A propósito
da votação parlamentar na especialidade sobre a contagem integral do tempo de
serviço congelado dos professores, alguns constitucionalistas vieram a terreiro
clamar pela inconstitucionalidade da medida em nome do princípio da igualdade e
por os deputados não poderem ter uma iniciativa legislativa que no mesmo ano
económico comporte um aumento da despesa pública. E, mesmo aqueles que não a
veem ferida de inconstitucionalidade não se desenvencilharam claramente do
óbice atinente ao princípio da igualdade. Dá-me a impressão de que o mesmo se
invoca ou se olvida de acordo com a conveniência.
***
“Isonomia” é
um termo que remonta ao grego “isonomía, -as” (composto do adjetivo isós, -ê, -on – igual + o nome nomos
– lei) a significar: repartição por igual, igualdade de
direitos, democracia. E tinha como cognato o adjetivo “isónomos, -on”,
que significa: que tem iguais direitos, fundado sobre a igualdade de direitos,
democrático. Assim, em português,
trata-se de um nome feminino que, em termos jurídicos, consiste na igualdade política e perante a lei, de
que sobressai como exemplo a isonomia salarial como aplicação deste princípio
constitucional. Enquanto princípio fundamental do direito, está assegurado nas
Constituições dos países democráticos e, à sua luz, todos são iguais perante a lei, não podendo haver nenhuma
distinção em relação a pessoas que estejam na mesma situação.
Por
extensão, também se designa por isonomia a condição ou estado daqueles que são
governados pelas mesmas leis. E, por
transferência de campos, aplica-se em mineralogia à conformidade no modo de cristalização.
Por seu
turno, isónomo é um adjetivo que significa “em que há isonomia”; e, em
mineralogia, “que cristaliza segundo a mesma lei”. E a aludida isonomia
salarial, como regista o Aulete Digital,
é um conceito de lei laboral segundo o qual deve haver remunerações
iguais para atividades ou funções semelhantes na mesma empresa ou instituição.
***
O princípio da igualdade ou da isonomia terá provavelmente
sido observado em Atenas, na Grécia antiga, cerca de 508 a.C.
por Clístenes, o pai da democracia ateniense. No entanto, a sua conceção
mais próxima do modelo atual data de 1215 d.C., quando o Rei João Sem-Terra assina
a Magna Carta (sendo esta, segundo alguns, o
arquétipo da monarquia constitucional), de onde se origina o princípio da legalidade (parente muito próximo do da igualdade), com o intuito de resguardar os
direitos dos burgomestres, que apoiaram o Rei na tomada do trono de Ricardo
Coração de Leão. É um princípio jurídico assegurado nas Constituições do
países democráticos (ou
que se têm como tais), que
enforma a todos os ramos do direito e segundo o qual “todos são iguais perante a lei” e na lei, independentemente
da sua riqueza ou prestígio.
Deve ser
considerado em dois aspetos: o da igualdade na lei, a qual é
destinada ao legislador e ao próprio executivo, que, na elaboração das leis,
atos normativos e medidas provisórias, não poderão fazer nenhuma discriminação;
e o da igualdade perante a lei, que se traduz na exigência de que
os poderes executivo e judiciário, na aplicação da lei, não façam qualquer
discriminação.
Este
princípio, aliás como todos os outros, pode ser relativizado de acordo com as
cambiantes do caso em concreto. A doutrina e a jurisprudência já assentam no
pressuposto de que a igualdade jurídica consiste em assegurar às pessoas de
situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, com as
obrigações correspondentes, o que significa “tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”, visando sempre
o equilíbrio entre todos em termos da equidade. Tudo espremido, conclui-se desastradamente
que a “igualdade” não passa dum conceito simbólico imposto e gerido por quem
domina. Não obstante e obviamente,
a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o princípio da igualdade. E a sua norma fundante é o art.º
13.º, que estabelece:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade
social e são iguais perante a lei.
“2. Ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever
em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição
social ou orientação sexual.”
Mas a
CRP invoca-o em diversos dos seus preceitos. Assim, por exemplo, a alínea d) do art.º 9.º declara que incumbe ao
Estado, como sua tarefa fundamental, “promover
o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os
portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais
e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas
e sociais” e, segundo alínea h)
do mesmo artigo, compete-lhe “promover a
igualdade entre homens e mulheres”. Por seu turno, sob a epígrafe “Liberdade
de escolha de profissão e acesso à função pública”, o n.º 2 do art.º 47.º estabelece
que “todos os cidadãos têm o direito de
acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por
via de concurso”. De igual forma, a alínea b) do n.º 2 do art.º 58.º, no âmbito do direito ao trabalho, estabelece
que incumbe ao Estado promover “a
igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e
condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a
quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais”. Também no domínio dos
direitos e deveres culturais, nos termos do n.º 2 do art.º 73.º, compete ao Estado
promover “a democratização da educação e
as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de
outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a
superação das desigualdades económicas, sociais e culturais”, sendo que,
nos termos do n.º 1 do art.º 74.º, “todos
têm direito ao ensino com garantia do direito a igualdade de oportunidades de acesso
e êxito escolar”, incumbindo ao Estado, nos termos da alínea h) do n.º 2 do mesmo artigo, “proteger e valorizar a língua gestual
portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso a educação e da
igualdade de oportunidades”. De igual forma, nos termos do n.º 1 do art.º 76.º,
consagra a CRP o acesso à Universidade e demais instituições do ensino superior
em condições de igualdade de oportunidades. Também constitui “incumbência prioritária
do Estado”, segundo o estipulado na alínea b)
do art.º 81.º, “assegurar a igualdade de
oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na
distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política
fiscal”. Em matéria de política agrícola, é objetivo do Estado, nos termos
da alínea c) do n.º 1 do art.º 93.º,
“criar as condições necessárias para atingir a igualdade efetiva dos que
trabalham na agricultura com os demais trabalhadores e evitar que o setor agrícola seja desfavorecido nas relações de troca
com os outros setores”. Em matéria fiscal, determina o n.º 4 do art.º 104.º
que “a tributação do património deve
contribuir para a igualdade entre os cidadãos”. De igual importância é a
consagração explícita no art.º 109.º (participação política
dos cidadãos) de que
a lei deve “promover a igualdade no exercício
dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no
acesso a cargos políticos”. Por fim, mas não por último, a CRP consagra, no
n.º 2 do art.º 266.º, o princípio da igualdade como um dos princípios fundamentais
de atuação dos órgãos e agentes administrativos, a par dos princípios “da
legalidade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.
Todas
estas normas revelam como preocupação constante e objetivo do Estado de direito
português a realização da igualdade efetiva entre os cidadãos, como forma de os
dignificar a si mesmos e à sociedade que integram. Assim, a igualdade é uma das
formas de realização da justiça individual e coletiva. Porém, as desigualdades
subsistem e são contrárias ao Estado de direito e à Constituição. Por isso, o
combate as desigualdades é obrigação prioritária do Estado e exige a adoção das
medidas positivas que se revelem necessárias. O cidadão em geral e os juristas
em especial são chamados a dar um contributo decisivo na verificação e denúncia
de desigualdades, bem como na reflexão sobre a forma como as esbater e anular.
Mas nem sempre é fácil descortinar se uma situação concreta configura uma real
e inevitável desigualdade.
Por
outro lado, a CRP garante a igualdade de diferentes modos e em diferentes graus
de intensidade: princípio geral da igualdade; igualdade perante a lei ou
igualdade na aplicação da lei; igualdade da lei ou igualdade na criação da lei. Em contraponto,
proíbe qualquer tipo de discriminação negativa e impõe discriminações
positivas, consoante as circunstâncias concretas. Não exige uma igualdade
meramente formal nem se satisfaz com ela. Antes, pretende uma igualdade de efetividade
e justiça, ao mesmo tempo que proíbe o tratamento discriminatório não
fundamentado no direito e nos factos. Por isso, quaisquer tratamentos desiguais
terão de assentar em razões suficientemente justificativas, sendo que nem todas
as circunstâncias diferentes são justificativas de tratamentos desiguais. Há
imperativos especiais de igualdade e há proibições de discriminação positiva ou
negativa. A fundamentação dos tratamentos desiguais está, pela sua relevância e
melindre, sujeita a exigências especiais.
Sobre o
Estado recai a incumbência de criar, manter e promover a igualdade material
entre os cidadãos, por exemplo no domínio dos direitos de pessoas de sexo
diferente, bem como de assegurar, política e juridicamente, a maior liberdade e
igualdade social possíveis – o ótimo possível. Mas surgem frequentemente
conflitos entre a liberdade de ação do mais forte e a igualdade de
oportunidades do mais fraco. Compete ao legislador determinar (nos limites inerentes ao Estado de
direito) a
margem a deixar aos mais fortes e a igualdade a assegurar aos mais fracos. O
respeito pelos direitos fundamentais impõe limites em ambos os casos. É
necessário um fundamento justificativo tanto para restringir a liberdade como para
impor um tratamento desigual. Porém, enquanto nos direitos de liberdade à
verificação duma ingerência se alia a necessidade da justificação
jurídico-constitucional, o controlo da igualdade faz-se em dois momentos:
constatação da desigualdade e sua justificação jurídica, se for o caso; e, ao
invés, encontro da forma de a esbater ou anular. Quanta inconstitucionalidade
por omissão há por aí!
***
No caso
da recuperação integral do tempo de serviço dos professores, levanta-se o
burburinho pela igualdade, quando se trata duma situação específica, para não
falar da “desigualdade” surgida com o estabelecido para os professores dos
Açores e da Madeira, podendo conferir um benefício resultante do território
de origem. Já esqueceu a opinião pública que os funcionários do regime
geral viram o tempo de serviço recuperado por iniciativa do Governo (na
ótica da preconização do fim da austeridade), sem que alguém tenha pedido o descongelamento
retroativo das carreiras, ficando prometido aos regimes especiais a contagem do
tempo de serviço (e não uma fração) remetida para negociação entre
o Governo e os respetivos sindicatos, que definiria o tempo e o modo. Isto,
segundo dias leis consecutivas do Orçamento do Estado (vd
art.º 19.º da LOE para 2018 e art.º 17.º da LOE para 219) e segundo Resolução parlamentar
(também
votada pelo PS) a
recomendar isso mesmo ao Governo.
Ora a
primeira classe a reivindicar o tempo e o modo de recuperação do tempo de
serviço foi a classe docente, que o conseguiu nas Regiões Autónomas, mas, pelos
vistos, em nome da igualdade, não o consegue no Continente. Diz-se que todos os
outros funcionários do Estado querem solução igual à dos professores.
Esquece-se, porém, que os professores são dos poucos grupos em que não há lugar
a prémios de desempenho, nem a promoções nem a participação nas receitas
cobradas pelo serviço a que estão vinculados. Com efeito, trabalhadores como os
das Contribuições e Impostos e do Instituto Nacional dos Registos (INR) recebem com o salário-base uma
remuneração fixa pelo desempenho a título de participação das receitas e remuneração
por trabalhos específicos como escrituras, no caso dos cartórios notariais (alguns são privados), e
nos casamentos, no caso das conservatórias do Registo Civil.
Algumas polícias também são pagas à parte por certos policiamentos que não
fazem parte do seu conteúdo funcional regular.
Convém
referir que a participação nas receitas do serviço além de não ser extensiva a
todos (lá
se vai a igualdade)
não se justificaria, a não ser como incentivo ao trabalho, que geralmente não
compensa, mercê dos atrasos e falhas mais que muitas. Além disso, as receitas
não são ou não deviam ser privativas dos serviços, mas do Estado, para o qual
os serviços funcionam. Ora, porque é que o Estado-patrão paga alcavalas a uns e
a outros não? Como é que permite que dezenas de funcionários do INR recebam
salário superior ao do Presidente da República, a que, por lei, estão indexados
os demais na Administração Pública, e umas centenas recebam mais que o
Primeiro-Ministro? E como é que se permite que tantos funcionários públicos
tenham um salário de 630 euros e se organiza um caro processo judicial para
punir o furto de 25 euros?
Fala-se
de contas a propósito dos professores e dos funcionários públicos em geral. Mas
porque há números para todos os gostos e com base em que variáveis? Centeno,
que sabe de variáveis económicas, que nos explique de modo que se entenda tudo
e não deitando poeira nos olhos.
Que os
privados foram mais prejudicados e espoliados. Ora, foram despedidos muitos
funcionários públicos contratados a termo (e professores foram aos
milhares); muitos
funcionários públicos dos quadros foram desligados do serviço por mútuo acordo
(tirada
eufemística) e com
indemnização de miséria; e muitos sentiram-se impelidos para a aposentação
antecipada com forte penalização. Quanto a cortes de salário, de subsídios,
aumento brutal de impostos e tantas coisas mais, estamos quites, públicos e
privados. Enfim, olha-se para a igualdade quando dá jeito. Já esquecemos que
sempre há dinheiro para a banca falida e não falida, para capitalização e
recapitalização, para abertura de empresas sobre os escombros de empresas
falidas, sem imputar responsabilidades a empresários e gestores, para pagar bem
a administradores públicos e privados, para sustentar megaprocessos judiciais
sem fim à vista. Mas o Governo, que fala baixinho a esses, a professores e
funcionários públicos em geral fala alto, dá murros na mesa e ameaça com a
demissão. Funcionam as instituições se o Estado não paga, senhor Presidente?
Boa,
Costa e Centeno, por mim, tanto podeis ir como não ir! E aos deputados a
deliberar sobre matéria justa, mas relegando a sua concretização para as
calendas gregas… valha-lhes Deus!
E temos
isonomia e somos isónomos cristalizando pobremente enquanto engrossam os nababos.
2019.05.06 –
Louro de Carvalho
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