segunda-feira, 1 de julho de 2019

Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo


É o primeiro verso dum poema de Fernando Pessoa ortónimo, escolhido para análise na parte A do grupo I da Prova de Português (cód. 639) do 12.º ano, 1.ª fase, e que se transcreve e se comenta na esteira do pretendido pelos organizadores da prova, embora, por vezes, com um certo sentido crítico-interpretativo:

Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo
Onde há paisagens que não pode haver.
Tão belas que são como que o veludo
Do tecido que o mundo pode ser.

Bem sei. Vegetações olhando o mar,
Coral, encostas, tudo o que é a vida
Tornado amor e luz, o que o sonhar
Dá à imaginação anoitecida.

Bem sei. Vejo isso tudo. O mesmo vento
Que ali agita os ramos em torpor
Passa de leve por meu pensamento
E o pensamento julga que é amor.

Sei, sim, é belo, é longe, é impossível,
Existe, dorme, tem a cor e o fim,
E, ainda que não haja, é tão visível
Que é uma parte natural de mim.

Sei tudo, sei, sei tudo. E sei também
Que não é lá que há isso que lá está.
Sei qual é a luz que essa paisagem tem
E qual a rota que nos leva lá.

Fernando Pessoa, Poesia do Eu, edição de Richard Zenith, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, pp. 314-315.
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Na questão 1, insinua-se que o poema (de 5 quadras com alternância entre rimas agudas e rimas graves) se pode entender como dividido em duas partes ou marcado por dois momentos, o que me parece bem. Com efeito, as primeiras 3 estrofes, embora sujeitas ao fio condutor pessoal do emissor lírico, expresso na forma verbal “sei” (1.ª pessoa do singular do presente do indicativo, com igual peso das rimas pobres e das ricas), vertida aqui na convicta e convincente anáfora corporizada na repetição do segmento textual “bem sei”, gravitam em torno dos espaços que formam, não exaustivamente, a configuração do lugar imaginado pelo poeta.  
Obviamente que a idealização deste lugar, que não existe, é mero fruto da imaginação que se alimenta do jogo de ideias resultantes da avidez do desejo de mais e melhor da parte do sujeito poético, inconformado com o que possui. Esta operação mental expressa-se, na 1.ª estrofe, pela metáfora hiperbólica e oximórica de “ilhas lá ao sul de tudo” – não pode haver sul ao fundo de tudo, mas apenas em relação a um determinado ponto –; pela asserção autocontradicente da existência de “paisagens que não pode haver”; pelo juízo altamente valorativo dessas paisagens esboçadas pela “imaginação anoitecida”, expresso pelo grupo adjetival “tão belas” a postular a oração subordinada adverbial consecutiva com que ficam enganchadas a oração subordinada adverbial comparativa e a subordinada adjetiva relativa restritiva; pela comparação das paisagens com o veludo; pela metáfora veludo-mundo, que torna extensiva a todo o mundo a textura que enforma aquela paisagem idealizada pela imaginação poética fértil e extravasante.
Enfim, o poeta triturado pelas andanças da vida, descontente da sua sorte familiar, sofrido pela itinerância, sem a profissão almejada, sem sucesso no amor, abandonado dos amigos e refugiado no álcool, encontra pascigo no produto da imaginação, que lhe dá ilusoriamente, neste momento poético, a macieza do veludo, pespegada nas “vegetações” viradas para o mar, no coral, nas encostas, da 2.ª estrofe – acumulação de elementos sintetizados naquele pronome indefinido, feito quantificador universal “tudo”, palavra-chave da estrofe e que os faz desembocar metaforicamente na “vida”, no “amor”, na “luz”, no “sonho”. Mais: tudo isto que o poeta evoca a sugerir descrição valorativa é dádiva do sonho à imaginação anoitecida. Será a noite romântica em que o poeta se refugia para se encontrar consigo, sofrer por via do muito imaginar e sentir ou a sensação de que a vida lhe está a fugir debaixo dos pés ou a desviá-lo do abismo em que teima precipitar-se?
Lá está. A 3.ª estrofe dá-nos já não só a imaginação do lugar idealizado, mas a sua visualização concreta (isso) e totalizante (tudo), “vejo isso tudo”, na linha do fingimento como técnica poética, ou seja, o pensamento como ficção, tornando palpável o imaginado, tal como faz a criança, que joga ao faz-de-conta. Neste sentido, o poeta vê “o mesmo vento” das vegetações, do coral ou do mar, o mesmo vento que agita os ramos das árvores a passar de leve (note-se a antítese: “agita os ramos em torpor”, mas “passa de leve” pelo pensamento do poeta). E, ainda, no jogo do faz-de-conta, surge a forte subjetividade da metáfora avaliativa do pensamento-amor – um instante de enlevo amoroso, talvez a compensar a falta de correspondência ao amor que sente por alguém, o que o leva a refugiar-se no êxtase poético.
Nas outras duas estrofes, há o reforço do empenhamento discursivo do “eu” poético na afirmação da beleza do que a sua imaginação observa plasmado no emprego da forma verbal “sei”, mas agora a iniciar o verso, seguida elo conector de afirmação “sim”. A par disso, o sujeito poético tem a consciência clara de que o espaço imaginado é tão distante que se lhe torna inacessível. Porém, faz de conta que existe. Atente-se no animismo “dorme” e no visualismo da “cor” e no caráter finito (fim) daquele espaço idealizado (contrasta com a idealização), que resultam na confissão do poeta de que, mesmo que tal não exista, é uma parte de si. Teremos aqui a fragmentação do “eu” ou a sua aniquilação, dado que o “eu” se identifica com a não existência? Que poder do sonho, da desilusão da vida ou a da vontade de viver pela antítese da vida!
Se o “sei” do verso 13 abre para as variantes da anáfora das primeiras três estrofes, o primeiro verso da última (v. 17), confirma a anáfora a que junta a diácope a iteração da afirmação “sei” a propósito do “tudo” que o poeta sabe, porque o imaginou e sonhou. E a anáfora mete-se pelo meio do verso para enformar o oxímoro “não é lá que há isso que lá está”, que insinua a transcendência desse espaço. Ou seja, o poeta sabe que não pode aceder a ele, mas sabe da luz que dá origem aquela paisagem e sabe o caminho para a ceder a essa luz. Enfim, no meio da desilusão, tédio e desamparo, o poeta tem a esperança que lhe dá azo à resignação a esta vida e o incita a procurar outra bem melhor. E ele o sabe (vd v. 19, iniciado por “sei”, último lanço da anáfora).
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Os organizadores da prova pretendiam que o examinando, considerando que, “nas três primeiras estrofes, o sujeito poético descreve um lugar idealizado”, apresentasse duas caraterísticas desse espaço exemplificando cada uma delas com uma transcrição pertinente.
Já insinuei que o predito espaço, ao invés de fruto da idealização, enquanto lugar a atingir, não passa de produto da imaginação de quem sonha (ou seja, dom do sonho à imaginação vespertina). Agora devo dizer que o lugar não é descrito, mas apenas pincelado por um conjunto de elementos, que poderiam servir de subsídios para uma descrição que vão acumulando até desembocarem no “tudo” que apontei e de que dimanam, não em perspetiva linear, uma série de outros elementos que a acumulação desmultiplica. E não acredito que os professores de Português não tenham ensinado aos alunos em escola o conceito e as técnicas da descrição! Posto isto, devo dizer que, se os critérios de correção não foram alterados ao longo do processo de avaliação da prestação na prova, as hipóteses de resposta me parecem decorrentes da boa leitura do poema, sendo importante atender que, além dos tópicos avançados, devem ser considerados outros igualmente relevantes que o aluno apresente. São elas: espaço de sonho/espaço da imaginação – “Onde há paisagens que não pode haver” (v. 2)/ “Sei, sim, é belo, é longe, é impossível” (v. 13)/ “E, ainda que não haja” (v. 15); espaço belo, suave e acolhedor – “Tão belas que são como que o veludo” (v. 3); espaço perspetivado como promessa de felicidade – “tudo o que é a vida / Tornado amor e luz” (vv. 6-7); e espaço propiciador da ilusão do amor – “Passa de leve por meu pensamento / E o pensamento julga que é amor” (vv. 11-12).
Não obstante, tendo sido mencionadas as três primeiras estrofes, devia ter sido explicitamente indicado que o suporte da resposta à questão podia ser encontrado também nas outras. 
Depois, era pedido que o aluno explicasse “o conteúdo dos versos 3 e 4” e o relacionasse com “a temática pessoana em evidência no poema”. E as sugestões de resposta são: a “comparação entre a beleza das ilhas e o veludo”, para sugerir a suavidade/a felicidade que o mundo pode proporcionar, se existir harmonia/se a tessitura dos seus elementos for harmoniosa; e o enquadramento na temática do sonho e da realidade, na medida em que as ilhas imaginadas permitem ao sujeito poético vislumbrar um mundo de plenitude a que, no entanto, só pode aceder através do sonho.
Se nada tenho a apontar em relação à 2.ª, a meu ver, a 1.ª sugestão não mostra claramente a ligação à temática pessoana, a menos que se considerem alguns aspetos estilísticos, como o arrojo da comparação entre as ilhas e o veludo, pinçando a sua beleza que se faz coincidir, de certo modo como a macieza, que dá comodidade e afago a quem sente a aspereza da vida, em compensação da inquietação, da angústia existencial, da solidão interior, da melancolia da resignação, ou do tédio, da náusea, do desencontro dos outros, do desamparo, e da nostalgia do bem perdido e do mundo fantástico da infância feliz – aspetos vivenciais e de introspeção-extroversão ultrapassados poeticamente no enlevo da beleza visualizada no sonho. Por outro lado, podia ter-se explorado a musicalidade e o ritmo dos versos, como marca da reminiscência da felicidade vivida na infância e como amostra da transfiguração da emoção pela razão.           
Por fim, era pedido ao estudante que explicitasse dois sentidos das anáforas e das suas variantes (vv. 1, 5, 9, 13, 17 e 19), tendo em conta o desenvolvimento temático do poema. E as sugestões de abordagem, a que nada oponho, são: a afirmação da consciência de que o espaço descrito existe apenas no sonho; a afirmação da certeza de que o espaço descrito é um espaço de felicidade, mas também de que, sendo fruto do sonho, é inacessível; e a afirmação da consciência de que o sonho é inerente à essência do sujeito poético.
Repito como plausível que os organizadores da prova tenham acautelado a consideração tópicos relevantes, além dos sugeridos, o que mostra que não têm a arrogância de quem sabe tudo e que reconhecem a capacidade de o aluno pensar e encontrar meios de análise.
No entanto, essa capacidade de pensar, de analisar e sintetizar era mais visivelmente solicitada nas velhas provas de Português A. Por exemplo, o grupo I, perante o poema “Visita”, de Torga, pedia: “Elabore um comentário ao poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos: traços caraterizadores do sujeito poético; importância das referências ao ato de ver; aspetos formais e recursos estilísticos relevantes; valor simbólico de “mar”. O grupo II solicitava a redação de um texto expositivo-argumentativo bem estruturado, de 200 a 300 palavras, considerando e comentando o juízo crítico apresentado numa frase apresentada a propósito de Cesário Verde. E o grupo III mandava resumir um texto crítico sobre “Os Maias”, estipulando um mínimo e um máximo de palavras a utilizar.   
Ora, atualmente a prova vem com 3 grupos, em que o 1.º tem dois textos (partes A e B) com três questões cada um e uma questão (parte C) que serve de rampa de lançamento para uma exposição sobre uma obra do programa. A seguir, vem um grupo II com um texto não literário armadilhado com 7 questões (de interpretação textual, estilística e gramática). E, por fim, um grupo III, com a obrigação da elaboração dum texto de opinião bem estruturado sobre o tema proposto, com um mínimo de 200 palavras e um máximo de 350, com dois itens de exigência. Assim, o tempo de 2 horas pode não ser suficiente para o aluno médio pensar, ponderar. Dizem que as provas são pobres. Talvez o sejam na prestação do aluno. Mas penso que o enunciado é demasiado extenso. Dizer que é fácil é enganoso. Eu queria ver os organizadores a fazer a prova em duas horas…         
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Por fim, em jeito de justificação para o exposto acerca do texto pessoano, deixo uma resenha das linhas da tessitura da poesia pessoana ortonímica.
Uma das suas linhas temáticas é a nostalgia da infância, que irrompe como consequência do desejo de regresso do poeta aos tempos da infância feliz e inocente – época longínqua do bem (da unidade, da inconsciência e da verdade) –, sem o drama da dor de pensar, mas sinónimo de segurança, pureza e felicidade. E o poeta evoca esses tempos através da memória que lhe traz angústia e solidão, ao aperceber-se de que essa época não é mais que um paraíso longínquo, perdido na memória do tempo. E, negando-lhe a felicidade, o Presente funciona como o marco de sublimação do Passado, abrindo passagem à nostalgia dessa infância lembrada e esquecida.
Outra linha temática é a dor de pensar, com a dualidade da consciência-inconsciência e a problemática do sentir-pensar. O poeta, ser consciente, sente que a extensão dos seus sentimentos é diminuída pela vastidão do pensamento a corromper a inconsciência inerente à felicidade de viver, pelo que a consciência lhe surge como fardo e fatalidade que desencadeiam no poeta o estado de desencanto e impotência face ao absurdo da existência, já que, por um lado, não se liberta do peso da reflexão e, por outro, não alcança a alegre inconsciência de outros, mantendo-se intacta a sua própria consciência. Simplesmente paradoxal, pois consciente de que nunca será consciente, sofre a dor de pensar e paga caro a extrema lucidez que possui.
Por sua vez, o contraste sonho/realidade é tema que perpassa a poesia retratando a multiplicidade do “eu” introspetivo, inquieto e desdobrável noutros seres, despersonalizando-se. Marcado pelo fluir contínuo do tempo, Pessoa sente-se separado de si, distante do passado e do futuro, restando-lhe o ser que é no instante que passa e não o que existe na duração do tempo. Assim, o poeta exprime um misto de inquietação e absurdo ante a divisão do ser que o faz sentir-se estranho a si mesmo, fragmentado entre o real e o ideal e acabando por ser um ser perdido no labirinto de si, não encontrando o fio que o levaria à saída e ao equilíbrio interior.
E também o fingimento poético constitui uma das dialéticas desta poesia, em que o poeta sofre uma forte tensão conducente ao antissentimentalismo e à intelectualização da emoção. Para o emissor poético, fingir é inventar, elaborar conceitos que exprimem emoções, gerando nova conceção da arte, antirromântica, despersonalizada, expressão de sensações intelectualizadas, onde ocupa o papel principal a imaginação e a arte é criada a partir de inspiração individual. Pessoa não transmite a emoção pura e simples, mas submete-a sempre ao exame da inteligência e da razão poética, deixando que o seu cadinho a racionalize, desviando-se do sentimentalismo tradicional. Assim, a arte nasce da realidade e consiste no fingimento dela realidade, ou seja, na sua intelectualização materializada em texto. Neste âmbito, a composição poética nunca ocorre no momento da emoção, mas no momento da recordação dessa emoção.
Em suma, Pessoa ortónimo desenvolve as seguintes linhas de sentido: procura da decifração do enigma do ser; fragmentação do eu e perda de identidade; pendor filosófico; obsessão da análise, dor de pensar e lucidez; fuga da realidade para o sonho; incapacidade de viver a vida; inquietação, angústia existencial, solidão interior, melancolia, resignação; tédio, náusea, desencontro dos outros e desamparo; nostalgia do bem perdido e do mundo fantástico da infância; fingimento poético; e transfiguração da emoção pela razão. 
A nível do estilo, releva-se a preferência pela métrica curta (5 ou 7 sílabas – redondilha menor ou maior, respetivamente); a influência do lirismo lusitano (reminiscência da cantiga de embalar, toadas do romanceiro, conto de fadas);  gosto pelo popular (uso frequente da quadra/quintinha; rima cruzada); linguagem simples, espontânea, mas sóbria; criação de metáforas inesperadas, uso frequente do paradoxo;  versos leves com recurso frequente à interrogação, à exclamação, às reticências.
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Enfim, um poeta leve, mas complexo.
2019.07.01 – Louro de Carvalho

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