terça-feira, 2 de julho de 2019

Importância do foro interno e a inviolabilidade do sigilo de confissão


A Santa Sé, mediante Nota da Penitenciaria Apostólica, assinada pelo Cardeal Mauro Piacenza, Penitenciário-Mor, e por Monsenhor Krzysztof Nykiel, regente, divulgada a 1 de julho (mas aprovada pela Santo Padre a 21 de junho e ultimada a 29 pela Penitenciaria), reafirma importância do foro interno e a inviolabilidade do segredo de Confissão, reforçando que não se admite qualquer exceção no âmbito eclesial, nem na esfera civil, já que “provém diretamente do direito divino revelado e está enraizada na própria natureza do sacramento”.

Nestes termos, “qualquer ação política ou iniciativa legislativa que forçasse a inviolabilidade do sigilo sacramental constituiria uma inaceitável ofensa contra a libertas Ecclesiae” (que não recebe a legitimidade dos Estados, mas de Deus) e configuraria “violação da liberdade religiosa, juridicamente fundante de todas as outras liberdades, incluída a liberdade de consciência de cada cidadão, quer penitente, quer como confessor”.
De facto, o progresso técnico-científico crescente – a que não corresponde um desenvolvimento da formação ética do homem, no crescimento do homem interior, de que resulta que o progresso propalado não seja verdadeiro progresso – leva a que no campo das comunicações privadas e de media de massa cresçam as possibilidades técnicas, mas não o amor pela verdade, o esforço na  sua busca, o sentido de responsabilidade ante Deus e os homens; delineia-se preocupante desproporção entre meios e ética. Assim, a hipertrofia comunicativa volta-se contra a verdade, contra Deus e contra o homem, contra Jesus Cristo, Deus feito homem e a Igreja, sua presença histórica e real. E difundiu-se, nos últimos tempos, uma certa “ânsia” por informação, sem apreço pela sua real confiabilidade e oportunidade, a ponto de o “mundo da comunicação” quase querer “substituir” a realidade, quer condicionando a sua perceção quer manipulando a sua compreensão. Daí, o alerta de que “dessa tendência, que pode assumir traços inquietantes de morbidade, não está imune a estrutura eclesial, que vive no mundo e, às vezes, assume os seus critérios”, sendo que, também entre os crentes, são frequentemente empregadas energias preciosas na busca por ‘notícias’ – ou de verdadeiros ‘escândalos’ – adequados à sensibilidade de determinada opinião pública, com finalidades e objetivos que certamente não pertencem à natureza teândrica da Igreja” – o que vai “em grave detrimento do anúncio do Evangelho”, pelo que “é preciso humildemente reconhecer que, às vezes, nem as fileiras do clero, até as mais altas hierarquias, estão isentas dessa tendência”.
Invocando como último tribunal  a opinião pública, muitas vezes é divulgada informação de todo tipo, atinente também às esferas mais privadas e reservadas, que dizem respeito à vida da Igreja, induzem ou favorecem julgamentos temerários, arruínam ilegitimamente e de forma irreparável a boa reputação dos outros, bem como o direito de cada pessoa defender a sua intimidade (cf can. 220 CIC). Nesse cenário, as palavras de Paulo aos Gálatas soam bem atuais:
Sim, irmãos, fostes chamados para a liber­dade. Porém, não façais da liberdade um pretexto para servirdes à carne [...]. Mas, se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros!” (Gl 5,13-15).
É um contexto em que se desenha “um certo ‘preconceito negativo’ para com a Igreja Católica, cuja existência é culturalmente apresentada e socialmente reentendida, por um lado, à luz das tensões que podem verificar-se dentro da própria hierarquia e, por outro, a partir dos recentes escândalos de abusos, perpetrados por alguns membros do clero”. E convém referir que a febre do apelo à denúncia parecia dar azo a que valia tudo para obviar aos abusos sexuais por parte de membros do clero. Teve que vir o Papa, por várias vezes, reafirmar a inviolabilidade do sigilo sacramental, o que não foi suficiente para impedir ou travar algumas tentações de decisores políticos para obter, pela via da revelação do sigilo, a verdade sobre determinados crimes e situações de intriga. Assim, a Penitenciaria Apostólica, enquadra a questão no contexto teológico – e não só no âmbito antropológico como alguns críticos sustentam, o que permitiria a abertura de exceções diversas em casos de força maior – e esclarece alguns conceitos.
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No âmbito teológico, a Nota refere, entre outras coisas:
Com a Encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem; com seus gestos e palavras, iluminou a sua mais alta e inviolável dignidade; em si mesmo, morto e ressuscitado, restaurou a humanidade decaída, vencendo as trevas do pecado e da morte; para os que nele creem,  abriu o relacionamento com o Pai; com a efusão do Espírito Santo,  consagrou a Igreja, comunidade de crentes, como seu verdadeiro corpo e fê-la participar do próprio poder profético, real e sacerdotal, para que seja no mundo como a extensão da sua própria presença e missão, anunciando aos homens de todos os tempos a verdade, guiando-os ao esplendor da sua luz, permitindo que a sua vida seja verdadeiramente por ele tocada e transfigurada”.
Agora, na custódia do sigilo sacramental e da discrição ligada ao foro extrassacramental interno e aos outros atos de ministério, resplandece a síntese entre dimensão petrina e mariana na Igreja. Com Pedro, a esposa de Cristo guarda, até ao fim da história, o ministério institucional do poder das chaves; e, como Maria, conserva “todas estas coisas em seu coração” (Lc 2,51b), sabendo que nelas reverbera a luz que ilumina todo homem e que deve ser preservada, defendida e protegida no espaço sagrado entre a consciência pessoal e Deus.
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No concernente à precisão e esclarecimento de conceitos, a Penitenciaria Apostólica é clara:  
1. Sigilo sacramental
Francisco reafirmou a indispensabilidade e indisponibilidade do segredo sacramental, dizendo:
A própria Reconciliação é um bem que a sabedoria da Igreja sempre salvaguardou com toda a sua força moral e jurídica com o sigilo sacramental. Ele, se nem sempre é compreendido pela mentalidade moderna, é indispensável para a santidade do sacramento e para a liberdade de consciência do penitente, que deve ter a certeza, em qualquer momento, de que o diálogo sacramental permanecerá no segredo do confessionário, entre a própria consciência que se abre à graça e Deus, com a mediação necessária do sacerdote. O sigilo sacramental é indispensável e nenhum poder humano tem jurisdição sobre ele nem o pode reivindicar para si.”.
Este inviolável sigilo provém do direito divino e está enraizado na natureza do sacramento, a ponto de não admitir qualquer exceção na esfera eclesial e ainda menos na civil. Na celebração do Sacramento da Reconciliação, acontece a essência do cristianismo, da Igreja: o Filho de Deus fez-se homem para nos salvar e envolveu, como instrumento necessário de salvação, a Igreja e, nela, escolheu os sacerdotes, os chamou e constituiu como seus ministros. Por isso, a Igreja sempre ensinou que os sacerdotes, na celebração dos sacramentos, agem “in persona Christi capitis”: Cristo permite-lhes usar o seu “eu”. E a união com o seu “eu” realiza-se nas palavras da consagração e no “eu te absolvo”, porque nenhum de nós poderia absolver dos pecados. É, pois, o “eu” de Cristo (de Deus) o único que pode absolver. E cada penitente que vai ao sacerdote confessar os próprios pecados, testemunha o mistério da encarnação e a essência sobrenatural da Igreja e do sacerdócio ministerial, pelo qual o Cristo Ressuscitado vem ao encontro dos homens, toca sacramentalmente – realmente – a vida deles e os salva. Por esta razão, a defesa do sigilo por parte do confessor, se necessário usque ad sanguinis effusionem, representa um ato de lealdade para com o penitente, mas sobretudo o testemunho dado à unicidade e à universalidade salvífica de Cristo e da Igreja.
E a matéria do sigilo é exposta e regulada nos cann. 983-984 e 1388, § 1 da CIC e no cân. 1456 do CCEO, bem como no n. 1467 do Catecismo da Igreja Católica, onde se afirma que a Igreja declara, como dado irredutível que deriva da santidade do Sacramento instituído por Cristo, “que todo o sacerdote que ouve confissões é obrigado a guardar segredo absoluto sobre os pecados que os penitentes lhe confessaram, sob severíssimas penas”. Nunca lhe é permitido “trair o penitente com palavras ou de qualquer outro modo” (cân. 983, § 1 CIC), tal como lhe é proibido “fazer uso dos conhecimentos adquiridos pela confissão com agravo do penitente, excluído qualquer perigo de revelação” (cân. 984, § 1 CIC). E a doutrina especifica o teor do sigilo:
Todos os pecados, tanto do penitente como de outros conhecidos pela confissão do penitente, quer mortais como veniais, quer ocultos como públicos, enquanto manifestados a fim de absolvição e, portanto, conhecidos pelo confessor em virtude da ciência sacramental”.
Portanto, o sigilo sacramental abrange tudo o que o penitente tenha acusado, mesmo que o confessor não conceda a absolvição. Com efeito, o sacerdote toma consciência dos pecados do penitente “não como homem, mas como Deus”, a tal ponto que simplesmente “não sabe” o que lhe foi dito em confissão, porque não o escutou enquanto homem, mas em nome de Deus. Assim, o confessor poderia “jurar”, sem prejuízo para a consciência, “não saber” o que sabe só como ministro de Deus. Ademais, este sigilo vincula o confessor interiormente, a ponto de lhe ser proibido recordar voluntariamente a confissão. O sigilo atinge ainda quem, de alguma forma, tenha vindo a saber dos pecados da confissão:
À obrigação de  observar o segredo são chamados também o intérprete, se houver, e todos os outros aos quais, de alguma forma, tenha chegado a notícia dos pecados da confissão” (cân. 983, § 2 CIC).
Este sigilo é tal que  impede o sacerdote de divulgar o conteúdo da confissão com o próprio penitente, fora do Sacramento, “salvo explícito (mas melhor se não pedido) o consentimento por parte do penitente”. É que o sigilo vai além da disponibilidade do penitente, que não tem o poder de aliviar o confessor da obrigação do sigilo, porque esse dever vem diretamente de Deus.
Todavia, a defesa do sigilo sacramental e a santidade da confissão não constituem qualquer forma de conivência com o mal; representam, antes, o verdadeiro antídoto contra o mal que ameaça o homem e o mundo; e são a real possibilidade de se render ao amor de Deus, de deixar-se converter e transformar por ele, aprendendo a corresponder-se concretamente na própria vida. Por outro lado, nunca é permissível colocar ao penitente, como condição de absolvição, a obrigação de se expor à justiça civil, em virtude do princípio incorporado em toda a ordem jurídica, segundo a qual “nemo tenetur se detegere” (ninguém é obrigado a revelar a sua culpabilidade). Porém, pertence à estrutura do Sacramento da Reconciliação, como condição para sua validade, o sincero arrependimento e o firme propósito de emendar e não reiterar o mal cometido; e, face a um penitente que tenha sido vítima do mal dos outros, será do interesse do confessor instruí-lo sobre os seus direitos, bem como sobre os instrumentos jurídicos concretos a utilizar para denunciar o facto no foro civil e / ou eclesiástico e invocar a justiça.
2. Foro extrassacramental interno e direção espiritual
Também pertence ao âmbito jurídico-moral do foro interno o “foro interno extrassacramental”, (oculto, mas externo ao Sacramento da Penitência). Nele a Igreja também exerce a sua missão, não perdoando pecados, mas concedendo graças e rompendo vínculos jurídicos (como as censuras) e ocupando-se de quanto diz respeito à santificação (ou seja, à esfera íntima e pessoal de cada fiel). A este foro pertence a direção espiritual, em que o fiel confia a via de conversão e santificação a sacerdote, consagrado/a ou leigo/a. O sacerdote exerce tal ministério em virtude da missão que tem de representar Cristo, conferida pelo Sacramento da Ordem e exercida na comunhão hierárquica da Igreja, por meio dos tria munera: ensinar, santificar e governar; os leigos fazem-no em virtude do sacerdócio batismal e do dom do Espírito Santo. O fiel abre o segredo da sua consciência ao diretor ou acompanhante espiritual, para ser orientado e apoiado na escuta e cumprimento da vontade de Deus. Por isso, também este âmbito exige sigilo ad extra, inerente ao teor das conversas espirituais e derivante do direito de cada pessoa ao respeito pela própria intimidade (cf can. 220 CIC). Embora só de modo análogo ao que sucede no Sacramento da Confissão, o diretor espiritual é posto a par da consciência do fiel, em virtude do seu especial relacionamento com Cristo, por via da santidade da vida e, se clérigo, da mesma Ordem recebida. Como testemunho da confidencialidade concedida à direção espiritual, considera-se a proibição, sancionada pelo direito, de pedir não só o parecer do confessor, mas também o do diretor espiritual, para admissão às Ordens sacras ou para demissão do seminário de candidatos ao sacerdócio (cf cân. 240, § 2 CIC; cân. 339, § 2 CCEO). Também a instrução Sanctorum Mater (de 2007), relativa aos inquéritos diocesanos ou eparquiais nas Causas dos Santos, proíbe admitir para testemunhar os confessores, para proteger o sigilo sacramental, e os diretores espirituais do Servo de Deus, por quanto lhes tenha vindo ao conhecimento no foro de consciência, fora da confissão sacramental. Tal confidencialidade será tanto mais natural para o diretor espiritual, quanto mais ele aprender a reconhecer e a comover-se ante o mistério da liberdade do fiel que, por meio dele, se dirige a Cristo; o diretor espiritual deverá conceber a própria missão e a própria vida ante Deus, a serviço da sua glória, para o bem da pessoa, da Igreja e para a salvação do mundo.
3. Segredos e outros limites próprios da comunicação
De outra natureza, em relação ao âmbito do foro interno, sacramental e extrassacramental, são as confidências feitas sob sigilo, bem como o segredo profissional de certas categorias de pessoas (vg: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, advogados…), na sociedade civil e na estrutura eclesial, em virtude de especial ofício em prol dos indivíduos ou da comunidade. Tal segredo deve, por força da lei natural, ser sempre preservado, exceto, como afirma  o n. 2491 do CIC (Catecismo da Igreja Católica), em casos excecionais em que a sua retenção causasse a quem o confia, ou o recebe ou a um terceiro, prejuízos muito graves e só evitáveis ​​pela  sua divulgação.  
Caso particular de sigilo é o do “segredo pontifício”, que vincula por força do juramento ligado ao exercício de alguns ofícios ao serviço da Sé Apostólica. Se o juramento de segredo sempre vincula coram Deo quem o emitiu, o juramento do “segredo pontifício” tem como ratio última o bem público da Igreja e a salus animarum, sendo que esse bem e as exigências da salus animarum (incluindo o uso de informações que não se enquadram no sigilo) podem e devem ser corretamente interpretadas só pela Sé Apostólica, na pessoa do Romano Pontífice, que o Senhor constituiu como princípio visível e fundamento da unidade da fé e da comunhão da Igreja.
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No que tange a outros âmbitos de comunicação, públicos ou privados, em todas as suas formas e expressões, a Igreja sempre indicou como critério fundamental a “regra de ouro” referida no Evangelho de Lucas: “O que queres que os homens te façam, faz tu também a eles” (Lc 6,31). Assim, na comunicação da verdade ou no silêncio em relação a ela, quando quem a questiona não tem o direito de a conhecer, é preciso conformar sempre a vida ao preceito do amor fraterno, tendo diante dos olhos o bem e a segurança dos outros, o respeito pela vida privada e o bem comum. E, como dever peculiar de comunicação da verdade, ditado pela caridade, salienta-se a “correção fraterna”, nos seus vários passos, ensinada pelo Senhor, a qual permanece o horizonte de referência, quando necessária e de acordo com o que as circunstâncias permitem e exigem:
Se teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, tu e ele a sós! Se ele te ouvir, terás ganho o teu irmão. Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, de modo que toda questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhasSe ele não vos der ouvidos, di-lo à igreja.” (Mt 18,15-17).
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O exposto consta da Nota em referência, reforçada pela explicação do Cardeal Mauro Piacenza em entrevista ao Vatican News.
2019.07.02 – Louro de Carvalho

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