terça-feira, 14 de maio de 2019

O Cardeal Esmoler Apostólico devolveu a eletricidade a 100 famílias


O Cardeal polaco Konrad Krajewski, Arcebispo Titular de Benevento e Esmoler Apostólico, tomou a iniciativa de pessoalmente voltar a ligar a eletricidade de um prédio estatal devoluto, um velho palácio romano, onde vivem mais de 450 pessoas, incluindo 100 famílias e as respetivas crianças.
As famílias estavam sem eletricidade desde o dia 6 de maio, por corte realizado pelos serviços da empresa distribuidora por causa duma dívida estimada em cerca de 300 mil euros.
Quando o cardeal – que, antes de enveredar pela via eclesiástica, era eletricista e, enquanto esmoler pontifício, é responsável por fazer chegar a ajuda do Papa aos mais pobres – soube do sucedido, deslocou-se ao local e ativou ele mesmo o fornecimento da corrente elétrica, fazendo, com esta sua atitude, que tivessem água quente e a alimentação energética dos aparelhos eletrodomésticos, nomeadamente os frigoríficos.
A ação de Krajewski, de desobediência às autoridades, já foi criticada pelo Governo italiano através de Matteo Salvini, Vice-Primeiro-Ministro e Ministro do Interior, que pergunta se ele tenciona pagar a conta de 300 mil euros que era devida.
Foi a Irmã Adriana Domenici, que trabalha de perto com os sem-abrigo, incluindo as famílias que ocupam o predito edifício estatal, quem fez chegar a informação a Krajewski. Segundo a religiosa, que prestou declarações sobre o episódio à cadeia de televisão italiana RAI, quando os funcionários da companhia de eletricidade do Estado regressaram ao local, para voltar a desligar a corrente, encontraram uma nota manuscrita, assinada pelo purpurado, e deixaram tudo como estava – pensa-se que impressionados ou aguardando ordens superiores.
Fontes próximas do cardeal disseram à agência Adnkronos que “o cardeal está perfeitamente ciente das consequências legais, mas agiu convicto de que era necessário fazê-lo, para bem daquelas famílias”.
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O imóvel com o n.º 55 está situado na Via di Santa Croce in Gerusalemme, perto da Arquibasílica de São João de Latrão, a catedral do Papa; nele vivem mais de 450 pessoas, entre elas cem crianças, sem luz depois de acumularem uma dívida de 300 mil euros para com a companhia elétrica; e estava às escuras e sem água quente, colocando numa situação desesperada aquela centena de famílias, italianas e de outras 17 nacionalidades.
Os inquilinos, juntamente com ativistas, estão há vários dias a manifestar-se à porta do prédio, gritando: “Sem luz não se vive”.
No dia 11, o cardeal polaco, responsável pelas obras de caridade do Sumo Pontífice, que regressou há pouco tempo da ilha grega de Lesbos, foi ao local para dar algumas prendas às crianças e disse que, se naquele dia à noite, a luz não tivesse sido restabelecida, ele próprio a reativaria. Assim, por volta das 20 horas locais, Krajewski foi à sala onde estavam os contadores, fechados a cadeado pelas autoridades, e reativou a energia elétrica, assumindo a responsabilidade perante a polícia e a empresa de energia, ACEA, e declarou:
Intervim pessoalmente para reativar os contadores. Foi um gesto desesperado [porque] havia mais de quatrocentas pessoas sem eletricidade, com famílias, crianças, sem sequer terem a possibilidade de ligar um frigorífico.”.
Por sua vez, Matteo Salvini, aproveitou para desafiar este príncipe da Igreja a pagar a conta da luz e disse, no decurso de uma iniciativa de campanha eleitoral em Bra, no norte do país:
Conto que o esmoler do Papa, que reativou a corrente num edifício ocupado em Roma, pague os 300 mil euros em faturas atrasadas”.
Na mesma altura, dirigindo-se às pessoas, disse acreditar que todos eles paguem “com sacrifício” as contas. E apontou, em referência ao membro polaco do Sacro Colégio:
Se alguém é capaz de pagar as faturas de milhões de italianos com problemas económicos, fico muito feliz”.
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O cardeal chegou à tarde, trouxe presentes para todas as crianças e prometeu que, se a corrente não tivesse sido restabelecida no prédio até ao momento, ele próprio a restabeleceria, como explicaram os ocupantes ao jornal italiano La Republica. E assim foi: Konrad desceu ao poço, removeu o selo e acendeu a luz; e assumiu, em nome do Vaticano, total responsabilidade pela ação junto do município e da empresa de distribuição, ACEA.
Não é de agora este envolvimento do cardeal no caso deste prédio ocupado. Há semanas que envia do Vaticano ambulâncias, médicos e comida para ajudar estas famílias, pois, como declarou ao jornal italiano Corriere della Sera, “estamos a falar de vidas humanas”, pelo que sustenta com toda a clareza e frontalidade: 
“O absurdo é que estamos no centro de Roma. Quase 500 pessoas abandonadas. São famílias que não têm para onde ir, pessoas que lutam para sobreviver […] O primeiro problema não é o dinheiro.”.
E a reação de Salvini não se fez esperar. Conhecido por detestar imigrantes e refugiados e não ter tento na língua nas críticas ao Papa Francisco, o líder da Liga e todo-poderoso número dois do executivo italiano atacou o cardeal, apontando, como refere o jornal britânico The Guardian:
Apoiar comportamentos ilegais nunca é um bom sinal. Há muitos italianos e imigrantes legais que, mesmo que tenham dificuldades, pagam as suas contas. Se as pessoas no Vaticano também quiserem pagar as contas dos italianos em dificuldades, nós abriremos uma conta bancária.”.
Matteo Salvini disse ironicamente também esperar que o Esmoler Apostólico Konrad Krajewski se chegue à frente para pagar a conta.
Toda a gente é livre de fazer o que quiser, mas espero que, depois de ter restabelecido a corrente elétrica, vá pagar os 300 mil euros em atraso que alguém não pagou e ajude todas as outras famílias italianas em dificuldade, que não podem pagar as suas contas de eletricidade”.
Por seu turno, o cardeal garantiu que assim fará. E ao Corriere della Sera disse que “agora que foi restabelecida [a luz], vou pagar, não há problema” e, referindo-se ao Vice-Primeiro-Ministro, brincou apontando que, “na verdade, vou pagar também as contas dele”. E frisou:
“Veja, eu não quero que isto se torne uma questão política. Eu sou o esmoler e preocupo-me com os pobres, com estas famílias e crianças... E eles, finalmente, têm luz e água quente.”.
Konrad Krajewski tinha chegado da ilha grega de Lesbos, aonde foi em visita aos campos de retenção de refugiados e migrantes, que a União Europeia criou, para mostrar a solidariedade do Papa com as pessoas que ali estão. 
Este cardeal de 55 anos cedeu há dois anos os seus aposentos a um casal de refugiados sírios, indo viver para um pequeno apartamento onde tem o seu escritório.
Agora, sentiu o dever de cumprir com um gesto humanitário e reativou pessoalmente a energia elétrica no edifício. E fez este gesto consciente das possíveis consequências, na convicção de que era necessário fazê-lo para o bem daquelas famílias.
Depois de recordar que dentre as pessoas estão várias crianças, o purpurado deixou para reflexão e tomada de atitude, as seguintes perguntas: Porque estão ali? Por que motivo? Como é possível que as famílias se encontrem nesse tipo de situação? E reiterou que assume toda responsabilidade: “Se chegar alguma multa, pagarei”.
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Dom Konrad Krajewski nasceu em Lódz, Polónia, a 25 de novembro de 1963 e, a seu tempo, fez-se eletricista. Foi ordenado de presbítero, a 11 de junho de 1988, por por Władysław Ziółek. A 3 de agosto de 2013, foi nomeado Arcebispo Titular de Benevento pelo Papa Francisco, que o escolheu para Esmoler Apostólico, tendo a sua ordenação episcopal ocorrido em 17 de setembro do mesmo ano, na Basílica de São Pedro, no Altar da Cátedra. Foi ordenante principal o Cardeal Giuseppe Bertello e coordinantes Piero Marini, que o inseriu no Corpo dos Cerimoniários Pontifícios, e Władysław Ziółek, Arcebispo de Lodz, arquidiocese de cujo presbitério Konrad fazia parte.  
Como conta Rita Garcia no Ponto SJ, Konrad Krajewski preparava-se para sair do Vaticano de bicicleta, quando o alertaram que ficasse atento ao que o Papa iria dizer naquele domingo de Pentecostes, quando aparecesse à janela do apartamento pontifício para a oração do Regina Coeli. Don Conrado, como é conhecido entre os sem-abrigo de Roma, estranhou o alerta, mas pôs-se à escuta. Com total surpresa, ouviu a inclusão do seu nome na lista dos 14 novos cardeais anunciados então pelo Pontífice (entre os quais constava também o português Dom António Marto, bispo de Leiria-Fátima), que seriam criados a 28 de junho, o que deixou o polaco estupefacto.
Desde a criação do cargo de esmoler do Papa entre os séculos XII e XIII, nunca o responsável pelas obras sociais do sucessor de Pedro recebera o barrete vermelho. Habituado a percorrer os piores bairros de Roma e a viver rodeado dos mais pobres,  Krajewski recebeu com estranheza a nomeação: não fazia mais do que pôr em prática a vontade do Papa, o mérito era todo de Francisco, não dele. Mas percebeu que, a 28 de Junho, passaria a integrar o Colégio dos Cardeais, com direito a voto no próximo Conclave. Sem alternativa, lembrou-se do que dizia o falecido padre Dolindo Ruotolo, sempre a que estava em apuros: “Jesus, ocupa-te tu disto”.
A escolha de Krajewski foi tudo menos aleatória. Os 227 cardeais (dos quais 126 eleitores) são conselheiros diretos do Papa. Daí que a sua nomeação reflita a agenda do líder em exercício. Ora, Francisco, ao indicar o polaco, manteve-se fiel ao que disse nos primeiros dias do Pontificado: querer uma Igreja dos pobres e para os pobres. E, em entrevista à Reuters, explicou melhor a sua intenção:
Penso que o Papa tem dois longos braços – o de guardião da fé, e aí o trabalho é feito pela Congregação para a Doutrina da Fé, e o Prefeito tem de ser cardeal. O outro longo braço é o esmoler, e também é importante que seja um cardeal. Estes são os dois braços do Papa – a fé e a caridade.”.
Por isso, Bergoglio entregou, ao mesmo tempo, o barrete vermelho ao novo Prefeito daquela Congregação, o jesuíta espanhol Luis Ladaria, e ao seu esmoler, Konrad Krajewski.
Contando com os do Consistório de 28 de Junho de 2018, este Papa já criou 75 cardeais. Embora nem todos sejam eleitores, por já terem ultrapassado os 80 anos, se houvesse hoje um Conclave, 47% dos purpurados com assento na Capela Sistina já teriam sido escolhidos por ele. Francisco disse que gostaria que o Colégio de Cardeais fosse “verdadeiramente católico” no fim do seu Pontificado. Ora, isso implicou mudanças, que têm passado por reduzir o peso dos europeus em geral, e dos italianos, em particular; ir buscar elementos às dioceses mais periféricas e a países habitualmente excluídos; e também distinguir os pastores com uma ação próxima dos fiéis, os tais pastores com cheiro a ovelha.
E, se é um facto que, mesmo assim, o país onde Francisco selecionou mais cardeais foi a Itália, com 13 nomeados, também é verdade que foi buscar elementos a 15 países onde nunca ninguém antes recebera a birreta (o chapéu que distingue os Príncipes da Igreja). É o caso do Laos, da Suécia e do Tonga, entre muitos outros. Isto significa que as comunidades das periferias passam a estar mais representadas na escolha do próximo Papa. Os mais cínicos dirão que dificilmente estes homens terão peso e apoio suficiente para ascender à cadeira de Pedro, mas o facto é que essa passa a ser, pelo menos, uma possibilidade maior do que até agora. Por outro lado, com Bergoglio, não há dioceses onde os titulares cheguem automaticamente ao cardinalato, como acontecia com Milão, Turim, Veneza, Paris, Baltimore, Filadélfia, Los Angeles e Lisboa. Francisco prefere as dioceses mais pequenas e esquecidas. Em 2014, por exemplo, nomeou um cardeal para Les Cayes, no Haiti, e deixou de fora Port-au-Prince. Em 2018, em Itália, continuou a deixar de fora as grandes cátedras, mas atribuiu a mesma distinção a Monsenhor Giuseppe Petrocchi, de Áquila, como reconhecimento pelo trabalho realizado junto das comunidades afetadas pelo sismo de 2009.
Este Pontífice tem ainda demonstrado uma atenção particular às comunidades perseguidas de católicos. Por isso, colocou no topo da sua lista de 2018 Louis Raphael Sako, o Patriarca da Babilónia e Caldeia, alertando para o sofrimento dos católicos do Iraque, e Joseph Coutts, o Arcebispo de Karachi, no Paquistão. Em 2016, dera sinal do seu apoio ao povo sírio ao dar o barrete vermelho a Mario Zenari, núncio da Santa Sé naquele país.
Entre os cardeais nomeados no Consistório de 28 de Junho de 2018, há duas escolhas curiosas: o jesuíta peruano Pedro Barreto, um ativista enérgico pela defesa da Amazónia, membro da Rede Eclesiástica Pan-amazónica, que encarna as preocupações ambientais  várias vezes manifestadas pelo Papa argentino (ao escolhê-lo, Bergoglio volta a chamar a trazer esta matéria à sua agenda); e Dom António Marto, bispo de Leiria-Fátima (escolha que alguns veem como uma predileção do Papa pela Virgem de Fátima e outros veem como uma chamada de atenção a um certo conservadorismo da hierarquia portuguesa), que está muito próximo do perfil de bispo defendido pelo Pontífice: um homem acessível aos fiéis, capaz de falar com linguagem simples sobre os grandes mistérios da fé, e sem os vícios e as vaidades que Bergoglio apontou a alguns Príncipes da Igreja.
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Enfim, parece que o Cardeal Krajewski corresponde ao que Francisco enunciava na homilia de cerimónia do último Consistório de criação dos novos cardeais:   
Estando nós na estrada para Jerusalém, o Senhor caminha à nossa frente para nos lembrar uma vez mais que a única autoridade crível é a que nasce de se colocar aos pés dos outros para servir a Cristo. É a que deriva de não esquecer que Jesus, antes de inclinar a cabeça na cruz, não teve medo de Se inclinar diante dos discípulos e lavar-lhes os pés. Esta é a mais alta condecoração que podemos obter, a maior promoção que nos pode ser dada: servir Cristo no povo fiel de Deus, no faminto, no esquecido, no recluso, no doente, no toxicodependente, no abandonado, em pessoas concretas com as suas histórias e esperanças, com os seus anseios e deceções, com os seus sofrimentos e feridas. (…) Nenhum de nós deve olhar os outros de cima para baixo; só podemos olhar assim uma pessoa, quando a ajudamos a levantar-se.”.
E recordou-lhes uma parte do testamento espiritual de São João XXIII, de 29 de junho de 1954 (havia 64 anos), que, “já adiantado no caminho, pôde dizer:
Nascido pobre, mas de gente honrada e humilde, sinto-me particularmente feliz por morrer pobre, tendo distribuído, segundo as várias exigências e circunstâncias da minha vida simples e modesta ao serviço dos pobres e da Santa Igreja que me alimentou, tudo o que me chegou às mãos – em medida, aliás, muito limitada – durante os anos do meu sacerdócio e do meu episcopado. Aparências de fartura encobriram, muitas vezes, espinhos ocultos de aflitiva pobreza que me impediram de dar sempre com toda a largueza que gostaria. Agradeço a Deus por esta graça da pobreza, de que fiz voto na minha juventude, pobreza de espírito, como Padre do Sagrado Coração, e pobreza real; e por me sustentar para nunca pedir nada, nem lugares, nem dinheiro, nem favores, nunca, nem para mim nem para os meus parentes ou amigos.”.
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O Papa tem razão em querer consolidar os dois pulmões de Igreja: a defesa e o crescimento da fé, para edificação da Igreja e capacitação para o testemunho; e a vertente esmoler, para credibilizar a missão e a chegar aonde a justiça social dos homens teima em não se realizar, quando realizar a justiça como valor supremo do direito deve ser o desígnio de quem dirige.
2019.05.15 – Louro de Carvalho

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