A Santa Sé, mediante
Nota da Penitenciaria Apostólica,
assinada pelo Cardeal Mauro Piacenza, Penitenciário-Mor, e por Monsenhor
Krzysztof Nykiel, regente, divulgada a 1 de julho (mas aprovada pela Santo Padre a 21 de
junho e ultimada a 29 pela Penitenciaria), reafirma importância do foro interno e a inviolabilidade do segredo de
Confissão, reforçando que não se admite qualquer exceção no âmbito eclesial,
nem na esfera civil, já que “provém diretamente do direito divino revelado e
está enraizada na própria natureza do sacramento”.
Nestes
termos, “qualquer ação política ou iniciativa legislativa que forçasse a inviolabilidade
do sigilo sacramental constituiria uma inaceitável ofensa contra
a libertas Ecclesiae” (que não recebe a legitimidade dos
Estados, mas de Deus) e
configuraria “violação da liberdade religiosa, juridicamente fundante de todas
as outras liberdades, incluída a liberdade de consciência de cada cidadão, quer
penitente, quer como confessor”.
De
facto, o progresso técnico-científico crescente – a que não corresponde um
desenvolvimento da formação
ética do homem, no crescimento do homem interior, de que resulta que o progresso propalado não seja
verdadeiro progresso – leva a que no campo das
comunicações privadas e de media de massa cresçam as possibilidades técnicas,
mas não o amor pela verdade, o esforço na sua busca, o sentido de
responsabilidade ante Deus e os homens; delineia-se preocupante
desproporção entre meios e ética. Assim, a hipertrofia comunicativa volta-se
contra a verdade, contra Deus e contra o homem, contra Jesus Cristo, Deus feito
homem e a Igreja, sua presença histórica e real. E difundiu-se, nos últimos
tempos, uma certa “ânsia” por informação, sem apreço pela sua real confiabilidade
e oportunidade, a ponto de o “mundo da comunicação” quase querer “substituir” a
realidade, quer condicionando a sua perceção quer manipulando a sua
compreensão. Daí, o alerta de
que “dessa tendência, que pode assumir traços inquietantes de morbidade, não
está imune a estrutura eclesial, que vive no mundo e, às vezes, assume os seus
critérios”, sendo que, também entre os crentes, são frequentemente empregadas energias
preciosas na busca por ‘notícias’ – ou de verdadeiros ‘escândalos’ – adequados
à sensibilidade de determinada opinião pública, com finalidades e objetivos que
certamente não pertencem à natureza teândrica da Igreja” – o que vai “em grave
detrimento do anúncio do Evangelho”, pelo que “é preciso humildemente
reconhecer que, às vezes, nem as fileiras do clero, até as mais altas
hierarquias, estão isentas dessa tendência”.
Invocando como
último tribunal a opinião pública, muitas vezes é divulgada informação
de todo tipo, atinente também às esferas mais privadas e reservadas, que dizem
respeito à vida da Igreja, induzem ou favorecem julgamentos temerários,
arruínam ilegitimamente e de forma irreparável a boa reputação dos outros, bem
como o direito de cada pessoa defender a sua intimidade (cf can. 220
CIC). Nesse cenário, as palavras de
Paulo aos Gálatas soam bem atuais:
“Sim, irmãos, fostes chamados para a liberdade. Porém, não façais da
liberdade um pretexto para servirdes à carne [...]. Mas, se vos mordeis e vos
devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros!”
(Gl 5,13-15).
É um contexto
em que se desenha “um certo ‘preconceito negativo’ para com a Igreja Católica,
cuja existência é culturalmente apresentada e socialmente reentendida, por um
lado, à luz das tensões que podem verificar-se dentro da própria hierarquia e,
por outro, a partir dos recentes escândalos de abusos, perpetrados por alguns
membros do clero”. E convém referir que a febre do apelo à denúncia parecia dar
azo a que valia tudo para obviar aos abusos sexuais por parte de membros do
clero. Teve que vir o Papa, por várias vezes, reafirmar a inviolabilidade do
sigilo sacramental, o que não foi suficiente para impedir ou travar algumas
tentações de decisores políticos para obter, pela via da revelação do sigilo, a
verdade sobre determinados crimes e situações de intriga. Assim, a
Penitenciaria Apostólica, enquadra a questão no contexto teológico – e não só
no âmbito antropológico como alguns críticos sustentam, o que permitiria a
abertura de exceções diversas em casos de força maior – e esclarece alguns
conceitos.
***
No âmbito
teológico, a Nota refere, entre
outras coisas:
“Com a Encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem;
com seus gestos e palavras, iluminou a sua mais alta e inviolável dignidade; em
si mesmo, morto e ressuscitado, restaurou a humanidade decaída, vencendo as
trevas do pecado e da morte; para os que nele creem, abriu o
relacionamento com o Pai; com a efusão do Espírito Santo, consagrou a
Igreja, comunidade de crentes, como seu verdadeiro corpo e fê-la participar do
próprio poder profético, real e sacerdotal, para que seja no mundo como a
extensão da sua própria presença e missão, anunciando aos homens de todos os
tempos a verdade, guiando-os ao esplendor da sua luz, permitindo que a sua vida
seja verdadeiramente por ele tocada e transfigurada”.
Agora, na
custódia do sigilo sacramental e da discrição ligada ao foro extrassacramental
interno e aos outros atos de ministério, resplandece a síntese entre dimensão
petrina e mariana na Igreja. Com Pedro, a esposa de Cristo guarda, até ao fim
da história, o ministério institucional do poder das chaves; e, como Maria,
conserva “todas estas coisas em seu
coração” (Lc 2,51b), sabendo
que nelas reverbera a luz que ilumina todo homem e que deve ser preservada, defendida
e protegida no espaço sagrado entre a consciência pessoal e Deus.
***
No
concernente à precisão e esclarecimento de conceitos, a Penitenciaria
Apostólica é clara:
1. Sigilo sacramental
Francisco
reafirmou a indispensabilidade e indisponibilidade do segredo sacramental,
dizendo:
“A própria Reconciliação é um bem que a sabedoria da Igreja sempre
salvaguardou com toda a sua força moral e jurídica com o sigilo sacramental.
Ele, se nem sempre é compreendido pela mentalidade moderna, é indispensável para
a santidade do sacramento e para a liberdade de consciência do penitente, que
deve ter a certeza, em qualquer momento, de que o diálogo sacramental
permanecerá no segredo do confessionário, entre a própria consciência que se
abre à graça e Deus, com a mediação necessária do sacerdote. O sigilo
sacramental é indispensável e nenhum poder humano tem jurisdição sobre ele nem
o pode reivindicar para si.”.
Este
inviolável sigilo provém do direito divino e está enraizado na natureza do
sacramento, a ponto de não admitir qualquer exceção na esfera eclesial e ainda
menos na civil. Na celebração do Sacramento da Reconciliação, acontece a essência
do cristianismo, da Igreja: o Filho de Deus fez-se homem para nos salvar e
envolveu, como instrumento necessário de salvação, a Igreja e, nela, escolheu
os sacerdotes, os chamou e constituiu como seus ministros. Por isso, a Igreja
sempre ensinou que os sacerdotes, na celebração dos sacramentos, agem “in persona Christi capitis”: Cristo permite-lhes
usar o seu “eu”. E a união com o seu “eu” realiza-se nas palavras da
consagração e no “eu te absolvo”, porque nenhum de nós poderia absolver dos
pecados. É, pois, o “eu” de Cristo (de Deus) o único que pode absolver. E cada penitente que vai
ao sacerdote confessar os próprios pecados, testemunha o mistério da encarnação
e a essência sobrenatural da Igreja e do sacerdócio ministerial, pelo qual o
Cristo Ressuscitado vem ao encontro dos homens, toca sacramentalmente – realmente
– a vida deles e os salva. Por esta razão, a defesa do sigilo por parte do
confessor, se necessário usque ad sanguinis effusionem, representa
um ato de lealdade para com o penitente, mas sobretudo o testemunho dado à
unicidade e à universalidade salvífica de Cristo e da Igreja.
E a matéria
do sigilo é exposta e regulada nos cann. 983-984 e 1388, § 1 da CIC e no cân.
1456 do CCEO, bem como no n. 1467 do Catecismo da Igreja Católica, onde se
afirma que a Igreja declara, como dado irredutível que deriva da santidade do
Sacramento instituído por Cristo, “que todo o sacerdote que ouve confissões é
obrigado a guardar segredo absoluto sobre os pecados que os penitentes lhe confessaram,
sob severíssimas penas”. Nunca lhe é permitido “trair o penitente com palavras
ou de qualquer outro modo” (cân. 983, § 1 CIC), tal como
lhe é proibido “fazer uso dos conhecimentos adquiridos pela confissão com
agravo do penitente, excluído qualquer perigo de revelação” (cân. 984, §
1 CIC). E a doutrina especifica o teor do
sigilo:
“Todos os pecados, tanto do penitente como de outros conhecidos pela
confissão do penitente, quer mortais como veniais, quer ocultos como públicos,
enquanto manifestados a fim de absolvição e, portanto, conhecidos pelo
confessor em virtude da ciência sacramental”.
Portanto, o
sigilo sacramental abrange tudo o que o penitente tenha acusado, mesmo que o confessor
não conceda a absolvição. Com efeito, o sacerdote toma consciência dos pecados
do penitente “não como homem, mas como
Deus”, a tal ponto que simplesmente “não sabe” o que lhe foi dito em confissão,
porque não o escutou enquanto homem, mas em nome de Deus. Assim, o confessor poderia
“jurar”, sem prejuízo para a consciência, “não saber” o que sabe só como
ministro de Deus. Ademais, este sigilo vincula o confessor interiormente, a
ponto de lhe ser proibido recordar voluntariamente a confissão. O sigilo atinge
ainda quem, de alguma forma, tenha vindo a saber dos pecados da confissão:
“À obrigação de observar o segredo são chamados também o
intérprete, se houver, e todos os outros aos quais, de alguma forma, tenha
chegado a notícia dos pecados da confissão” (cân. 983, § 2 CIC).
Este sigilo é
tal que impede o sacerdote de divulgar o conteúdo da confissão com o
próprio penitente, fora do Sacramento, “salvo explícito (mas melhor
se não pedido) o
consentimento por parte do penitente”. É que o sigilo vai além da disponibilidade
do penitente, que não tem o poder de aliviar o confessor da obrigação do
sigilo, porque esse dever vem diretamente de Deus.
Todavia, a
defesa do sigilo sacramental e a santidade da confissão não constituem qualquer
forma de conivência com o mal; representam, antes, o verdadeiro antídoto contra
o mal que ameaça o homem e o mundo; e são a real possibilidade de se render ao
amor de Deus, de deixar-se converter e transformar por ele, aprendendo a corresponder-se
concretamente na própria vida. Por outro lado, nunca é permissível colocar ao
penitente, como condição de absolvição, a obrigação de se expor à justiça
civil, em virtude do princípio incorporado em toda a ordem jurídica, segundo a
qual “nemo tenetur se detegere” (ninguém é
obrigado a revelar a sua culpabilidade). Porém,
pertence à estrutura do Sacramento da Reconciliação, como condição para sua
validade, o sincero arrependimento e o firme propósito de emendar e não
reiterar o mal cometido; e, face a um penitente que tenha sido vítima do mal
dos outros, será do interesse do confessor instruí-lo sobre os seus direitos,
bem como sobre os instrumentos jurídicos concretos a utilizar para denunciar o
facto no foro civil e / ou eclesiástico e invocar a justiça.
2. Foro extrassacramental
interno e direção espiritual
Também
pertence ao âmbito jurídico-moral do foro interno o “foro interno extrassacramental”,
(oculto, mas
externo ao Sacramento da Penitência). Nele a
Igreja também exerce a sua missão, não perdoando pecados, mas concedendo graças
e rompendo vínculos jurídicos (como as censuras) e
ocupando-se de quanto diz respeito à santificação (ou seja, à
esfera íntima e pessoal de cada fiel). A este
foro pertence a direção espiritual, em que o fiel confia a via de conversão e
santificação a sacerdote, consagrado/a ou leigo/a. O sacerdote exerce tal
ministério em virtude da missão que tem de representar Cristo, conferida pelo
Sacramento da Ordem e exercida na comunhão hierárquica da Igreja, por meio dos tria
munera: ensinar, santificar e governar; os leigos fazem-no em virtude do
sacerdócio batismal e do dom do Espírito Santo. O fiel abre o segredo da sua
consciência ao diretor ou acompanhante espiritual, para ser orientado e apoiado
na escuta e cumprimento da vontade de Deus. Por isso, também este âmbito exige
sigilo ad extra, inerente ao teor das conversas espirituais e
derivante do direito de cada pessoa ao respeito pela própria intimidade (cf can. 220
CIC). Embora só de modo análogo ao que
sucede no Sacramento da Confissão, o diretor espiritual é posto a par da consciência
do fiel, em virtude do seu especial relacionamento com Cristo, por via da
santidade da vida e, se clérigo, da mesma Ordem recebida. Como testemunho da
confidencialidade concedida à direção espiritual, considera-se a proibição,
sancionada pelo direito, de pedir não só o parecer do confessor, mas também o
do diretor espiritual, para admissão às Ordens sacras ou para demissão do
seminário de candidatos ao sacerdócio (cf cân. 240, § 2 CIC; cân. 339, § 2
CCEO). Também a instrução Sanctorum
Mater (de 2007), relativa
aos inquéritos diocesanos ou eparquiais nas Causas dos Santos, proíbe admitir
para testemunhar os confessores, para proteger o sigilo sacramental, e os
diretores espirituais do Servo de Deus, por quanto lhes tenha vindo ao conhecimento
no foro de consciência, fora da confissão sacramental. Tal confidencialidade
será tanto mais natural para o diretor espiritual, quanto mais ele aprender a
reconhecer e a comover-se ante o mistério da liberdade do fiel que, por meio
dele, se dirige a Cristo; o diretor espiritual deverá conceber a própria missão
e a própria vida ante Deus, a serviço da sua glória, para o bem da pessoa, da
Igreja e para a salvação do mundo.
3. Segredos e outros limites
próprios da comunicação
De outra
natureza, em relação ao âmbito do foro interno, sacramental e extrassacramental,
são as confidências feitas sob sigilo, bem como o segredo profissional de certas
categorias de pessoas (vg: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, advogados…), na sociedade civil e na estrutura eclesial, em
virtude de especial ofício em prol dos indivíduos ou da comunidade. Tal segredo
deve, por força da lei natural, ser sempre preservado, exceto, como afirma
o n. 2491 do CIC (Catecismo da Igreja Católica), em casos excecionais em que a sua retenção causasse
a quem o confia, ou o recebe ou a um terceiro, prejuízos muito graves e só
evitáveis pela sua divulgação.
Caso particular
de sigilo é o do “segredo pontifício”, que vincula por força do juramento ligado
ao exercício de alguns ofícios ao serviço da Sé Apostólica. Se o juramento de
segredo sempre vincula coram Deo quem o emitiu, o juramento do
“segredo pontifício” tem como ratio última o bem público da
Igreja e a salus animarum, sendo que esse bem e as exigências
da salus animarum (incluindo o uso de informações que não se enquadram no
sigilo) podem e devem ser corretamente
interpretadas só pela Sé Apostólica, na pessoa do Romano Pontífice, que o
Senhor constituiu como princípio visível e fundamento da unidade da fé e da
comunhão da Igreja.
***
No que tange
a outros âmbitos de comunicação, públicos ou privados, em todas as suas formas
e expressões, a Igreja sempre indicou como critério fundamental a “regra de
ouro” referida no Evangelho de Lucas: “O
que queres que os homens te façam, faz tu também a eles” (Lc 6,31). Assim, na comunicação da verdade ou no silêncio em
relação a ela, quando quem a questiona não tem o direito de a conhecer, é
preciso conformar sempre a vida ao preceito do amor fraterno, tendo diante dos
olhos o bem e a segurança dos outros, o respeito pela vida privada e o bem
comum. E, como dever peculiar de comunicação da verdade, ditado pela caridade, salienta-se
a “correção fraterna”, nos seus vários passos, ensinada pelo Senhor, a qual
permanece o horizonte de referência, quando necessária e de acordo com o que as
circunstâncias permitem e exigem:
“Se teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, tu e ele a sós! Se ele te
ouvir, terás ganho o teu irmão. Se ele não te ouvir, toma
contigo mais uma ou duas pessoas, de modo que toda questão seja
decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas. Se
ele não vos der ouvidos, di-lo à igreja.” (Mt 18,15-17).
***
O exposto consta da Nota em referência, reforçada pela explicação
do Cardeal
Mauro Piacenza em entrevista ao Vatican
News.
2019.07.02 – Louro de Carvalho
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