O Jornal Económico avançou hoje, dia 31 de
julho, pelas 12,30 horas, que estavam a decorrer no Museu Coleção Berardo,
situado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, “diligências com vista ao arresto
dos quadros e outras obras de arte de Berardo, decidido pelo tribunal, como
garantia das dívidas” do empresário José Berardo, mais conhecido por Joe
Berardo.
A presença
dos agentes de execução hoje no local foi confirmada à Lusa por fontes ligadas ao processo, sem especificarem se se trata
de ação de arresto ou de levantamento/inventariação das obras de arte.
Contactado
pela Lusa, o assessor de José Berardo
reiterou que o empresário “não foi notificado de nenhum dos arrestos, a não ser
pela comunicação social”.
Já no dia
29, o jornal Público avançava que foi
decretado o arresto da coleção Berardo, na sequência de providência cautelar
interposta pela Caixa Geral de Depósitos (CGD), o BCP e o Novo Banco, credores da coleção de arte moderna de José
Berardo.
Entretanto,
o Ministério da Cultura confirmou à Lusa
a veracidade da notícia do Público,
ou seja, a existência de decisão judicial nesse sentido.
E, já no dia
5 de julho, foi noticiado que os títulos da Associação Coleção Berardo (ACB), dados como garantia aos bancos credores de
entidades ligadas a José Berardo, foram penhorados por ordem judicial. De
acordo com o Jornal Económico desse
dia, a ACB considerou que não foram arrestados 100% dos títulos de
participação, devido à alteração dos estatutos e ao aumento de capital que
aconteceram após os títulos terem sido dados como penhora aos bancos credores.
Segundo o Público, no dia 29, decretado o arresto,
os bancos confiam ao Estado a salvaguarda das obras de arte, propriedade da
ACB, e que desde 2006 compõem o acervo do Museu Coleção Berardo.
A solução
encontrada para resolver a dívida de quase mil milhões de euros aos três bancos
e garantir a permanência da coleção no CCB, nas mãos do Estado, foi encontrada,
segundo o Público, por negociação
entre as instituições financeiras e os ministérios das Finanças, da Cultura, da
Economia e da Justiça. E, no final do Conselho de Ministros do passado dia 16
de maio, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, garantiu que o Governo usaria “as
necessárias e adequadas medidas legais” para garantir que a coleção Berardo de
arte moderna continuasse inteira e acessível ao público.
Graça
Fonseca afirmou então que Justiça, Finanças, Economia e Cultura, estavam
articuladas para defender a “imperiosa necessidade de garantir a integridade, a
não alienação e a fruição pública” das obras expostas no museu instalado num
dos módulos do CCB.
Questionada
sobre que medidas estavam em cima da mesa, a governante afirmou que o Governo
não iria dar a José Berardo “a satisfação de as antecipar”, frisando que as
hipóteses ao dispor do executivo são suficientes para garantir a integridade da
coleção.
Graça
Fonseca falava aos jornalistas menos de uma semana depois da audição de Berardo
no Parlamento e das suas declarações, perante os deputados, na comissão
parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, que considerou
“indecorosas e inadmissíveis”.
Na audição
no Parlamento, em 10 de maio, o empresário disse que a garantia que os bancos
têm é dos títulos de participação da ACB, e não das obras em si. Na mesma
audição Berardo revelou que houve um aumento de capital na ACB, numa reunião
que não contou com a presença dos bancos credores, que diluiu os títulos
detidos pelos bancos como garantia. E disse, então, que não tinha de ter
convocado os credores e remeteu para uma ordem do tribunal de Lisboa.
No decurso
da audição, José Berardo riu-se da hipótese dizendo que, se os bancos
executassem a garantia, deixaria de ser ele a mandar na ACB.
***
Entretanto, hoje a Ministra da Cultura garantiu que o arresto decretado
das obras de arte do empresário José Berardo não põe em causa a existência do
Museu Coleção Berardo.
Questionada
pela Lusa, à margem de um almoço
debate sobre Cultura e Economia, em
Lisboa, Graça Fonseca escusou-se a comentar a presença de agentes de execução
hoje no Museu Coleção Berardo, situado no Centro Cultural de Belém. Disse a
governante:
“Para que a decisão do tribunal seja
verdadeiramente eficaz, há um conjunto de iniciativas que o tribunal tem de
fazer. [...] Nesta fase qualquer palavra a mais pode estragar tudo.”.
As obras de
arte que desde 2006 compõem o acervo do Museu Coleção Berardo são propriedade da
Associação Coleção Berardo e, segundo fonte ligada ao processo, só estas estão
abrangidas pelo arresto decretado na sequência de uma providência cautelar
interposta pela CGD, pelo BCP e pelo Novo Banco, credores de Joe Berardo.
***
Todavia, não
é bem assim, pois, além das obras de arte, há mais casos de arresto de bens que
são propriedade ou, pelo menos, tutela de Berardo: parte da Quinta Monte Palace
Tropical Garden, duas casas em Lisboa e uma propriedade de 70.000m2.
O arresto de
parte da Quinta Monte Palace Tropical Garden, em razão de providência cautelar
movida pela CGD, e de duas casas em Lisboa, também propriedade do empresário,
são os outros dois arrestos, noticiados pela comunicação social, a que a
assessoria de Berardo se refere.
O arresto de
parte da Quinta Monte Palace Tropical Garden, na semana passada, foi decretado
pelo Juízo Central Civil do Funchal, na sequência de uma providência cautelar
movida pela CGD, como confirmou à Lusa
fonte ligada ao processo. O arresto incide sobre um edifício que é a residência
fiscal de Joe Berardo e onde funcionou um escritório da Fundação Berardo, como explicou
a mesma fonte.
No dia 26, o
jornal Eco tinha noticiado que a
operação conduzida pela sociedade Abreu Advogados tinha conseguido arrestar a
propriedade de 70 mil metros quadrados que havia sido doada pelo empresário à Fundação
com o seu nome, em 1988 – uma propriedade que valerá várias dezenas de milhões
de euros. Anteriormente, já tinha sido noticiado o arresto de duas casas em
Lisboa, também propriedade do empresário.
***
A arrogância,
o gozo e a palhaçada do embuste Berardo caíram – assim os tribunais sejam
consequentes com os ora iniciados processos de arresto. Para alguns foi
invocada a figura jurídica da “desconsideração da personalidade jurídica”, que não
encontra ente nós consagração legal expressa. Assim, gera controvérsia e discussão
em seu torno e dá azo a uma maior reflexão permitindo que os mais entendidos continuem
a contribuir para a sua construção concetual.
Neste âmbito,
é de enaltecer a dissertação de mestrado em Direito e Gestão de André Tavares Moreira,
em 2015, UCP-Porto sob o título “A
Desconsideração da Personalidade Jurídica em Portugal e nos Estados Unidos – Breve
análise doutrinal e jurisprudencial”. Obviamente só me fixo no ponto 3.1. Enquadramento
jurídico (pgs 10-25).
Embora não
consagrado expressamente na lei portuguesa, diz Brito Correia que, em termos de
fundamentação,
“Pode fundamentar-se no artigo 334.º do Código Civil, sobre o abuso de
direito, entendendo que a generalidade das pessoas têm direito de constituir
pessoas coletivas e de exercer atividades por intermédio delas, mas que esse
direito tem limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim
social ou económico desse direito”.
Na verdade,
o mencionado artigo estabelece, sobre o abuso do direito:
“É ilegítimo o exercício de um direito,
quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos
bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Portanto,
o fundamento da desconsideração da personalidade jurídica reconduzir-se-á “aos
ditames da boa-fé”. Com efeito, “a tutela da boa-fé e da confiança alicerçam o
sancionamento de condutas abusivas de direitos”, direitos que, “aparentemente,
o sujeito possui, mas o modo como exerce o direito ultrapassa ostensivamente os
limites que, quer a boa-fé, quer os bons costumes, quer o fim social e
económico desse mesmo direito impõem”. Não se quer eliminar em definitivo a
distinção entre personalidades e a separação das mesmas, mas apenas ultrapassar
a personalidade jurídica da sociedade para chegar à dos sócios, visando-se “um
afastamento temporário do princípio da autonomia patrimonial”.
Este “mecanismo
jurídico, doutrinal e jurisprudencialmente construído”, por inspiração anglo-americana
e germânica, foi invocado pela primeira vez, em Portugal, em 1945, por Ferrer
Correia no estudo das sociedades unipessoais de responsabilidade limitada. E,
na ausência de disposição legal explícita que defina o conteúdo, têm a doutrina
e jurisprudência avançado definições e “formas de interpretação e aplicação
deste instituto”.
Para M.
Fátima Ribeiro, é “operação pela qual a personalidade jurídica de uma pessoa coletiva
é afastada, retirada”; para Coutinho de Abreu, pode ser definida como a
“derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial
das sociedades em face dos respetivos sócios”; e, segundo Pedro Cordeiro, é “o
desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa coletiva e os seus
membros ou, dito de outro modo, ‘desconsiderar’ significa derrogar o princípio
da separação entre a pessoa coletiva e aqueles que por detrás dela atuam”.
Catarina
Serra entende que a desconsideração encontra o seu campo de aplicação quando “o
sócio ou sócios convertem a sociedade e o seu alter-ego num corporate dummy a despeito do princípio
da separação”, ou seja, como diz Tavares Moreira, quando “o sócio ou sócios
tratam e dispõem da sociedade e do património social como se fosse “coisa
própria” (e vice-versa).
A
autonomia de personalidades está disponível porque foi criada para satisfazer
necessidades e interesses da pessoa humana (sócios). Porém, como diz Castro Mendes,
“a personificação pode ser (…) instrumento de abuso”, devendo proceder-se a uma
ponderação, neste caso, de “quais os verdadeiros interesses humanos em causa”. Portanto,
a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pretende eliminar a
instrumentalização da personalidade jurídica da sociedade comercial a favor de
interesses que ultrapassem a finalidade da separação entre a personalidade
jurídica dos sócios e a personalidade jurídica da sociedade, e, consequentemente,
a autonomia patrimonial. Assim, desconsiderando a separação entre a
personalidade jurídica dos sócios e a da sociedade, é possível imputar
responsabilidade e consequências aos autores dos comportamentos. Esta será a
sua fundamentação e subsunção fáctica, pois foram os abusos que motivaram o seu
aparecimento e são eles que merecem, na prática, a sua aplicação.
Já Menezes
Cordeiro, na linha de Brito Correia, vê a desconsideração, no quadro da tutela
da boa-fé e da recuperação da confiança jurídica, como “instituto de
enquadramento” que delimita negativa e temporariamente a personalidade da
sociedade (a personalidade coletiva) “por exigência do sistema”,
aquando da verificação de condutas abusivas.
Os
tribunais nacionais acolheram lenta e tardiamente a figura da desconsideração
da personalidade jurídica e, embora analisem o tema, “raras vezes” a aplicam ao
caso concreto. Diz Coutinho de Abreu que o primeiro acórdão a abordar o tema
terá sido apenas em 1993. Contudo, há quem defenda que a receção, pela nossa
jurisprudência, desta doutrina ocorreu em 1976, no Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça, de 06-01-1976 (relator Oliveira Carvalho).
Nos
últimos anos, assistimos a uma crescente invocação deste instituto perante os
tribunais portugueses, mas são poucos os casos em que de facto se verifica a
sua aplicação pelo Tribunal à situação concreta: ou porque as partes se limitam
a invocá-la e não providenciam elementos de prova necessários, ou porque não se
faz prova da existência de fraude à lei ou abuso de direito.
Seja como
for, este instituto jurídico está cada vez mais em cima da mesa e seria bom que,
por via legislativa, se clarificasse o seu alcance e os termos da sua aplicação.
Com efeito, esta figura jurídica pretende, como finalidade última, acabar com
os “embustes” que se verificam na constituição de determinadas sociedades, sendo
que estas não passam, tantas vezes, de manobras para evitar o cumprimento da
obrigação de responsabilidade dos sócios que, de forma legal (ou
melhor, discuto:
nunca é legal a fraude ou o embuste. E, se o são na lei civil não o são na lei
penal), encontram no
tipo societário um meio de se eximirem da sua responsabilidade. Nesses casos,
está justificado o levantamento da personalidade jurídica autónoma da
sociedade. Cede o princípio da separação entre a sociedade e os sócios, para
que seja reposta a tutela da boa-fé e da confiança (valores
que devem pautar o tráfego jurídico),
que ficara manchada por atuação abusiva.
Como
explica Francisco Granjeia,
“[a] ‘personalidade jurídica da sociedade representa um instrumento
jurídico-formal para a prossecução de interesses e fins aceites e valorizados
pela ordem jurídica’, pelo que a constituição de uma sociedade é um meio legal
e legítimo de prossecução de uma atividade comercial e de limitação da responsabilidade
dos sócios. Todavia, ‘quando o princípio da separação dos bens da sociedade e
dos seus sócios e o princípio da limitação da responsabilidade proporcionado
pela sociedade são utilizados de forma abusiva pelos sócios para a prossecução
de fins ilícitos, verifica-se nesse caso um desvio à função para que foi criada
a sociedade que urge ser corrigido’.”.
***
Será que
Berardo e os que atuam como ele serão vencidos pela boa aplicação da justiça? Ou,
por serem os últimos a rir, serão quem mais e melhor rirá? De facto, os
interesses instalados têm muita força, muito poder!
2019.07.31 – Louro
de Carvalho
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