terça-feira, 28 de maio de 2019

Biblioteca Vaticana, um local para frequentar o futuro


O Arcebispo Dom José Tolentino Mendonça, em entrevista à agência Ecclesia, publicada a 26 de maio, assinala a importância do património documental postado em 50 quilómetros de prateleiras da Biblioteca Apostólica Vaticana (num Salão de 70m x 11m) para o conhecimento dos saberes do cristianismo e dá conta da sua colaboração com o programa do pontificado de Francisco pelo trabalho das suas duas equipas, a da Biblioteca e a do Arquivo Secreto. 
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Considerando uma biblioteca como um “grande património” e um “lugar de identidade”, em que os livros e objetos similares documentam e contam “uma história” de família, enfatiza:  
A nossa história vem de longe, são dois mil anos de história. É evidente que os primeiríssimos documentos, hoje conservados na Biblioteca Apostólica, são do final do século II. Mas remontam a uma tradição que pretende conservar as palavras, os ditos, os gestos do próprio Jesus.”.
E essa tradição estriba-se em dois lugares teológicos: a escuta da Palavra e a ação em memória de Jesus. E o prelado vinca os dois aspetos exemplificando: 
Aquela passagem de São Lucas que diz que Maria conservava no seu coração aquilo que a Jesus dizia respeito – o esforço é esse, que a Igreja sempre fez e é um esforço que se liga à Eucaristia, onde se diz ‘Fazei isto em memória de mim’. A conservação da memória foi sempre algo muito importante para as comunidades cristãs. Ao longo dos séculos a conservação da memória teve formas muito diferentes.”.
Em relação à memória da Biblioteca que lidera, testemunha o fraquinho do cristianismo pela pessoa humana e pela História contextualizando:
Esta [história], de que a Biblioteca Apostólica do Vaticano é diretamente herdeira, tem cinco séculos, nasce no meio de uma grande cultura humanista, onde o interesse pela teologia e as ciências sagradas se alia ao interesse por tudo o que é humano. É uma biblioteca 360º, tem uma latitude desde o saber teológico, à astronomia, matemática, arquitetura, medicina… Tudo o que é humano está dentro desta biblioteca e, neste sentido, é um espelho muito fiel da paixão do cristianismo pela pessoa humana e pela História.”.
Relata que, apesar de, após a sua entrada em funções, já ter sido incorporado um colaborador, é o mais novo de quantos ali trabalham, pelo que pediu a todos que o ajudassem a “entender a Biblioteca Apostólica”, e que tem encontrado “um testemunho muito grande” em todos, que “são um tesouro a par dos livros”, “os quais são de efetivamente tesouros “intermináveis”.
Sendo uma das tarefas da Biblioteca a catalogação e o estudo do próprio “material”, regista que “isso é uma tarefa para séculos”, que “sabemos, mais ou menos tudo, o que temos”, mas que é extraordinário ver o “significado de cada um dos volumes” e “as relações entre eles”. E, exemplificando com um exemplo português, observa:
Na Biblioteca nós temos uma quantidade muito significativa de livros de ciências e de marinhagem, da arte de navegar, do século XVI. É evidente que, dentro do amplo património da Biblioteca Apostólica do Vaticano, isto são coisas marginais. Mas, para um português que percebe que aqueles livros são exemplares raríssimos, que aqueles livros serviram para a obra da expansão marítima, que foram impressos em Lisboa ou Chaves, ou em Leiria, que têm nomes que estão no coração e na cultura, damos imenso valor às obras. Ver uma obra do Pedro Nunes, uma obra matemática ou ver o tratado de marinhagem, folheá-lo ou ver o cancioneiro galaico-português…”.
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É de anotar que na sua crónica “Tesouros Portugueses”, na Revista do Expresso, de 24 de maio, no âmbito da rubrica “Que coisa são as nuvens”, apontava que é fácil “que qualquer cultura ou nação encontre na Biblioteca Apostólica um seu tesouro representado que esse seja um primeiro motivo para cultivar curiosidade, afeto e colaboração científica com este organismo”. E, falando de Portugal, menciona como “um dos documentos portugueses mais icónicos”, o “Cancioneiro da Vaticana” (copiado na Itália no final do século XV ou no início do século XVI), que reúne 1205 composições da lírica trovadoresca galaico-portuguesa (de todos os géneros), “tornando-se assim uma das fontes essenciais que documentam a emergência da nossa língua e literatura”. Depois, menciona, no quadro da literatura científica ligada a Portugal, o caso clamoroso do “Regimento do astrolábio e do quadrante”, “o mais antigo opúsculo conhecido e impresso com regras náuticas, por onde gerações de pilotos se iniciaram nas ciências da cosmografia e navegação e que teve uma edição na oficina de Herman de Campos, nos inícios de 1500”. E frisa:
Há cem anos que a historiografia portuguesa, partindo da descoberta que Joaquim Bensaúde fez na Biblioteca estatal de Munique fala apenas desse exemplar e de uma outra versão depositada na Biblioteca Municipal de Évora, desconhecendo o exemplar, em excelente estado de conservação, que se encontra na Vaticana”.               
E formula uma esperançosa hipótese:  
“Quem sabe se uma nova geração de historiadores portugueses se interessará, com o afinco e os meios necessários, em trabalhar os fundos da Biblioteca Apostólica e do Arquivo Secreto, tão decisivos para a explicação de Portugal”. 
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Voltando à entrevista, diz que sente “grande alegria quando lá vão portugueses”. E, se lá vai um escritor, faz questão de lhe mostrar “o nosso cancioneiro do Vaticano” e comenta:
É maravilhoso ver a profunda emoção ao perceber como este interesse pelo humano e a ligação que a cultura permite, que é uma ligação que toca até á alma, está bem patente na Biblioteca Apostólica do Vaticano”.
Um antigo colaborador, já reformado, confessou-lhe:
Penso sobretudo que a Biblioteca é um cartão de visita ótimo do que é o Cristianismo ou do que é a Igreja, para um ateu ou para um não crente, porque ele entra aqui e fica em sentido, fica em alerta e cheio de perguntas”.
Ali fica-se “a pensar sobre o que é o Cristianismo ou a Igreja”. A Biblioteca “é um projeto tão grandioso e tocante, tão amplo e abrangente que não deixa ninguém indiferente”.
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A Biblioteca (hoje existente) mais antiga da Europa (não a primeira biblioteca papal) construiu-se ao longo do tempo, com muitas doações. E os Papas são os grandes benfeitores da Biblioteca que é deles. “Foi o Papa Nicolau V (1447-11455) que ofereceu os 150 volumes iniciais” e a instalou a Biblioteca no Palácio dos Papas (Sisto V transferiu-a para o Salão Sistino no final do século XVI). Agora são 1 600 000 volumes impressos, a partir da aquisição de “vários fundos de família, fundos célebres, como da rainha Cristina da Suécia” (E “hoje continuamos a acolher” – diz o Arcebispo). E tem mais de 180 mil volumes de manuscritos e arquivos, 8,6 mil incunábulos, 300 mil moedas e medalhas, 150 mil gravuras e desenhos e 150 mil fotografias. (Os arquivos secretos do Vaticano foram separados da Biblioteca no início do século XVII). Os muitos volumes mostram o interesse, nos vários pontificados, por todos os saberes e todos os Papas têm contribuído para o aumento do património da Biblioteca. E José Tolentino fala sobre os livros que tem recebido de Francisco:
Ele tem oferecido coisas muito pessoais, como livros de etnologia da América Latina, da Argentina, coisas linguísticas que são muito preciosas para aquela zona do mundo de onde provém o Santo Padre. Depois, também livros que o apaixonam. Ele até contou isso na viagem para a JMJ no Panamá: antes de partir, tinha enviado uns livros preciosos sobre Santo António de Pádua e eu, na resposta à oferta, disse ‘agradeço muito, Santidade, os livros de Santo António de Pádua e Lisboa’. Para dizer como os livros que ele oferece é aquilo que ele considera como o mais precioso que pode estar na sua Biblioteca, refletindo muito os encontros que ele tem, aquilo que as pessoas sabem que é o gosto dele, o que tem mais a ver com o carisma dele.”.
Porém, a maior oferta foi a visita do Papa ao espaço, foi a primeira visita de Francisco ao seu Arquivo, à sua Biblioteca. E diz Dom José Tolentino:
Foi um momento de grande comoção para todos nós, que ali trabalhamos. Preparamos uma série de objetos, andamos pelos espaços, mostramos algumas coisas do tesouro da Biblioteca, uma das quais as moedas que aparecem citadas nos Evangelhos. Ele deteve-se, especialmente, sobre duas pequeninas moedinhas, aquelas [de] que se diz que a viúva pobre ofereceu tudo quanto tinha ao tesouro do Templo. Jesus disse que ela ofereceu mais do que todos os outros.”.
E o Papa, amante dos livros como qualquer habitante de Buenos Aires, disse “que nós, ali, apesar de sermos uma biblioteca patrimonial, onde a dimensão do passado e da memória está muito presente”, temos de ali “em cada dia frequentar o futuro”. De facto, “a Biblioteca tem de estar ligada ao futuro do Cristianismo”.
Também o Papa emérito, “homem dos livros, do estudo, da racionalidade”, queria ser bibliotecário da Biblioteca Apostólica – assim o pediu, quando era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé a São João Paulo II –, mas não o foi, foi Papa.
O bibliotecário e arquivista da Santa Sé tem “dois governos, o da Biblioteca e o do Arquivo Secreto, que são duas equipas, integrando ambas com cada prefeito e vice-prefeito”. Em cada semana, há uma manhã dedicada ao governo da Biblioteca e do Arquivo, onde se passam em revista os principais projetos, as questões, a agenda da semana, o que é preciso fazer, as programações. E o bibliotecário tem o gabinete próprio, donde vai acompanhando todas as questões internas que se põem à instituição. Há um trabalho de ligação da Biblioteca à Cúria Romana, à Secretaria de Estado, ao Santo Padre e ao exterior. E o Arcebispo dá um exemplo:
Só em 2019, a Biblioteca emprestou muitos dos seus manuscritos, volumes, para dezenas de exposições no mundo. Até chegar a isso, tudo começa com um encontro com o embaixador dessa nação, ou seja, todas as semanas um dos meus trabalhos é receber um embaixador, perceber a natureza dos projetos, começá-los, acompanhar esse interesse – muitas vezes, suscitar, aprofundar o interesse pelo nosso mundo –, dar a conhecer a Biblioteca Apostólica, para que ela seja verdadeiramente um serviço da Igreja Católica, naquele lugar, aos milhares de estudiosos que, por ano, vão ali estudar, mas também àquelas pessoas que nunca entraram na Biblioteca Apostólica e que vão ver um volume, numa exposição, nos seus países.”.
Sobre as afinidades dos dois espaços – Biblioteca e Arquivo – Dom Tolentino explica:
De um lado, temos livros; do outro, documentos. De um lado, temos uma amplitude maior de estudiosos (um cientista pode interessar-se por livros da Biblioteca Apostólica, mas também um filólogo, alguém da literatura, um arquiteto: são pessoas muito diferentes), no Arquivo, não quer dizer que não haja pessoas a fazer pesquisas a partir de outros pontos de vista, mas temos prevalentemente o nível da história e da escrita da história.”.
Quanto ao Arquivo Secreto, o arquivista não é parco em enaltecer-lhe o papel, a ponto de reconhecer que, sem ele, é impossível, por exemplo, compreender “a aventura da modernidade”, em particular a história da Europa, embora o Arquivo tenha muitas coisas da Idade Média. E o chefe do Arquivo explicita:  
Enquanto, muitas vezes, as nações nem sequer têm embaixadores em todos os países, ou o percurso dos embaixadores fica muito dependente dos ciclos políticos, a Santa Sé mantém uma continuidade com os núncios, por exemplo, muito marcada. Isso quer dizer que nós temos uma documentação, um olhar muito constante, muito homogéneo ao longo dos séculos. E temos recolhas fabulosas de informação, que são uma chave fundamental para a história, para entender não só o passado, mas também o presente.”.
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Questão atualíssima é a referente à decisão de Francisco decidiu abrir os arquivos relativos ao pontificado de Pio XII (1939-1958) para esclarecer o papel da Igreja Católica durante a II Guerra Mundial, sobretudo na relação com os judeus. José Tolentino esclarece que “o Arquivo organiza a sua abertura, não por anos, mas por pontificados”. Assim, a abertura destes arquivos será em março de 2020 – sobre um longo pontificado, num período crucial da história contemporânea.
Efetivamente, “um momento central é o da II Guerra Mundial, da perseguição aos judeus”, mas várias questões, como a preparação do Concílio (1961-1965) – que surgirá no pontificado de São João XXIII –, “o clima, a relação com a teologia, a aspiração das várias Igrejas”, aparecem já no pontificado de Pio XII, pontificado muito rico, nomeadamente para Portugal, e interessante também pela questão de Fátima, pela questão do regime político e por aquilo que se vivia nas várias dioceses. E a abertura muito esperada do arquivo atrairá, na certa, muitos historiadores.
No atinente às acusações de que Pio XII é alvo e se a abertura do Arquivo mostrará não terem fundamento as acusações, nomeadamente a de falta de proteção aos judeus, o arquivista explica:
A nossa posição, no Arquivo, é abrir os documentos. Foram 13 anos de trabalho, eu cheguei há meses, mas existe uma larga equipa a trabalhar todos os documentos. Eles serão abertos, tornados acessíveis, as pessoas poderão ler e tirar as suas conclusões.”.
Não obstante, adianta:
Há notas muito impressionantes, que são algumas já conhecidas, mas que ali ganham uma ligação documental muito forte. Duas delas, para referir: uma, a grande ajuda do Papa e da Santa Sé aos prisioneiros de guerra, é um trabalho incrível. No Arquivo Secreto temos uma quantidade de documentação verdadeiramente extraordinária.”.
A seguir, destaca “a dimensão da caridade de Pio XII”, sendo “verdadeiramente assombroso” o seu perfil neste capítulo. E José Tolentino explana:
Das milhares e milhares e milhares de pessoas que escreviam ao Papa, a pedir uma ajuda, uma ajuda material, não houve nenhuma que não fosse atendida. E o registo desse trabalho, muitas vezes silencioso, que, se calhar, o grande público não sabia, porque é uma relação pessoal, que se estabelece com o Papa, é uma coisa verdadeiramente impressionante.”.
Com razão diz o Papa Francisco que “a Igreja não tem medo da história”. E é esta atitude que levou Francisco a decidir abrir o pontificado de Pio XII, porque “não tem medo da história e temos submeter-nos também, com humildade, ao juízo da própria história”.
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Questionado por sustentar, numa conferência em Lisboa, que uma biblioteca é uma “farmácia da alma”, asserção aplicada à Biblioteca Apostólica, responde com a tradição egípcia:  
Quando os faraós abriam bibliotecas nas partes mais remotas do reino, colocavam no pórtico da biblioteca essa bela frase: ‘Farmácia da alma’. Uma biblioteca é, de facto, uma farmácia da alma: por um lado, porque uma biblioteca com a dimensão da Biblioteca Apostólica dá-nos uma noção da história. Às vezes, nós pensamos que um problema ou uma questão é apenas do presente e lidamos com isso com o dramatismo de ser um caso único, mas uma biblioteca dá-nos uma profundidade de olhar, mesmo em relação à história da Igreja.”.
Depois, a Biblioteca Vaticana tem uma enorme amplitude. E o Arcebispo Tolentino explana:
O Cristianismo (…) interessa-se por tudo aquilo que é humano, é uma polifonia, não é uma monodia. Nós temos ali uma diversidade polifónica, de vozes, de estilos, de endereços, de correspondências, que acaba por ser uma grande riqueza.”.
Contra o drama da Igreja do pecado da autorreferencialidade da Igreja, denunciado pelo Papa, a Biblioteca “recentra a Igreja na sua missão fundamental” de serviço, em nome de Deus, “à pessoa humana”. E a vontade de servir a humanidade “está ali bem patente”.
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Encarando o serviço da Biblioteca e do Arquivo como serviço de colaboração com o Papa, o Arcebispo diz que o trabalho do bibliotecário é colocar este tesouro, este património “em sintonia com as linhas-mestras deste pontificado” e porfia, à semelhança do mister colaborante dos outros serviços da Cúria Romana:
Nós queremos fazê-lo ali, também de forma humilde, na Biblioteca e no Arquivo, colocando-os como expressão daquilo que é o desígnio e o programa deste pontificado, que tem sido uma verdadeira primavera para a Igreja”.
Anuindo à opinião de Paulo Rocha, o entrevistador, de que tudo ocorre a partir do perfil tolentino “de diálogo com outros saberes, de pontes com outras culturas…”, assegura que “na Biblioteca é muito difícil ter outro perfil”, pois ela, “por sua natureza, é dialógica, é um lugar de diálogos” e “o trabalho de política cultural é suscitar encontros”. Depois, confessa:
Para mim, são águas que me são muito familiares, de certa forma a minha vida preparou-me para este desafio, muito inesperado, muito surpreendente, que o Papa Francisco me colocou. Sinto também que estou a aprender muito, neste lugar, que também me desafia muito, me inspira a ir mais longe.”.
Por fim, sente-se completamente ao serviço do Papa, dado que a Biblioteca e o Arquivo são dele. E, no espírito das duas comunidades que trabalham diariamente naquelas instituições, há o serviço de colaboração com o Pontífice, o que dá um sentido à missão destes trabalhadores, “que não teria se fosse só um projeto individual”: estão “todos juntos a colaborar para que o Papa possa governar a Igreja e ser a figura de Pedro, hoje”.
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Resta que os historiadores e outros homens da ciência pesquisem e produzam conhecimento.
2019.05.27 – Louro de Carvalho

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