quinta-feira, 23 de maio de 2019

Pela dignidade da pessoa, bem comum, solidariedade e subsidiariedade


Com data de 2 de maio, publicou a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) a Carta Pastoral “Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja” com o fito de ajudar os católicos do país e outros portugueses “a abraçar os principais desafios” com que se deparam no mundo e especialmente em Portugal e na Europa. E a CEP fá-lo à luz dos princípios da doutrina social da Igreja (DSI), constantemente atual e capaz de “dar um contributo fecundo para os rumos da atual sociedade”, mercê da perene solidez dos seus princípios e riqueza “de contínuos aprofundamentos” que vão acompanhando #os sinais dos tempos. Por outro lado, as reflexões e sugestões do Episcopado estão organizadas segundo princípios-base da DSI: dignidade da pessoa, bem comum, solidariedade e subsidiariedade. São quatro os grandes tópicos da carta: a vida, o bem comum, o cuidado da casa comum e o papel do Estado.
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Acerca da vida vincam os Bispos que toda a vida humana tem igual e fundamental valor, porque é inerente à essência da pessoa humana que “é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Assente na “visão bíblica e cristã do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e chamado a uma vida de comunhão com Ele”, a pessoa “tem a dignidade de ser única e irrepetível e não pode ser reduzida a simples objeto ou instrumento ao serviço de fins que lhe sejam alheios” – dignidade que não varia em grau nem depende da raça, sexo ou idade, da doença ou da saúde, pois depende “do que a pessoa  é, não do que faz ou pode fazer.
Em relação com o direito à vida, a CEP enuncia uma novena de subtópicos: direito à vida na sua gestão, direito à vida na fase do seu crescimento, direito à vida por parte de jovens comprometidos, direito à vida nas relações familiares, direito à vida da parte dos idosos, direito a viver até ao fim, direito à vida na liberdade religiosa, direito à vida na sua componente económica e direito à vida na sua componente demográfica.  
Em relação ao direito à vida na sua gestação, evocando o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o facto de o n.º 2 do art.º 16.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) estatuir que as normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com essa Declaração, os Bispos lembram que o primeiro dos direitos e o pressuposto dos outros é a vida, pelo que não esquecem a frequência dos atentados à vida dos nascituros, através do aborto, dado que “o embrião e o feto são os ‘mais pobres dos pobres’, como dizia Santa Teresa de Calcutá; exigem “ao Estado que reforce o apoio às grávidas e a rede de informação sobre alternativas ao aborto”; e apelam às paróquias e centros de apoio à vida para a criação de grupos de acompanhamento de modo que as grávidas não sejam abandonadas à sua sorte, uma vez nascidas as respetivas crianças.
No âmbito do direito à vida na fase do seu crescimento, defendem o respeito pelas crianças, condenam o abuso sexual de que algumas delas têm sido vítimas, venha ele de quem vier, “mas muito mais grave se for por pessoas da sua confiança a praticá-lo” ou por membros qualificados da Igreja. E denunciam outro tipo de abusos, como: violências, descuidos, abandonos, bullyings.
Quanto ao direito à vida por parte de jovens comprometidos, que desejam uma sociedade mais justa e fraterna e lutam por ela, regozijam-se com esse desejo e pela capacidade de muitos jovens de exigirem maior transparência e responsabilidade na gestão da coisa pública, bem como uma mais justa repartição de rendimento, forçando “os mais velhos, a um duro, mas saudável exame de consciência sobre as nossas responsabilidades perante as gerações futuras”.
No quadro do direito à vida nas relações familiares, os Bispos mencionam os estudos que mostram que, em cada dez crianças em Portugal, uma é sujeita a castigos de extrema violência física e psíquica da parte de pais e educadores; sentem-se interpelados pelo número crescente de mulheres mortas e de queixas registadas por mulheres vítimas de violência física e psíquica; e frisam o particular dever de denúncia e apoio às vítimas.
Relativamente ao direito à vida da parte dos idosos, a CEP regista o crescente predomínio da população idosa, com os problemas que daí decorrem, entre os quais a solidão, que é já um grave problema de saúde pública. Contra isso, propõe a valorização do “contributo próprio dos idosos na nossa sociedade, enquanto depositários de sabedoria e de memória”.
No atinente ao direito a viver até ao fim, a CEP reafirma que a eutanásia atenta contra a inviolabilidade da vida humana, sublinha do facto de ter sido rejeitada pelo Parlamento português e recorda “a experiência de outros países europeus, com desmandos decorrentes da chamada rampa deslizante”, que faz com que, aberta a porta de uma lei pretensamente baseada sobretudo na compaixão, rapidamente se tenha contribuído “para o uso e abuso da lei, para o descarte dos mais velhos e abandonados”. Assim, reitera que “a dignidade da pessoa não pode derivar da sua capacidade de trabalho, produtividade ou estatuto perante o mercado” e que “o direito à vida, que abarca todas as fases e situações da existência humana, é também negado quando se recusa o acesso à alimentação básica e a tratamentos de saúde, quando não se promovem os cuidados continuados e paliativos”.
Sobre o direito à vida na liberdade religiosa, observa-se que o art.º 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos “consagra esse direito nas dimensões individual e comunitária, particular e pública”. Não obstante, “são hoje muitos e graves os atentados à liberdade religiosa, que atingem em grande medida os cristãos”. E, embora não seja assim em Portugal, importa “alertar para tendências, ainda existentes, que pretendem relegar a expressão religiosa para espaços privados, confundindo a sã laicidade com o laicismo hostil à religião”.
No quadro do direito à vida na sua componente económica, a CEP evoca a declaração parlamentar unânime de que “a pobreza conduz à violação dos direitos humanos”. Não obstante, dados do INE, de finais de 2018, referem que 21,6% da população portuguesa se encontrava em risco de pobreza ou exclusão social. E, apesar da diminuição do desemprego, regista-se que “cerca de 10% dos trabalhadores com emprego não consegue o salário justo que permita ao seu agregado familiar viver dignamente, assegurando a educação dos filhos, o acesso à cultura e à formação, a alimentação, a habitação e o lazer”, pelo que os cristãos não podem conformar-se com uma ação meramente assistencialista do Estado junto dos mais pobres. E os Bispos chamam a atenção para as vigorosas críticas do Papa à “economia que mata” e à “autonomia absoluta dos mercados”, quando “a economia, a empresa, os mercados devem estar ao serviço das pessoas, e não o contrário”. Ora, a afirmação da vantagem do reforço da competitividade através de baixos salários não respeita o princípio da centralidade da pessoa e “é desumana”.
Os Bispos saúdam a redução do desemprego, a criação de muitos postos de trabalho e o reforço do turismo – o que ajudou a reequilibrar a balança de pagamentos –, mas não subestimam a fraca resiliência do país a choques externos e a degradação dos serviços públicos (sobretudo na educação e na saúde), na sequência da quebra de investimento, a par da degradação dos serviços prestados e do nível de carga fiscal mais elevado das últimas décadas.
A cerca do direito à vida na sua componente demográfica, a CEP sustenta que nascida da “aliança das dimensões masculina e feminina”, a família, “sem deixar de ser um bem para a realização pessoal, no plano afetivo, espiritual ou outros, de cada um dos seus membros, é um bem público e social para a sociedade no seu todo”. Depois, vinca a atual “crise demográfica sem paralelo na história, a não ser a que decorria de guerras ou graves carências”, pelo que são, “urgentes medidas económicas e sociais de promoção da natalidade” e uma mudança “no plano da mentalidade e das opções de vida. Todavia, não olvida as realidades que objetivamente mais dificultam a opção de ter filhos, como: a precariedade do trabalho, a que se junta a difícil conciliação entre trabalho e vida familiar, devido à falta de horários mais ajustados às conveniências da produção do que às da família; e as dificuldades no acesso à habitação de jovens casais, em particular nos maiores centros urbanos, com preços de aquisição ou rendas incomportáveis, mercê do aumento da procura turística, que é positivo, e da cegueira da maior rendibilidade, o que é mau, havendo que encontrar alternativas, sobretudo na habitação social.
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Do Bem comum diz a CEP que “é o bem de todos e de cada um”, não sendo, por isso, o bem do “maior número” na perspetiva utilitarista, da maioria que sacrifica bens fundamentais da minoria. Ora, a democracia, que supõe o respeito pela regra da maioria, não pode assentar no seu domínio absoluto, pois o bem comum exige que os direitos dos pobres não sejam esquecidos ou menosprezados, pelodeve ser o critério do bem comum, mais do que o do interesse individual ou do grupo/partido de pertença, a guiar as opções políticas de cada cidadão” e a “enquadrar a legitimidade das reivindicações de grupos e classes profissionais”.
No âmbito do bem comum, os Bispos refletem sobre a corrupção, os migrantes e a Europa.
Assim, no quadro da corrupção, no sentido mais alargado que técnico, denunciam as resistências à obrigação de pagar impostos, omissão que, mesmo que seja legal, impossibilita a redistribuição de rendimentos em benefício dos mais pobres; a gratificação a troco de um pequeno favor, que pode ser o primeiro passo para uma cultura que desculpa o suborno, o tráfico de influências e a aquisição indevida de vantagens, até à corrupção, que tanto mina a sociedade. Por isso, impõe-se uma pedagogia social que induza a cultura da honestidade.
Quanto ao bem comum e os migrantes e tendo em conta que “o bem comum pode ser nacional e universal”, rejeita a CEP as correntes inspiradas no “nacionalismo de exclusão” que vêm ganhando força em vários países, bem como o excessivo clima de medo e desconfiança para com os estrangeiros e o perigo de os encarar como concorrentes a postos de trabalho. E recordam os dados do Observatório para as Migrações, segundo os quais os contributos financeiros dos imigrantes para o Estado são maiores do que as prestações de que beneficiam.
Sobre o bem comum e a unidade da Europa, infere a CEP que no bem comum está “a chave para superar a crise com que hoje se confronta o projeto da unidade europeia, que os últimos Papas, desde Pio XII, têm encorajado”, crise que se deve “a visões parciais e exclusivistas dos interesses nacionais”. Por isso, há que “fomentar o sentimento de pertença a uma verdadeira comunidade que, sem substituir o da pertença à comunidade nacional, tenha com ele alguma semelhança”, o que “só será possível a partir da consciência de uma história, uma cultura e valores partilhados”. Assim, não se podem esquecer “as raízes cristãs da cultura europeia”, não tanto como relíquia do passado, mas como “património vivo que pode dar frutos no presente”.
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Depois, vem o cuidado da casa comum em nome da responsabilidade e da solidariedade.
Recordando que São João Paulo II ensina que “a solidariedade é uma verdadeira e própria virtude moral” e “a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum”, apraz à CEP registar a sensibilidade e generosidade demonstrada entre nós perante as dores de compatriotas em situações de tragédia, bem como as de comunidades estrangeiras, mencionando a mobilização perante a tragédia de Moçambique. Porém quer que se passe da reação emotiva e ocasional ao compromisso duradouro fundado na solidária determinação firme e perseverante.
Afirmando categoricamente que o destino universal dos bens prevalece sobre o direito à propriedade, refere que “a raiz do destino universal dos bens reside na vontade do Criador que os destina a todos os seres humanos, sem excluir ninguém”. Trata-se, pois, de “um direito inscrito na natureza humana e não ligado à contingência histórica” – o que não requer que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. Assim, o destino universal dos bens, que prevalece, deve articular-se com o direito à propriedade privada, que garante a autonomia pessoal e familiar, o prolongamento da liberdade humana e uma condição das liberdades civis.
Contra a desigualdade da distribuição de rendimentos entre nós e noutros países preconizam os Bispos uma melhor distribuição de rendimentos para uma sociedade mais coesa. Com efeito, a globalização económica fez crescer a riqueza em termos absolutos, levando muitas pessoas a sair da pobreza, mas também provocou um inédito e alastrante crescimento das desigualdades, mercê das distorções do sistema fiscal, como: evasão, “paraísos fiscais” e reduzida tributação dos rendimentos de capitais face aos rendimentos do trabalho.
Quanto à solidariedade com as gerações futuras no cuidado da criação, lembra a CEP como suas associadas a ecologia e a solicitude pela criação e evoca a ecologia integral de que fala o Papa Francisco e que inclui a ecologia social na vertente solidária, que afeta especialmente as gerações futuras e os mais pobres. Por outro lado, como refere o Papa.
Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses.”.
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Quanto ao papel do Estado, a CEP preconiza o equilíbrio “nem Estado centralizador, nem Estado mínimo”, mas um Estado que assente no princípio da subsidiariedade.
Querendo o Estado como garante da liberdade de educação e de saúde, a CEP sustenta que o Estado deve apoiar o ensino não estatal no respeito pela liberdade constitucional de aprender e de ensinar e pela livre escolha dos pais, como os primeiros educadores, e diz que, em Portugal, é talvez o campo do ensino aquele em que há maior distância em relação ao princípio da subsidiariedade”. E os Bispos, considerando que o SNS contribui para a prestação geral de cuidados necessários a todos os cidadãos, entendem que deve ser salvaguardado e melhorado, mas conjugado com iniciativas particulares e sociais, úteis, necessárias e eficazes.
Na relação entre o Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade Social, salientam as iniciativas da sociedade e da Igreja, com as marcas da proximidade das situações concretas e da espontaneidade de quem nelas intervém por dever próprio, sendo que toda a comunidade ganha com isso e não só a poupança das despesas ao Estado. Por isso, deve se reforçada tal relação.
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A leitura da Carta Pastoral da CEP, fundada na DSI, será útil mesmo para quem não concorde com tudo. Também da divergência nascerá a luz em prol da sociedade justa, humana e fraterna!
2019.05.23 – Louro de Carvalho

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