sexta-feira, 24 de maio de 2019

No 4.º aniversário da encíclica Laudato Si’, mais ecologia, ecologia integral


O Vaticano associou-se hoje, dia 24 de maio, no 4.º aniversário da encíclica Laudato Si’, às preocupações da greve climática estudantil, numa mensagem à Comunidade Científica em que olha a limitação do aquecimento global a 1,5º celsius como obrigação “moral” e “religiosa”. A este respeito, o prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral diz:
Com o aquecimento global em volta de 1°, desde a revolução industrial, já estamos a ver o impacto severo das mudanças climáticas nas pessoas, em termos de condições climáticas extremas, como secas, enchentes, aumento do nível do mar, tempestades devastadoras e incêndios violentos. A crise climática está a atingir proporções sem precedentes. A urgência, portanto, não poderia ser maior.”.
Em 2015, aquando da publicação do documento pontifício que preconiza uma ecologia integral, a comunidade internacional procurava concluir o Acordo de Paris para limitar o aquecimento global a menos de dois graus em relação aos valores pré-industriais. Agora, o Cardeal Peter Turkson, principal colaborador do Papa no campo da ecologia, dirigindo-se à comunidade científica, apresenta como “limiar” a respeitar os 1,5 graus celsius, como forma de defender os países e as populações mais pobres que, segundo a referência de Francisco na Encíclica, “sofrem os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais”. E o purpurado ganês, esclarecendo que “o limiar de 1,5° é um limiar moral, a última oportunidade para salvar todos esses países e os muitos milhões de pessoas vulneráveis nas regiões costeiras”, fala ainda de um “um limiar físico crítico”, que permitiria evitar “muitos impactos destrutivos das alterações climáticas provocadas pelo homem”, tais como a regressão das principais camadas de gelo e a destruição da maior parte dos recifes de coral tropicais. E, considerando que os 1,5° são também um limiar religioso, acrescenta:
O mundo que estamos a destruir é dom de Deus para a humanidade, precisamente a casa santificada pelo Espírito Divino (Ruah) no início da criação, o lugar onde Ele armou a sua tenda entre nós”.
O responsável por aquele dicastério da Santa Sé sustenta que é possível limitar o aquecimento global, com base num modelo de desenvolvimento livre de tecnologias e comportamentos que aumentem a produção de emissões de gases com efeito de estufa. De facto, as propostas de vários líderes e organizações católicas, inspirados na ‘Laudato Si’, apelam a uma limitação do aquecimento global a 1,5 graus celsius; à adoção de estilos de vida sustentáveis; ao respeito pelas comunidades indígenas; e ao fim da era dos combustíveis fósseis, com transição para formas renováveis de energia; à reforma do sistema agrícola, para um fornecimento saudável e acessível de alimentos para todos. E, como assinala o cardeal Turkson, Francisco e vários especialistas, entre os quais o climatologista francês Jean Jouzel, membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), partilham “profundas preocupações” em relação à atual crise climática.
Por isso, a Santa Sé insta a que ouçamos o grito dramático da comunidade científica e dos movimentos dos jovens pelo clima face a um futuro ameaçado. Neste sentido, Turkson adverte:
Nos últimos meses, os jovens tornaram-se cada vez mais explícitos, como se pode ver, por exemplo, nas impressionantes ‘greves climáticas’. É óbvia a sua frustração e raiva em relação à nossa geração. Corremos o risco de acabar por roubar-lhes o futuro.”.
Turkson recorda que na JMJ de 2019, no Panamá, os jovens lançaram a “Geração Laudato Si” e publicaram um “poderoso manifesto que desafia as comunidades religiosas e a sociedade civil a uma conversão ecológica radical em ação”. Na sequência disso, o cardeal apela:
É bom unirmo-nos aos cientistas e jovens a solicitar à nossa família humana, especialmente aos que ocupam posições de poder político e económico, para que tomem medidas drásticas para mudar de rumo”.
Para este hierarca, ainda há tempo para “agir e evitar os piores efeitos da mudança climática”.
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As chamadas de atenção do prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral levam à reflexão sobre o teor e a urgência da encíclica em causa. Na verdade, o documento papal aborda a crise ecológica mundial e denuncia um estilo de vida, crescentemente globalizado, que se construiu a partir do e em cima do domínio tecnológico do mundo e da vida. Logo ao abrir o texto, Francisco esclarecia:
À vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”.
E, num entendimento holístico do mundo e do ser humano, o Papa frisava:
O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social”.
Laudato Si foi publicada meses antes da Cimeira da ONU sobre o meio ambiente, realizada em Paris, no mês de dezembro de 2015. As possibilidades de que não houvesse um acordo significativo sobre o clima eram elevadas, pelo que foi grande a responsabilidade do Papa Francisco ao intervir neste debate global de maneira adequada. Segundo o LOsservatore Romano ao tempo, “é um documento longo, por vezes poético e comovedor, que mostra muito bem a novidade radical – que vai às raízes, ou seja, ao essencial da fé – do Papa Francisco, em evidente continuidade com a tradição cristã e com os seus predecessores”.
A encíclica produziu notável impacto na opinião pública e provocou já grandes tempos e espaços de reflexão e ação. Mas não é legítimo olvidar as significativas intervenções no âmbito do ambiente nos pontificados dos predecessores de Francisco. Assim, são João XXIII o fez, em 1963, pela Encíclica Pacem in Terris; São Paulo VI fê-lo, por exemplo, em 1970, no Discurso à FAO, aquando do XXV Aniversário deste organismo da ONU, e, no ano seguinte, na Carta Apostólica Octogesima Adveniens; o Venerável João Paulo I, no pontificado de 33 dias, abordou o tema de relance na sua Mensagem Urbi et Orbi (o risco de reduzir a terra a um deserto…; a violência cega que só destrói e semeia ruínas e luto…) e no apelo a paz no Líbano mártir, desfigurado pelas repercussões desta crise (audiência geral de 6 de setembro de 1978); São João Paulo II, no seu longo pontificado, fê-lo 1979, nas encíclicas Redemptor Hominis (1979), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991). E referiu-se ao meio ambiente na Catequese  de 17 de janeiro de 2001 (vd LOsservatore Romano, de 20 de janeiro de 2001 – edição portuguesa), e nos Insegnamenti (24.01.2001); Bento XVI, por seu turno, focou a suas preocupações em relação ao meio ambiente no Discurso ao Corpo Diplomático Acreditado junto da Santa Sé (2007), no Discurso ao Clero da Diocese de Bolzano-Bressanone (2008), na Encíclica Caritas in Veritate (2009) e no Discurso ao Bundestag (2011). Agora, a Laudato Si’ integra o ambiente na multidimensionalidade da vida e da fé, o que levou o jornal espanhol El País a considerar Francisco como o “novo teólogo da Terra”, e faz eco das discussões sobre o ambiente, no seio da Igreja Católica, ao longo dos últimos 50 anos, dando voz aos textos publicados ao longo das últimas três décadas por váriass Conferências ou Comissões Episcopais. E Hans Joachim Schellnhuber, cientista do Ambiente, fundador do Potsdam Institute for Climate Impact Research e Presidente do German Advisory Council on Global Change, defende:   
Papa Francisco destaca a dimensão ética do problema do clima e fornece princípios fundamentais que devem ser aplicados como soluções: a opção preferencial pelos pobres, a justiça inter e intrageracional, a responsabilidade comum, mas diferenciada, a orientação para o bem comum”.
Ademais, segundo o cientista, “a Encíclica defende uma estrutura de governança global para todo o espectro planetário”. Com efeito, dois dias após a sua publicação, um estudo de pesquisadores da Universidade Nacional Autónoma do México, da Universidade de Stanford, da Califórnia (Berkeley), da Universidade de Princeton e da Universidade da Flórida aponta a seguinte evidência acerca do ponto sem retorno da Natureza:
A taxa média de perda de espécies de vertebrados no último século é de até 114 vezes mais elevada do que a taxa de fundo. (…) O número de espécies, que se extinguiu no século passado, teria demorado (…) entre 800 e 10.000 anos a desaparecer. Estas estimativas revelam uma perda excepcionalmente rápida da biodiversidade ao longo dos últimos séculos, indicando que uma sexta extinção em massa já está em andamento.”.
A Laudato Si plasma o que de mais significativo se tem escrito ultimamente, em termos de estudos na área ambientalista. Mesmo assim, não se fizeram esperar as críticas ao texto papal por parte de conservadores e ambientalistas céticos, mesmo antes da sua publicação. Rush Limbaugh, comentarista político dos Estados Unidos, acusou o Papa de adotar uma “maneira comunista de fazer as coisas: controlando a Humanidade através de… governos apoiados pela Polícia ou pelo poder militar”. E o Heartland Institute, um grupo conservador cético quanto à ocorrência de alterações climáticas, apontou, através Jim Lakely, seu porta-voz:
O Papa está a colocar a sua autoridade moral por trás da agenda ambiental radical da Organização das Nações Unidas – e ele está a fazer isso depois de lhe ter sido contada apenas uma parte da história climática”.
Por seu turno, Janos Pasztorassistente do secretário-geral das Nações Unidas para a mudança climática, declarou, em termos de uma certa insatisfação (queria mais):
‘Laudato Si’’ é longa em lamentos e curta em soluções específicas, embora o Papa peça repetidamente profunda reflexão e diálogo para resolver os sintomas complexos que agora assolam o planeta. Em traços gerais, Francisco apela para uma mudança drástica no ‘estilo de vida, produção e consumo’ de hábitos insustentáveis para meios mais conscientes de cuidar de ‘nossa casa comum’”.
No entanto, adiantou queter uma pessoa tão importante como o Papa a falar sobre esta questão vai atingir muitas pessoas […] num momento crucial”.
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Sendo a Laudato Si um documento reflexivo para os católicos, não ignora que, “noutras Igrejas e Comunidades cristãs – bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos estão a peito. O inspirador do Papa é, na presente EncíclicaSão Francisco de Assis, “o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade”. Numa visão integrada da imanência e da transcendência, em São Francisco, vinca o Papa:
Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior”.
Segundo o Papa, a Laudato Si’ é uma reflexão criacionista. Com efeito o 2.º capítulo tem o título “O Evangelho da criação”. Nele, Francisco afirma:
Não ignoro que alguns, no campo da política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um Criador ou a consideram irrelevante, chegando ao ponto de relegar para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer para uma ecologia integral e o pleno desenvolvimento do género humano”.
Não obstante, a fé e a ciência, que constituem dois modos de entender o mundo e a vida, não são, necessariamente, conflituantes entre si. Por isso, Francisco exorta a que reconheçamos, “que as soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e transformar a realidade” pelo que, além da fé e da ciência, urge viabilizar o recurso “às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade”. Apesar de tudo, o Pontífice frisa a necessidade de espiritualidade guiada pela referência maior, Deus. Assim, o líder da Igreja Católica põe o dedo na ferida do espiritualismo difuso:
Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele”.
E Francisco, para que tal não venha a ocorrer e já que, sem margem para dúvidas, “o amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação”, recomenda:
A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo”.
Por isso, o Papa não deixa de apontar o dedo à racionalidade tecnológica que, ao longo dos últimos tempos, vem dominando a construção dos saberes e tenta dominar a construção do mundo, o que é redutor, insuficiente e quiçá perigoso. E ensina a este respeito:
Uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano.
Mas, se abandonarmos a linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, “as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou do mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos”. Daqui, o apelo do Papa:
O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado.”.
No quadro das inquietações setoriais e face à crescente destruição planetária, Francisco  centra a atenção nos danos da poluição, a nível global, e escreve sobre este flagelo ambiental:
[A poluição] afeta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral. (…) A tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros.”.
Em paralelo,  a Laudato Si adverte claramente para o que pode esperar a Humanidade em tempos não muito distantes dos atuais, com sofrimento sobretudo para os mais pobres:  
As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenómenos relacionados com o aquecimento, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais.”.
E o Sumo Pontífice vinca, em relação aos migrantes e refugiados: 
É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa”.
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Face a este conjunto de situações aviltantes e a indiferença geral perante elas, diz o Papa:
A falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil”.
pontificado de Francisco é, na verdade, desde o seu início, uma aposta pelos que menos têm, pelos que menos podem e pelos que socialmente são menos considerados por parte dos poderosos. Ao dedicar Laudato Si à Terra, a casa comum de todos nós, o Papa deu mais um passo no sentido da sua afirmação como “líder mundial não somente espiritual, mas também social e mesmo político”.
Quanto à atualidade da Encíclica, resta dizer que fica reforçada em confronto com a negação das alterações climáticas por parte de alguns cientistas e decisores políticos, quando elas estão à vista de todos e a juventude se organiza para se manifestar a exigir a ação necessária.
Pelo ambiente, pelo planeta, pelo futuro, pelos seres humanos! 
2019.05.24 – Louro de Carvalho

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