O Vaticano associou-se hoje, dia 24 de maio, no 4.º
aniversário da encíclica Laudato Si’, às preocupações da greve climática
estudantil, numa mensagem à Comunidade Científica em que olha a limitação do
aquecimento global a 1,5º celsius como obrigação “moral” e “religiosa”. A este
respeito, o prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano
Integral diz:
“Com o aquecimento global em volta de 1°,
desde a revolução industrial, já estamos a ver o impacto severo das mudanças
climáticas nas pessoas, em termos de condições climáticas extremas, como secas,
enchentes, aumento do nível do mar, tempestades devastadoras e incêndios
violentos. A crise climática está a atingir proporções sem precedentes. A
urgência, portanto, não poderia ser maior.”.
Em 2015, aquando da publicação do documento pontifício
que preconiza uma ecologia integral, a comunidade internacional procurava
concluir o Acordo de Paris para
limitar o aquecimento global a menos de dois graus em relação aos valores
pré-industriais. Agora, o Cardeal Peter Turkson, principal colaborador do Papa
no campo da ecologia, dirigindo-se à comunidade científica, apresenta como
“limiar” a respeitar os 1,5 graus celsius, como forma de defender os países e
as populações mais pobres que, segundo a referência de Francisco na Encíclica,
“sofrem os efeitos mais graves de todas
as agressões ambientais”. E o purpurado ganês, esclarecendo que “o limiar
de 1,5° é um limiar moral, a última
oportunidade para salvar todos esses países e os muitos milhões de pessoas
vulneráveis nas regiões costeiras”, fala ainda de um “um limiar físico crítico”, que permitiria evitar “muitos impactos destrutivos das alterações climáticas provocadas pelo
homem”, tais como a regressão das principais camadas de gelo e a destruição
da maior parte dos recifes de coral tropicais. E, considerando que os 1,5° são
também um limiar religioso,
acrescenta:
“O mundo que estamos a destruir é dom de
Deus para a humanidade, precisamente a casa santificada pelo Espírito Divino (Ruah) no início da criação, o lugar onde
Ele armou a sua tenda entre nós”.
O responsável por aquele dicastério da Santa Sé
sustenta que é possível limitar o aquecimento global, com base num modelo de
desenvolvimento livre de tecnologias e comportamentos que aumentem a produção
de emissões de gases com efeito de estufa. De facto, as propostas de vários
líderes e organizações católicas, inspirados na ‘Laudato Si’, apelam a uma
limitação do aquecimento global a 1,5 graus celsius; à adoção de estilos de
vida sustentáveis; ao respeito pelas comunidades indígenas; e ao fim da era dos
combustíveis fósseis, com transição para formas renováveis de energia; à
reforma do sistema agrícola, para um fornecimento saudável e acessível de
alimentos para todos. E, como assinala o cardeal Turkson, Francisco e vários
especialistas, entre os quais o climatologista francês Jean Jouzel, membro do
IPCC (Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), partilham “profundas preocupações” em relação à atual crise climática.
Por isso, a Santa Sé insta a que ouçamos o grito
dramático da comunidade científica e dos movimentos dos jovens pelo clima
face a um futuro ameaçado. Neste sentido, Turkson adverte:
“Nos últimos meses, os jovens tornaram-se
cada vez mais explícitos, como se pode ver, por exemplo, nas impressionantes
‘greves climáticas’. É óbvia a sua frustração e raiva em relação à nossa
geração. Corremos o risco de acabar por roubar-lhes o futuro.”.
Turkson recorda que na JMJ de 2019, no Panamá, os
jovens lançaram a “Geração Laudato Si”
e publicaram um “poderoso manifesto que
desafia as comunidades religiosas e a sociedade civil a uma conversão ecológica
radical em ação”. Na sequência disso, o cardeal apela:
“É bom unirmo-nos aos cientistas e jovens a
solicitar à nossa família humana, especialmente aos que ocupam posições de
poder político e económico, para que tomem medidas drásticas para mudar de rumo”.
Para este hierarca, ainda há tempo para “agir e evitar os piores efeitos da mudança
climática”.
***
As chamadas
de atenção do prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano
Integral levam à reflexão sobre o teor e a urgência da encíclica em causa. Na
verdade, o documento papal aborda a crise ecológica mundial e denuncia um
estilo de vida, crescentemente globalizado, que se construiu a partir do e em
cima do domínio tecnológico do mundo e da vida. Logo ao abrir o texto, Francisco esclarecia:
“À vista da deterioração
global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na
minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja
a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente.
Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da
nossa casa comum”.
E, num
entendimento holístico do mundo e do ser humano, o Papa frisava:
“O ambiente humano e o
ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente
a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a
degradação humana e social”.
A Laudato Si’ foi publicada meses antes da Cimeira da ONU sobre o meio ambiente, realizada
em Paris, no mês de dezembro de 2015. As possibilidades
de que não houvesse um acordo significativo sobre o clima eram elevadas, pelo
que foi grande a responsabilidade do Papa Francisco ao intervir neste debate global de
maneira adequada. Segundo o L’Osservatore Romano ao tempo, “é um documento longo, por vezes poético e comovedor, que mostra
muito bem a novidade radical – que vai às raízes, ou seja, ao essencial da fé –
do Papa Francisco, em evidente continuidade com a tradição cristã e com os seus
predecessores”.
A encíclica
produziu notável impacto na opinião pública e provocou já grandes tempos e
espaços de reflexão e ação. Mas não é legítimo olvidar as significativas
intervenções no âmbito do ambiente nos pontificados dos predecessores de
Francisco. Assim, são João XXIII o fez, em 1963, pela Encíclica Pacem in Terris; São Paulo VI fê-lo, por exemplo, em 1970, no Discurso à FAO, aquando do XXV Aniversário deste
organismo da ONU, e, no ano seguinte, na Carta Apostólica Octogesima
Adveniens; o Venerável
João Paulo I, no pontificado de 33 dias, abordou o tema de relance na sua
Mensagem Urbi et Orbi (o risco de reduzir a terra a um deserto…; a violência
cega que só destrói e semeia ruínas e luto…) e no apelo a paz no Líbano mártir, desfigurado pelas repercussões desta crise
(audiência geral de 6 de
setembro de 1978); São João Paulo II, no seu longo pontificado, fê-lo 1979, nas encíclicas Redemptor
Hominis (1979), Sollicitudo Rei
Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991).
E referiu-se ao meio ambiente na Catequese de 17 de janeiro de 2001 (vd L’Osservatore Romano, de 20 de janeiro de 2001 – edição
portuguesa), e nos Insegnamenti (24.01.2001); Bento
XVI, por seu turno, focou a suas preocupações em relação ao meio ambiente no Discurso ao
Corpo Diplomático Acreditado junto da Santa Sé (2007), no Discurso ao
Clero da Diocese de Bolzano-Bressanone (2008), na Encíclica Caritas in
Veritate (2009) e no Discurso ao Bundestag (2011).
Agora, a Laudato Si’ integra o ambiente na multidimensionalidade
da vida e da fé, o que levou o jornal espanhol El País a considerar Francisco como o “novo teólogo da Terra”, e faz eco das discussões sobre o
ambiente, no seio da Igreja Católica, ao longo dos últimos 50 anos, dando voz aos textos
publicados ao longo das últimas três décadas por váriass Conferências ou Comissões Episcopais. E Hans Joachim Schellnhuber, cientista do Ambiente, fundador
do Potsdam Institute for Climate Impact Research e Presidente do German Advisory Council on Global Change, defende:
“Papa Francisco destaca
a dimensão ética do problema do clima e fornece princípios fundamentais que
devem ser aplicados como soluções: a opção preferencial pelos pobres, a justiça
inter e intrageracional, a responsabilidade comum, mas diferenciada, a orientação
para o bem comum”.
Ademais,
segundo o cientista, “a
Encíclica defende uma estrutura de governança global para todo o espectro
planetário”. Com efeito,
dois dias após a sua publicação, um estudo de pesquisadores da Universidade Nacional Autónoma do México, da Universidade de Stanford, da Califórnia (Berkeley), da Universidade de Princeton e da Universidade da Flórida aponta a seguinte evidência
acerca do ponto sem retorno da Natureza:
“A taxa média de perda
de espécies de vertebrados no último século é de até 114 vezes mais elevada do
que a taxa de fundo. (…) O
número de espécies, que se extinguiu no século passado, teria demorado (…) entre 800 e 10.000 anos a
desaparecer. Estas estimativas revelam uma perda excepcionalmente rápida da biodiversidade
ao longo dos últimos séculos, indicando que uma sexta extinção em massa já está
em andamento.”.
A Laudato Si’ plasma o que de mais significativo se tem escrito
ultimamente, em termos de estudos na área ambientalista. Mesmo assim, não se
fizeram esperar as críticas ao texto papal por parte de conservadores e
ambientalistas céticos, mesmo antes da sua publicação. Rush Limbaugh, comentarista político dos Estados Unidos, acusou o Papa de adotar uma “maneira comunista de fazer as coisas:
controlando a Humanidade através de… governos apoiados pela Polícia ou pelo
poder militar”. E o
Heartland Institute, um grupo conservador cético quanto à ocorrência de
alterações climáticas, apontou, através Jim Lakely, seu porta-voz:
“O Papa está a colocar a
sua autoridade moral por trás da agenda ambiental radical da Organização das
Nações Unidas – e ele está a fazer isso depois de lhe ter sido contada apenas
uma parte da história climática”.
Por seu turno, Janos Pasztor, assistente
do secretário-geral das Nações Unidas para a mudança climática,
declarou, em termos de uma certa insatisfação (queria mais):
“‘Laudato Si’’ é longa
em lamentos e curta em soluções específicas, embora o Papa peça repetidamente
profunda reflexão e diálogo para resolver os sintomas complexos que agora
assolam o planeta. Em traços gerais, Francisco apela para uma mudança drástica
no ‘estilo de vida, produção e consumo’ de hábitos insustentáveis para meios
mais conscientes de cuidar de ‘nossa casa comum’”.
No entanto,
adiantou que “ter uma pessoa tão importante como o Papa a falar sobre esta
questão vai atingir muitas pessoas […] num momento crucial”.
***
Sendo a Laudato Si’ um documento reflexivo para os católicos, não ignora que, “noutras Igrejas e
Comunidades cristãs – bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma
profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos
estão a peito. O inspirador do Papa é, na presente Encíclica, São
Francisco de Assis, “o exemplo por
excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com
alegria e autenticidade”. Numa visão integrada da imanência e da transcendência, em São Francisco, vinca o Papa:
“Nele se nota até que
ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os
pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior”.
Segundo o
Papa, a Laudato Si’ é uma reflexão criacionista. Com efeito o 2.º capítulo tem
o título “O Evangelho da criação”. Nele, Francisco afirma:
“Não ignoro que alguns,
no campo da política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um
Criador ou a consideram irrelevante, chegando ao ponto de
relegar para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer
para uma ecologia integral e o pleno desenvolvimento do género humano”.
Não obstante,
a fé e a ciência, que constituem dois modos de entender o mundo e a vida, não
são, necessariamente, conflituantes entre si. Por isso, Francisco exorta a que
reconheçamos, “que
as soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e transformar a
realidade” pelo
que, além da fé e da ciência, urge viabilizar o recurso “às diversas riquezas culturais dos povos,
à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade”. Apesar de tudo, o Pontífice frisa
a necessidade de espiritualidade guiada pela referência maior, Deus. Assim, o líder da Igreja Católica põe o dedo na ferida do espiritualismo
difuso:
“Não podemos defender
uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso,
acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar
do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por
Ele”.
E Francisco,
para que tal não venha a ocorrer e já que, sem margem para dúvidas, “o amor de Deus é a razão fundamental de
toda a criação”,
recomenda:
“A melhor maneira de
colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra
é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo”.
Por isso, o
Papa não deixa de apontar o dedo à racionalidade tecnológica que, ao longo dos
últimos tempos, vem dominando a construção dos saberes e tenta dominar a
construção do mundo, o que é redutor, insuficiente e quiçá perigoso. E ensina a
este respeito:
“Uma ecologia integral
requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas
ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano”.
Mas, se
abandonarmos
a linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, “as
nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou do mero explorador dos
recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos”. Daqui, o apelo do Papa:
“O urgente desafio de
proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana
na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as
coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de
amor, nem Se arrepende de nos ter criado.”.
No quadro das
inquietações setoriais e face à crescente destruição planetária, Francisco centra a atenção nos danos da poluição, a nível
global, e escreve sobre este flagelo ambiental:
“[A
poluição] afeta a todos, causada pelo transporte,
pelos fumos da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a
acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas,
fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral. (…) A
tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas,
é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas
e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros.”.
Em paralelo, a
Laudato Si’ adverte claramente para o que pode
esperar a Humanidade
em tempos não
muito distantes dos atuais, com sofrimento sobretudo para os mais pobres:
“As mudanças climáticas
são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas,
distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios
para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas
décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em
lugares particularmente afetados por fenómenos relacionados com o aquecimento,
e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos
chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos
florestais.”.
E o Sumo
Pontífice vinca, em relação aos migrantes e refugiados:
“É trágico o aumento de
emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não
sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o
peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa”.
***
Face a este
conjunto de situações aviltantes e a indiferença geral perante elas, diz o
Papa:
“A falta de reações
diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido
de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a
sociedade civil”.
O pontificado de Francisco é, na verdade, desde o seu
início, uma aposta pelos que menos têm, pelos que menos podem e pelos que
socialmente são menos considerados por parte dos poderosos. Ao dedicar Laudato Si’ à Terra, a casa comum de todos nós, o Papa deu mais um passo no sentido da sua
afirmação como “líder mundial não somente espiritual, mas
também social e mesmo político”.
Quanto à
atualidade da Encíclica, resta dizer que fica reforçada em confronto com a
negação das alterações climáticas por parte de alguns cientistas e decisores
políticos, quando elas estão à vista de todos e a juventude se organiza para se
manifestar a exigir a ação necessária.
Pelo
ambiente, pelo planeta, pelo futuro, pelos seres humanos!
2019.05.24 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário