terça-feira, 7 de maio de 2019

Do princípio da isonomia ou igualdade constitucional


A propósito da votação parlamentar na especialidade sobre a contagem integral do tempo de serviço congelado dos professores, alguns constitucionalistas vieram a terreiro clamar pela inconstitucionalidade da medida em nome do princípio da igualdade e por os deputados não poderem ter uma iniciativa legislativa que no mesmo ano económico comporte um aumento da despesa pública. E, mesmo aqueles que não a veem ferida de inconstitucionalidade não se desenvencilharam claramente do óbice atinente ao princípio da igualdade. Dá-me a impressão de que o mesmo se invoca ou se olvida de acordo com a conveniência.
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“Isonomia” é um termo que remonta ao grego “isonomía, -as” (composto do adjetivo isós, -ê, -on – igual + o nome nomos – lei) a significar: repartição por igual, igualdade de direitos, democracia. E tinha como cognato o adjetivo “isónomos, -on”, que significa: que tem iguais direitos, fundado sobre a igualdade de direitos, democrático. Assim, em português, trata-se de um nome feminino que, em termos jurídicos, consiste na igualdade política e perante a lei, de que sobressai como exemplo a isonomia salarial como aplicação deste princípio constitucional. Enquanto princípio fundamental do direito, está assegurado nas Constituições dos países democráticos e, à sua luz, todos são iguais perante a lei, não podendo haver nenhuma distinção em relação a pessoas que estejam na mesma situação.
Por extensão, também se designa por isonomia a condição ou estado daqueles que são governados pelas mesmas leis. E, por transferência de campos, aplica-se em mineralogia à conformidade no modo de cristalização.
Por seu turno, isónomo é um adjetivo que significa “em que há isonomia”; e, em mineralogia, “que cristaliza segundo a mesma lei”. E a aludida isonomia salarial, como regista o Aulete Digital, é um conceito de lei laboral segundo o qual deve haver remunerações iguais para atividades ou funções semelhantes na mesma empresa ou instituição.
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princípio da igualdade ou da isonomia terá provavelmente sido observado em Atenas, na Grécia antiga, cerca de 508 a.C. por Clístenes, o pai da democracia ateniense. No entanto, a sua conceção mais próxima do modelo atual data de 1215 d.C., quando o Rei João Sem-Terra assina a Magna Carta (sendo esta, segundo alguns, o arquétipo da monarquia constitucional), de onde se origina o princípio da legalidade (parente muito próximo do da igualdade), com o intuito de resguardar os direitos dos burgomestres, que apoiaram o Rei na tomada do trono de Ricardo Coração de Leão. É um princípio jurídico assegurado nas Constituições do países democráticos (ou que se têm como tais), que enforma a todos os ramos do direito e segundo o qual todos são iguais perante a lei” e na lei,  independentemente da sua riqueza ou prestígio.
Deve ser considerado em dois aspetos: o da igualdade na lei, a qual é destinada ao legislador e ao próprio executivo, que, na elaboração das leis, atos normativos e medidas provisórias, não poderão fazer nenhuma discriminação; e o da igualdade perante a lei, que se traduz na exigência de que os poderes executivo e judiciário, na aplicação da lei, não façam qualquer discriminação.
Este princípio, aliás como todos os outros, pode ser relativizado de acordo com as cambiantes do caso em concreto. A doutrina e a jurisprudência já assentam no pressuposto de que a igualdade jurídica consiste em assegurar às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, com as obrigações correspondentes, o que significa “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”, visando sempre o equilíbrio entre todos em termos da equidade. Tudo espremido, conclui-se desastradamente que a “igualdade” não passa dum conceito simbólico imposto e gerido por quem domina. Não obstante e obviamente, a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o princípio da igualdade. E a sua norma fundante é o art.º 13.º, que estabelece:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Mas a CRP invoca-o em diversos dos seus preceitos. Assim, por exemplo, a alínea d) do art.º 9.º declara que incumbe ao Estado, como sua tarefa fundamental, “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais” e, segundo alínea h) do mesmo artigo, compete-lhe “promover a igualdade entre homens e mulheres”. Por seu turno, sob a epígrafe “Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública”, o n.º 2 do art.º 47.º estabelece que “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”. De igual forma, a alínea b) do n.º 2 do art.º 58.º, no âmbito do direito ao trabalho, estabelece que incumbe ao Estado promover “a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais”. Também no domínio dos direitos e deveres culturais, nos termos do n.º 2 do art.º 73.º, compete ao Estado promover “a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais”, sendo que, nos termos do n.º 1 do art.º 74.º, “todos têm direito ao ensino com garantia do direito a igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar”, incumbindo ao Estado, nos termos da alínea h) do n.º 2 do mesmo artigo, “proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso a educação e da igualdade de oportunidades”. De igual forma, nos termos do n.º 1 do art.º 76.º, consagra a CRP o acesso à Universidade e demais instituições do ensino superior em condições de igualdade de oportunidades. Também constitui “incumbência prioritária do Estado”, segundo o estipulado na alínea b) do art.º 81.º, “assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal”. Em matéria de política agrícola, é objetivo do Estado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 93.º, “criar as condições necessárias para atingir a igualdade efetiva dos que trabalham na agricultura com os demais trabalhadores e evitar que o setor agrícola seja desfavorecido nas relações de troca com os outros setores”. Em matéria fiscal, determina o n.º 4 do art.º 104.º que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”. De igual importância é a consagração explícita no art.º 109.º (participação política dos cidadãos) de que a lei deve “promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”. Por fim, mas não por último, a CRP consagra, no n.º 2 do art.º 266.º, o princípio da igualdade como um dos princípios fundamentais de atuação dos órgãos e agentes administrativos, a par dos princípios “da legalidade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.
Todas estas normas revelam como preocupação constante e objetivo do Estado de direito português a realização da igualdade efetiva entre os cidadãos, como forma de os dignificar a si mesmos e à sociedade que integram. Assim, a igualdade é uma das formas de realização da justiça individual e coletiva. Porém, as desigualdades subsistem e são contrárias ao Estado de direito e à Constituição. Por isso, o combate as desigualdades é obrigação prioritária do Estado e exige a adoção das medidas positivas que se revelem necessárias. O cidadão em geral e os juristas em especial são chamados a dar um contributo decisivo na verificação e denúncia de desigualdades, bem como na reflexão sobre a forma como as esbater e anular. Mas nem sempre é fácil descortinar se uma situação concreta configura uma real e inevitável desigualdade.
Por outro lado, a CRP garante a igualdade de diferentes modos e em diferentes graus de intensidade: princípio geral da igualdade; igualdade perante a lei ou igualdade na aplicação da lei; igualdade da lei ou igualdade na criação da lei. Em contraponto, proíbe qualquer tipo de discriminação negativa e impõe discriminações positivas, consoante as circunstâncias concretas. Não exige uma igualdade meramente formal nem se satisfaz com ela. Antes, pretende uma igualdade de efetividade e justiça, ao mesmo tempo que proíbe o tratamento discriminatório não fundamentado no direito e nos factos. Por isso, quaisquer tratamentos desiguais terão de assentar em razões suficientemente justificativas, sendo que nem todas as circunstâncias diferentes são justificativas de tratamentos desiguais. Há imperativos especiais de igualdade e há proibições de discriminação positiva ou negativa. A fundamentação dos tratamentos desiguais está, pela sua relevância e melindre, sujeita a exigências especiais.
Sobre o Estado recai a incumbência de criar, manter e promover a igualdade material entre os cidadãos, por exemplo no domínio dos direitos de pessoas de sexo diferente, bem como de assegurar, política e juridicamente, a maior liberdade e igualdade social possíveis – o ótimo possível. Mas surgem frequentemente conflitos entre a liberdade de ação do mais forte e a igualdade de oportunidades do mais fraco. Compete ao legislador determinar (nos limites inerentes ao Estado de direito) a margem a deixar aos mais fortes e a igualdade a assegurar aos mais fracos. O respeito pelos direitos fundamentais impõe limites em ambos os casos. É necessário um fundamento justificativo tanto para restringir a liberdade como para impor um tratamento desigual. Porém, enquanto nos direitos de liberdade à verificação duma ingerência se alia a necessidade da justificação jurídico-constitucional, o controlo da igualdade faz-se em dois momentos: constatação da desigualdade e sua justificação jurídica, se for o caso; e, ao invés, encontro da forma de a esbater ou anular. Quanta inconstitucionalidade por omissão há por aí!
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No caso da recuperação integral do tempo de serviço dos professores, levanta-se o burburinho pela igualdade, quando se trata duma situação específica, para não falar da “desigualdade” surgida com o estabelecido para os professores dos Açores e da Madeira, podendo conferir um benefício resultante do território de origem. Já esqueceu a opinião pública que os funcionários do regime geral viram o tempo de serviço recuperado por iniciativa do Governo (na ótica da preconização do fim da austeridade), sem que alguém tenha pedido o descongelamento retroativo das carreiras, ficando prometido aos regimes especiais a contagem do tempo de serviço (e não uma fração) remetida para negociação entre o Governo e os respetivos sindicatos, que definiria o tempo e o modo. Isto, segundo dias leis consecutivas do Orçamento do Estado (vd art.º 19.º da LOE para 2018 e art.º 17.º da LOE para 219) e segundo Resolução parlamentar (também votada pelo PS) a recomendar isso mesmo ao Governo.
Ora a primeira classe a reivindicar o tempo e o modo de recuperação do tempo de serviço foi a classe docente, que o conseguiu nas Regiões Autónomas, mas, pelos vistos, em nome da igualdade, não o consegue no Continente. Diz-se que todos os outros funcionários do Estado querem solução igual à dos professores. Esquece-se, porém, que os professores são dos poucos grupos em que não há lugar a prémios de desempenho, nem a promoções nem a participação nas receitas cobradas pelo serviço a que estão vinculados. Com efeito, trabalhadores como os das Contribuições e Impostos e do Instituto Nacional dos Registos (INR) recebem com o salário-base uma remuneração fixa pelo desempenho a título de participação das receitas e remuneração por trabalhos específicos como escrituras, no caso dos cartórios notariais (alguns são privados), e nos casamentos, no caso das conservatórias do Registo Civil. Algumas polícias também são pagas à parte por certos policiamentos que não fazem parte do seu conteúdo funcional regular.
Convém referir que a participação nas receitas do serviço além de não ser extensiva a todos (lá se vai a igualdade) não se justificaria, a não ser como incentivo ao trabalho, que geralmente não compensa, mercê dos atrasos e falhas mais que muitas. Além disso, as receitas não são ou não deviam ser privativas dos serviços, mas do Estado, para o qual os serviços funcionam. Ora, porque é que o Estado-patrão paga alcavalas a uns e a outros não? Como é que permite que dezenas de funcionários do INR recebam salário superior ao do Presidente da República, a que, por lei, estão indexados os demais na Administração Pública, e umas centenas recebam mais que o Primeiro-Ministro? E como é que se permite que tantos funcionários públicos tenham um salário de 630 euros e se organiza um caro processo judicial para punir o furto de 25 euros?
Fala-se de contas a propósito dos professores e dos funcionários públicos em geral. Mas porque há números para todos os gostos e com base em que variáveis? Centeno, que sabe de variáveis económicas, que nos explique de modo que se entenda tudo e não deitando poeira nos olhos.
Que os privados foram mais prejudicados e espoliados. Ora, foram despedidos muitos funcionários públicos contratados a termo (e professores foram aos milhares); muitos funcionários públicos dos quadros foram desligados do serviço por mútuo acordo (tirada eufemística) e com indemnização de miséria; e muitos sentiram-se impelidos para a aposentação antecipada com forte penalização. Quanto a cortes de salário, de subsídios, aumento brutal de impostos e tantas coisas mais, estamos quites, públicos e privados. Enfim, olha-se para a igualdade quando dá jeito. Já esquecemos que sempre há dinheiro para a banca falida e não falida, para capitalização e recapitalização, para abertura de empresas sobre os escombros de empresas falidas, sem imputar responsabilidades a empresários e gestores, para pagar bem a administradores públicos e privados, para sustentar megaprocessos judiciais sem fim à vista. Mas o Governo, que fala baixinho a esses, a professores e funcionários públicos em geral fala alto, dá murros na mesa e ameaça com a demissão. Funcionam as instituições se o Estado não paga, senhor Presidente?
Boa, Costa e Centeno, por mim, tanto podeis ir como não ir! E aos deputados a deliberar sobre matéria justa, mas relegando a sua concretização para as calendas gregas… valha-lhes Deus!
E temos isonomia e somos isónomos cristalizando pobremente enquanto engrossam os nababos.
2019.05.06 – Louro de Carvalho

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