos das anáforas e das suas variantes (vv.
1, 5, 9, 13, 17 e 19),
tendo em conta o desenvolvimento temático do poema. E as sugestões de abordagem,
a que nada oponho, são: a afirmação da
consciência de que o espaço descrito
existe apenas no sonho; a afirmação da
certeza de que o espaço descrito
é um espaço de felicidade, mas também de que, sendo fruto do sonho, é
inacessível; e a afirmação da consciência
de que o sonho é inerente à essência do sujeito poético.
Repito como plausível que os
organizadores da prova tenham acautelado a consideração tópicos relevantes,
além dos sugeridos, o que mostra que não têm a arrogância de quem sabe tudo e
que reconhecem a capacidade de o aluno pensar e encontrar meios de análise.
No entanto, essa capacidade de
pensar, de analisar e sintetizar era mais visivelmente solicitada nas velhas
provas de Português A. Por exemplo, o
grupo I, perante o poema “Visita”, de
Torga, pedia: “Elabore um comentário ao poema que integre o tratamento dos
seguintes tópicos: traços caraterizadores
do sujeito poético; importância das referências ao ato de ver;
aspetos formais e recursos estilísticos
relevantes; valor simbólico de “mar”.
O grupo II solicitava a redação de um texto expositivo-argumentativo bem
estruturado, de 200 a 300 palavras, considerando e comentando o juízo crítico
apresentado numa frase apresentada a propósito de Cesário Verde. E o grupo III
mandava resumir um texto crítico sobre “Os
Maias”, estipulando um mínimo e um máximo de palavras a utilizar.
Ora, atualmente a prova vem com 3
grupos, em que o 1.º tem dois textos (partes A e B) com três questões cada um e uma
questão (parte
C) que serve de
rampa de lançamento para uma exposição sobre uma obra do programa. A seguir,
vem um grupo II com um texto não literário armadilhado com 7 questões (de
interpretação textual, estilística e gramática). E, por fim, um grupo III, com a obrigação da
elaboração dum texto de opinião bem estruturado sobre o tema proposto, com um mínimo
de 200 palavras e um máximo de 350, com dois itens de exigência. Assim, o tempo
de 2 horas pode não ser suficiente para o aluno médio pensar, ponderar. Dizem
que as provas são pobres. Talvez o sejam na prestação do aluno. Mas penso que o
enunciado é demasiado extenso. Dizer que é fácil é enganoso. Eu queria ver os
organizadores a fazer a prova em duas horas…
***
Por fim, em jeito de justificação para o exposto
acerca do texto pessoano, deixo uma resenha das linhas da tessitura da poesia
pessoana ortonímica.
Uma das suas linhas temáticas é a nostalgia da infância, que irrompe como consequência do desejo de
regresso do poeta aos tempos da infância feliz e inocente – época longínqua do
bem (da unidade,
da inconsciência e da verdade) –, sem o
drama da dor de pensar, mas sinónimo de segurança, pureza e felicidade. E o
poeta evoca esses tempos através da memória que lhe traz angústia e solidão, ao
aperceber-se de que essa época não é mais que um paraíso longínquo, perdido na
memória do tempo. E, negando-lhe a felicidade, o Presente funciona como o marco
de sublimação do Passado, abrindo passagem à nostalgia dessa infância lembrada
e esquecida.
Outra linha temática é a dor de pensar, com a dualidade da consciência-inconsciência e a
problemática do sentir-pensar. O poeta, ser consciente, sente que a extensão
dos seus sentimentos é diminuída pela vastidão do pensamento a corromper a
inconsciência inerente à felicidade de viver, pelo que a consciência lhe surge
como fardo e fatalidade que desencadeiam no poeta o estado de desencanto e
impotência face ao absurdo da existência, já que, por um lado, não se liberta
do peso da reflexão e, por outro, não alcança a alegre inconsciência de outros,
mantendo-se intacta a sua própria consciência. Simplesmente paradoxal, pois
consciente de que nunca será consciente, sofre a dor de pensar e paga caro a
extrema lucidez que possui.
Por sua vez, o contraste sonho/realidade é tema que perpassa a poesia retratando a
multiplicidade do “eu” introspetivo, inquieto e desdobrável noutros seres,
despersonalizando-se. Marcado pelo fluir contínuo do tempo, Pessoa sente-se
separado de si, distante do passado e do futuro, restando-lhe o ser que é no
instante que passa e não o que existe na duração do tempo. Assim, o poeta
exprime um misto de inquietação e absurdo ante a divisão do ser que o faz
sentir-se estranho a si mesmo, fragmentado entre o real e o ideal e acabando por
ser um ser perdido no labirinto de si, não encontrando o fio que o levaria à
saída e ao equilíbrio interior.
E também o fingimento
poético constitui uma das dialéticas desta poesia, em que o poeta sofre uma
forte tensão conducente ao antissentimentalismo e à intelectualização da
emoção. Para o emissor poético, fingir é inventar, elaborar conceitos que
exprimem emoções, gerando nova conceção da arte, antirromântica,
despersonalizada, expressão de sensações intelectualizadas, onde ocupa o papel
principal a imaginação e a arte é criada a partir de inspiração individual.
Pessoa não transmite a emoção pura e simples, mas submete-a sempre ao exame da
inteligência e da razão poética, deixando que o seu cadinho a racionalize,
desviando-se do sentimentalismo tradicional. Assim, a arte nasce da realidade e
consiste no fingimento dela realidade, ou seja, na sua intelectualização
materializada em texto. Neste âmbito, a composição poética nunca ocorre no
momento da emoção, mas no momento da recordação dessa emoção.
Em suma, Pessoa
ortónimo desenvolve as seguintes linhas de
sentido: procura da
decifração do enigma do ser; fragmentação do eu e perda de identidade; pendor filosófico; obsessão da análise, dor de pensar e lucidez; fuga da realidade para o
sonho; incapacidade de viver a vida; inquietação, angústia existencial, solidão
interior, melancolia, resignação; tédio, náusea, desencontro dos outros e
desamparo; nostalgia do bem perdido e do mundo fantástico da infância; fingimento poético; e transfiguração da emoção pela
razão.
A nível do estilo,
releva-se a preferência pela métrica curta (5 ou 7 sílabas – redondilha menor ou
maior, respetivamente); a influência do lirismo lusitano (reminiscência
da cantiga de embalar, toadas do romanceiro, conto de fadas); gosto pelo
popular (uso
frequente da quadra/quintinha; rima cruzada); linguagem simples,
espontânea, mas sóbria; criação de metáforas inesperadas, uso frequente do
paradoxo; versos leves
com recurso frequente à interrogação, à exclamação, às reticências.
***
Enfim, um poeta
leve, mas complexo.
2019.07.01 – Louro de
Carvalho
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