quarta-feira, 31 de julho de 2019

Arresto de obras não põe em causa Museu Coleção Berardo


O Jornal Económico avançou hoje, dia 31 de julho, pelas 12,30 horas, que estavam a decorrer no Museu Coleção Berardo, situado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, “diligências com vista ao arresto dos quadros e outras obras de arte de Berardo, decidido pelo tribunal, como garantia das dívidas” do empresário José Berardo, mais conhecido por Joe Berardo.
A presença dos agentes de execução hoje no local foi confirmada à Lusa por fontes ligadas ao processo, sem especificarem se se trata de ação de arresto ou de levantamento/inventariação das obras de arte.
Contactado pela Lusa, o assessor de José Berardo reiterou que o empresário “não foi notificado de nenhum dos arrestos, a não ser pela comunicação social”.
Já no dia 29, o jornal Público avançava que foi decretado o arresto da coleção Berardo, na sequência de providência cautelar interposta pela Caixa Geral de Depósitos (CGD), o BCP e o Novo Banco, credores da coleção de arte moderna de José Berardo.
Entretanto, o Ministério da Cultura confirmou à Lusa a veracidade da notícia do Público, ou seja, a existência de decisão judicial nesse sentido.
E, já no dia 5 de julho, foi noticiado que os títulos da Associação Coleção Berardo (ACB), dados como garantia aos bancos credores de entidades ligadas a José Berardo, foram penhorados por ordem judicial. De acordo com o Jornal Económico desse dia, a ACB considerou que não foram arrestados 100% dos títulos de participação, devido à alteração dos estatutos e ao aumento de capital que aconteceram após os títulos terem sido dados como penhora aos bancos credores.
Segundo o Público, no dia 29, decretado o arresto, os bancos confiam ao Estado a salvaguarda das obras de arte, propriedade da ACB, e que desde 2006 compõem o acervo do Museu Coleção Berardo.
A solução encontrada para resolver a dívida de quase mil milhões de euros aos três bancos e garantir a permanência da coleção no CCB, nas mãos do Estado, foi encontrada, segundo o Público, por negociação entre as instituições financeiras e os ministérios das Finanças, da Cultura, da Economia e da Justiça. E, no final do Conselho de Ministros do passado dia 16 de maio, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, garantiu que o Governo usaria “as necessárias e adequadas medidas legais” para garantir que a coleção Berardo de arte moderna continuasse inteira e acessível ao público.
Graça Fonseca afirmou então que Justiça, Finanças, Economia e Cultura, estavam articuladas para defender a “imperiosa necessidade de garantir a integridade, a não alienação e a fruição pública” das obras expostas no museu instalado num dos módulos do CCB.
Questionada sobre que medidas estavam em cima da mesa, a governante afirmou que o Governo não iria dar a José Berardo “a satisfação de as antecipar”, frisando que as hipóteses ao dispor do executivo são suficientes para garantir a integridade da coleção.
Graça Fonseca falava aos jornalistas menos de uma semana depois da audição de Berardo no Parlamento e das suas declarações, perante os deputados, na comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, que considerou “indecorosas e inadmissíveis”.
Na audição no Parlamento, em 10 de maio, o empresário disse que a garantia que os bancos têm é dos títulos de participação da ACB, e não das obras em si. Na mesma audição Berardo revelou que houve um aumento de capital na ACB, numa reunião que não contou com a presença dos bancos credores, que diluiu os títulos detidos pelos bancos como garantia. E disse, então, que não tinha de ter convocado os credores e remeteu para uma ordem do tribunal de Lisboa.
No decurso da audição, José Berardo riu-se da hipótese dizendo que, se os bancos executassem a garantia, deixaria de ser ele a mandar na ACB.
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Entretanto, hoje a Ministra da Cultura garantiu que o arresto decretado das obras de arte do empresário José Berardo não põe em causa a existência do Museu Coleção Berardo.
Questionada pela Lusa, à margem de um almoço debate sobre Cultura e Economia, em Lisboa, Graça Fonseca escusou-se a comentar a presença de agentes de execução hoje no Museu Coleção Berardo, situado no Centro Cultural de Belém. Disse a governante:
Para que a decisão do tribunal seja verdadeiramente eficaz, há um conjunto de iniciativas que o tribunal tem de fazer. [...] Nesta fase qualquer palavra a mais pode estragar tudo.”.
As obras de arte que desde 2006 compõem o acervo do Museu Coleção Berardo são propriedade da Associação Coleção Berardo e, segundo fonte ligada ao processo, só estas estão abrangidas pelo arresto decretado na sequência de uma providência cautelar interposta pela CGD, pelo BCP e pelo Novo Banco, credores de Joe Berardo.
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Todavia, não é bem assim, pois, além das obras de arte, há mais casos de arresto de bens que são propriedade ou, pelo menos, tutela de Berardo: parte da Quinta Monte Palace Tropical Garden, duas casas em Lisboa e uma propriedade de 70.000m2.
O arresto de parte da Quinta Monte Palace Tropical Garden, em razão de providência cautelar movida pela CGD, e de duas casas em Lisboa, também propriedade do empresário, são os outros dois arrestos, noticiados pela comunicação social, a que a assessoria de Berardo se refere.
O arresto de parte da Quinta Monte Palace Tropical Garden, na semana passada, foi decretado pelo Juízo Central Civil do Funchal, na sequência de uma providência cautelar movida pela CGD, como confirmou à Lusa fonte ligada ao processo. O arresto incide sobre um edifício que é a residência fiscal de Joe Berardo e onde funcionou um escritório da Fundação Berardo, como explicou a mesma fonte.
No dia 26, o jornal Eco tinha noticiado que a operação conduzida pela sociedade Abreu Advogados tinha conseguido arrestar a propriedade de 70 mil metros quadrados que havia sido doada pelo empresário à Fundação com o seu nome, em 1988 – uma propriedade que valerá várias dezenas de milhões de euros. Anteriormente, já tinha sido noticiado o arresto de duas casas em Lisboa, também propriedade do empresário.
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A arrogância, o gozo e a palhaçada do embuste Berardo caíram – assim os tribunais sejam consequentes com os ora iniciados processos de arresto. Para alguns foi invocada a figura jurídica da “desconsideração da personalidade jurídica”, que não encontra ente nós consagração legal expressa. Assim, gera controvérsia e discussão em seu torno e dá azo a uma maior reflexão permitindo que os mais entendidos continuem a contribuir para a sua construção concetual.
Neste âmbito, é de enaltecer a dissertação de mestrado em Direito e Gestão de André Tavares Moreira, em 2015, UCP-Porto sob o título “A Desconsideração da Personalidade Jurídica em Portugal e nos Estados Unidos – Breve análise doutrinal e jurisprudencial”. Obviamente só me fixo no ponto 3.1. Enquadramento jurídico (pgs 10-25).
Embora não consagrado expressamente na lei portuguesa, diz Brito Correia que, em termos de fundamentação,
Pode fundamentar-se no artigo 334.º do Código Civil, sobre o abuso de direito, entendendo que a generalidade das pessoas têm direito de constituir pessoas coletivas e de exercer atividades por intermédio delas, mas que esse direito tem limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Na verdade, o mencionado artigo estabelece, sobre o abuso do direito:
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Portanto, o fundamento da desconsideração da personalidade jurídica reconduzir-se-á “aos ditames da boa-fé”. Com efeito, “a tutela da boa-fé e da confiança alicerçam o sancionamento de condutas abusivas de direitos”, direitos que, “aparentemente, o sujeito possui, mas o modo como exerce o direito ultrapassa ostensivamente os limites que, quer a boa-fé, quer os bons costumes, quer o fim social e económico desse mesmo direito impõem”. Não se quer eliminar em definitivo a distinção entre personalidades e a separação das mesmas, mas apenas ultrapassar a personalidade jurídica da sociedade para chegar à dos sócios, visando-se “um afastamento temporário do princípio da autonomia patrimonial”.
Este “mecanismo jurídico, doutrinal e jurisprudencialmente construído”, por inspiração anglo-americana e germânica, foi invocado pela primeira vez, em Portugal, em 1945, por Ferrer Correia no estudo das sociedades unipessoais de responsabilidade limitada. E, na ausência de disposição legal explícita que defina o conteúdo, têm a doutrina e jurisprudência avançado definições e “formas de interpretação e aplicação deste instituto”.  
Para M. Fátima Ribeiro, é “operação pela qual a personalidade jurídica de uma pessoa coletiva é afastada, retirada”; para Coutinho de Abreu, pode ser definida como a “derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respetivos sócios”; e, segundo Pedro Cordeiro, é “o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa coletiva e os seus membros ou, dito de outro modo, ‘desconsiderar’ significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa coletiva e aqueles que por detrás dela atuam”.
Catarina Serra entende que a desconsideração encontra o seu campo de aplicação quando “o sócio ou sócios convertem a sociedade e o seu alter-ego num corporate dummy a despeito do princípio da separação”, ou seja, como diz Tavares Moreira, quando “o sócio ou sócios tratam e dispõem da sociedade e do património social como se fosse “coisa própria” (e vice-versa).
A autonomia de personalidades está disponível porque foi criada para satisfazer necessidades e interesses da pessoa humana (sócios). Porém, como diz Castro Mendes, “a personificação pode ser (…) instrumento de abuso”, devendo proceder-se a uma ponderação, neste caso, de “quais os verdadeiros interesses humanos em causa”. Portanto, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pretende eliminar a instrumentalização da personalidade jurídica da sociedade comercial a favor de interesses que ultrapassem a finalidade da separação entre a personalidade jurídica dos sócios e a personalidade jurídica da sociedade, e, consequentemente, a autonomia patrimonial. Assim, desconsiderando a separação entre a personalidade jurídica dos sócios e a da sociedade, é possível imputar responsabilidade e consequências aos autores dos comportamentos. Esta será a sua fundamentação e subsunção fáctica, pois foram os abusos que motivaram o seu aparecimento e são eles que merecem, na prática, a sua aplicação.
Já Menezes Cordeiro, na linha de Brito Correia, vê a desconsideração, no quadro da tutela da boa-fé e da recuperação da confiança jurídica, como “instituto de enquadramento” que delimita negativa e temporariamente a personalidade da sociedade (a personalidade coletiva) “por exigência do sistema”, aquando da verificação de condutas abusivas.
Os tribunais nacionais acolheram lenta e tardiamente a figura da desconsideração da personalidade jurídica e, embora analisem o tema, “raras vezes” a aplicam ao caso concreto. Diz Coutinho de Abreu que o primeiro acórdão a abordar o tema terá sido apenas em 1993. Contudo, há quem defenda que a receção, pela nossa jurisprudência, desta doutrina ocorreu em 1976, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-01-1976 (relator Oliveira Carvalho).
Nos últimos anos, assistimos a uma crescente invocação deste instituto perante os tribunais portugueses, mas são poucos os casos em que de facto se verifica a sua aplicação pelo Tribunal à situação concreta: ou porque as partes se limitam a invocá-la e não providenciam elementos de prova necessários, ou porque não se faz prova da existência de fraude à lei ou abuso de direito.
Seja como for, este instituto jurídico está cada vez mais em cima da mesa e seria bom que, por via legislativa, se clarificasse o seu alcance e os termos da sua aplicação. Com efeito, esta figura jurídica pretende, como finalidade última, acabar com os “embustes” que se verificam na constituição de determinadas sociedades, sendo que estas não passam, tantas vezes, de manobras para evitar o cumprimento da obrigação de responsabilidade dos sócios que, de forma legal (ou melhor, discuto: nunca é legal a fraude ou o embuste. E, se o são na lei civil não o são na lei penal), encontram no tipo societário um meio de se eximirem da sua responsabilidade. Nesses casos, está justificado o levantamento da personalidade jurídica autónoma da sociedade. Cede o princípio da separação entre a sociedade e os sócios, para que seja reposta a tutela da boa-fé e da confiança (valores que devem pautar o tráfego jurídico), que ficara manchada por atuação abusiva.
Como explica Francisco Granjeia,
[a] ‘personalidade jurídica da sociedade representa um instrumento jurídico-formal para a prossecução de interesses e fins aceites e valorizados pela ordem jurídica’, pelo que a constituição de uma sociedade é um meio legal e legítimo de prossecução de uma atividade comercial e de limitação da responsabilidade dos sócios. Todavia, ‘quando o princípio da separação dos bens da sociedade e dos seus sócios e o princípio da limitação da responsabilidade proporcionado pela sociedade são utilizados de forma abusiva pelos sócios para a prossecução de fins ilícitos, verifica-se nesse caso um desvio à função para que foi criada a sociedade que urge ser corrigido’.”.
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Será que Berardo e os que atuam como ele serão vencidos pela boa aplicação da justiça? Ou, por serem os últimos a rir, serão quem mais e melhor rirá? De facto, os interesses instalados têm muita força, muito poder!
2019.07.31 – Louro de Carvalho

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