Com
data de 2 de maio, publicou a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) a
Carta Pastoral “Um olhar sobre Portugal e
a Europa à luz da doutrina social da Igreja” com o fito de ajudar os católicos do país e outros portugueses “a
abraçar os principais desafios” com que se deparam no mundo e especialmente em
Portugal e na Europa. E a CEP fá-lo à luz dos princípios da doutrina social da
Igreja (DSI), constantemente atual e capaz de “dar um contributo
fecundo para os rumos da atual sociedade”, mercê da perene solidez dos seus
princípios e riqueza “de contínuos aprofundamentos” que vão acompanhando #os sinais dos tempos”. Por
outro lado, as reflexões e sugestões do Episcopado estão
organizadas segundo princípios-base da DSI: dignidade da pessoa, bem
comum, solidariedade e subsidiariedade. São quatro os grandes tópicos da carta:
a vida, o bem comum, o cuidado da casa comum e o papel
do Estado.
***
Acerca da vida vincam
os Bispos que toda a vida humana tem igual e fundamental valor, porque é
inerente à essência da pessoa humana que “é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas
as instituições sociais”. Assente na “visão bíblica e cristã
do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e chamado a uma vida de
comunhão com Ele”, a pessoa “tem a dignidade de ser única e irrepetível e não
pode ser reduzida a simples objeto ou instrumento ao serviço de fins que lhe
sejam alheios” – dignidade que não varia em grau nem depende da raça, sexo ou
idade, da doença ou da saúde, pois depende “do que a pessoa é, não do que faz ou pode fazer”.
Em relação com o direito à
vida, a CEP enuncia uma novena de subtópicos: direito à vida na sua gestão,
direito à vida na fase do seu crescimento, direito à vida por parte de jovens comprometidos, direito à vida nas relações familiares, direito à
vida da parte dos
idosos, direito a viver
até ao fim, direito à vida na liberdade religiosa, direito à vida na sua componente económica e direito
à vida na sua
componente demográfica.
Em
relação ao direito à vida na sua gestação, evocando o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos
e o facto de o n.º 2 do art.º 16.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) estatuir que as normas constitucionais e legais
relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de
harmonia com essa Declaração, os Bispos lembram que o primeiro dos direitos e o
pressuposto dos outros é a vida, pelo que não esquecem a frequência dos
atentados à vida dos nascituros, através do aborto, dado que “o embrião e o
feto são os ‘mais pobres dos pobres’, como dizia Santa Teresa de Calcutá;
exigem “ao Estado que reforce o apoio às grávidas e a rede de informação sobre
alternativas ao aborto”; e apelam às paróquias e centros de apoio à vida para a
criação de grupos de acompanhamento de modo que as grávidas não sejam
abandonadas à sua sorte, uma vez nascidas as respetivas crianças.
No âmbito do direito à vida na fase do seu
crescimento, defendem o respeito pelas crianças, condenam o abuso sexual de
que algumas delas têm sido vítimas, venha ele de quem vier, “mas muito mais
grave se for por pessoas da sua confiança a praticá-lo” ou por membros
qualificados da Igreja. E denunciam outro tipo de abusos, como: violências,
descuidos, abandonos, bullyings.
Quanto ao direito
à vida por parte de jovens comprometidos, que desejam uma sociedade mais justa e
fraterna e lutam por ela, regozijam-se com esse desejo e pela capacidade de
muitos jovens de exigirem maior transparência e responsabilidade na gestão da
coisa pública, bem como uma mais justa repartição de rendimento, forçando “os
mais velhos, a um duro, mas saudável exame de consciência sobre as nossas
responsabilidades perante as gerações futuras”.
No
quadro do direito à vida nas relações familiares, os Bispos mencionam os estudos que mostram que, em cada dez crianças em
Portugal, uma é sujeita a castigos de extrema violência física e psíquica da
parte de pais e educadores; sentem-se interpelados pelo número crescente de
mulheres mortas e de queixas registadas por mulheres vítimas de violência
física e psíquica; e frisam o particular dever de denúncia e apoio às vítimas.
Relativamente
ao direito à vida da parte dos idosos, a CEP regista o crescente predomínio da população idosa, com os problemas que daí
decorrem, entre os quais a solidão, que é já um grave problema de saúde
pública. Contra isso, propõe a valorização do “contributo próprio dos idosos na
nossa sociedade, enquanto depositários de sabedoria e de memória”.
No
atinente ao direito a viver até ao fim, a CEP reafirma que a eutanásia atenta contra a inviolabilidade da
vida humana, sublinha do facto de ter sido rejeitada pelo Parlamento português
e recorda “a experiência de outros países europeus, com desmandos decorrentes
da chamada rampa deslizante”, que faz com que, aberta a porta de uma lei
pretensamente baseada sobretudo na compaixão, rapidamente se tenha contribuído “para
o uso e abuso da lei, para o descarte dos mais velhos e abandonados”. Assim,
reitera que “a dignidade da pessoa não pode derivar da sua capacidade de
trabalho, produtividade ou estatuto perante o mercado” e que “o direito à vida,
que abarca todas as fases e situações da existência humana, é também negado
quando se recusa o acesso à alimentação básica e a tratamentos de saúde, quando
não se promovem os cuidados continuados e paliativos”.
Sobre o direito
à vida na liberdade religiosa, observa-se que o art.º 18.º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos “consagra esse direito nas dimensões individual
e comunitária, particular e pública”. Não obstante, “são hoje muitos e graves
os atentados à liberdade religiosa, que atingem em grande medida os cristãos”.
E, embora não seja assim em Portugal, importa “alertar para tendências, ainda
existentes, que pretendem relegar a expressão religiosa para espaços privados,
confundindo a sã laicidade com o laicismo hostil à religião”.
No
quadro do direito à vida na sua componente económica, a CEP evoca a
declaração parlamentar unânime de que “a pobreza conduz à violação dos direitos humanos”. Não obstante, dados do INE, de finais de
2018, referem que 21,6% da população portuguesa se encontrava em risco de
pobreza ou exclusão social. E, apesar da diminuição do desemprego, regista-se
que “cerca de 10% dos trabalhadores com emprego não consegue o salário justo que permita ao seu agregado
familiar viver dignamente, assegurando a educação dos filhos, o acesso à
cultura e à formação, a alimentação, a habitação e o lazer”, pelo que os
cristãos não podem conformar-se com uma ação meramente assistencialista do
Estado junto dos mais pobres. E os Bispos chamam a atenção para as vigorosas
críticas do Papa à “economia que mata” e à “autonomia absoluta dos mercados”,
quando “a economia, a empresa, os mercados devem estar ao serviço das pessoas,
e não o contrário”. Ora, a afirmação da vantagem do reforço da competitividade
através de baixos salários não respeita o princípio da centralidade da pessoa e
“é desumana”.
Os Bispos saúdam a redução do desemprego, a criação de
muitos postos de trabalho e o reforço do turismo – o que ajudou a reequilibrar
a balança de pagamentos –, mas não subestimam a fraca resiliência do país a
choques externos e a degradação dos serviços públicos (sobretudo na
educação e na saúde), na sequência
da quebra de investimento, a par da degradação dos serviços prestados e do
nível de carga fiscal mais elevado das últimas décadas.
A
cerca do direito à vida na sua componente demográfica, a CEP sustenta
que nascida da “aliança das dimensões
masculina e feminina”, a família, “sem deixar de ser um bem para a realização
pessoal, no plano afetivo, espiritual ou outros, de cada um dos seus membros, é
um bem público e social para a sociedade no seu todo”. Depois, vinca a atual “crise
demográfica sem paralelo na história, a não ser a que decorria de guerras ou
graves carências”, pelo que são, “urgentes medidas económicas e sociais de
promoção da natalidade” e uma mudança “no plano da mentalidade e das opções de
vida. Todavia, não olvida as realidades que objetivamente mais dificultam a
opção de ter filhos, como: a precariedade
do trabalho, a que se junta a difícil
conciliação entre trabalho e vida familiar, devido à falta de horários mais
ajustados às conveniências da produção do que às da família; e as dificuldades no acesso à habitação de jovens
casais, em particular nos maiores centros urbanos, com preços de aquisição
ou rendas incomportáveis, mercê do aumento da procura turística, que é positivo,
e da cegueira da maior rendibilidade, o que é mau, havendo que encontrar
alternativas, sobretudo na habitação social.
***
Do Bem comum diz a
CEP que “é o bem de todos e de cada um”, não
sendo, por isso, o bem do “maior número” na perspetiva utilitarista, da maioria
que sacrifica bens fundamentais da minoria. Ora, a democracia, que supõe o
respeito pela regra da maioria, não pode assentar no seu domínio absoluto, pois
o bem comum exige que os direitos dos pobres não sejam esquecidos ou
menosprezados, pelo “deve ser o critério do bem comum,
mais do que o do interesse individual ou do grupo/partido de pertença, a guiar
as opções políticas de cada cidadão” e a “enquadrar a legitimidade das
reivindicações de grupos e classes profissionais”.
No
âmbito do bem comum, os Bispos refletem sobre a corrupção, os migrantes
e a Europa.
Assim, no quadro da corrupção, no sentido mais alargado que técnico, denunciam as resistências
à obrigação de pagar impostos, omissão que, mesmo que seja legal, impossibilita
a redistribuição de rendimentos em benefício dos mais pobres; a gratificação a
troco de um pequeno favor, que pode ser o primeiro passo para uma cultura que
desculpa o suborno, o tráfico de influências e a aquisição indevida de vantagens,
até à corrupção, que tanto mina a sociedade. Por isso, impõe-se uma pedagogia
social que induza a cultura da honestidade.
Quanto
ao bem comum e os migrantes e tendo em conta que “o bem comum pode ser nacional e universal”, rejeita a
CEP as correntes inspiradas no “nacionalismo de exclusão” que vêm ganhando
força em vários países, bem como o excessivo clima de medo e desconfiança para
com os estrangeiros e o perigo de os encarar como concorrentes a postos de
trabalho. E recordam os dados do Observatório para as Migrações, segundo os
quais os contributos financeiros dos imigrantes para o Estado são maiores do
que as prestações de que beneficiam.
Sobre
o bem comum e a unidade da Europa, infere a CEP que no bem comum está “a chave para superar a crise com que hoje se
confronta o projeto da unidade europeia, que os últimos Papas, desde Pio XII,
têm encorajado”, crise que se deve “a visões parciais e exclusivistas dos
interesses nacionais”. Por isso, há que “fomentar o sentimento de pertença a
uma verdadeira comunidade que, sem substituir o da pertença à comunidade
nacional, tenha com ele alguma semelhança”, o que “só será possível a partir da consciência de uma história, uma cultura e
valores partilhados”. Assim, não se podem esquecer “as raízes cristãs da
cultura europeia”, não tanto como relíquia do passado, mas como “património
vivo que pode dar frutos no presente”.
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Depois, vem o cuidado da
casa comum em nome da responsabilidade e da solidariedade.
Recordando que São João Paulo II ensina que “a solidariedade é uma verdadeira e própria
virtude moral” e “a determinação firme e perseverante de se empenhar
pelo bem comum”, apraz à CEP registar a sensibilidade e
generosidade demonstrada entre nós perante as dores de compatriotas em
situações de tragédia, bem como as de comunidades estrangeiras, mencionando a
mobilização perante a tragédia de Moçambique. Porém quer que se passe da reação
emotiva e ocasional ao compromisso duradouro fundado na solidária determinação firme e perseverante.
Afirmando
categoricamente que o destino universal dos bens prevalece sobre o direito à
propriedade, refere que “a raiz do
destino universal dos bens reside na vontade do Criador que os destina a todos
os seres humanos, sem excluir ninguém”. Trata-se, pois, de “um direito inscrito
na natureza humana e não ligado à contingência histórica” – o que não requer
que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. Assim, o destino
universal dos bens, que prevalece, deve articular-se com o direito à
propriedade privada, que garante a autonomia pessoal e familiar, o
prolongamento da liberdade humana e uma condição das liberdades civis.
Contra
a desigualdade da
distribuição de rendimentos entre nós e noutros países preconizam os Bispos uma melhor distribuição de rendimentos para
uma sociedade mais coesa. Com efeito, a globalização económica fez
crescer a riqueza em termos absolutos, levando muitas pessoas a sair da
pobreza, mas também provocou um inédito e alastrante crescimento das
desigualdades, mercê das distorções do sistema fiscal, como: evasão, “paraísos
fiscais” e reduzida tributação dos rendimentos de capitais face aos rendimentos
do trabalho.
Quanto
à solidariedade com as gerações futuras no cuidado da criação, lembra a
CEP como suas associadas a ecologia e
a solicitude pela criação e evoca a ecologia integral de
que fala o Papa Francisco e que inclui a ecologia social na
vertente solidária, que afeta especialmente as gerações futuras e os mais
pobres. Por outro lado, como refere o Papa.
“Não
podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador.
Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou
colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem
limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no
seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra é
voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso
contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas
próprias leis e interesses.”.
***
Quanto ao papel do Estado,
a CEP preconiza o equilíbrio “nem Estado
centralizador, nem Estado mínimo”, mas um Estado que assente no princípio da subsidiariedade.
Querendo o Estado como garante da liberdade de educação e de
saúde, a CEP sustenta que o Estado deve apoiar o ensino não estatal
no respeito pela liberdade constitucional de aprender e de ensinar e pela livre
escolha dos pais, como os primeiros educadores, e diz que, em Portugal, é
talvez o campo do ensino aquele em que há maior distância em relação ao
princípio da subsidiariedade”. E os Bispos, considerando que o SNS contribui
para a prestação geral de cuidados necessários a todos os cidadãos, entendem que
deve ser salvaguardado e melhorado, mas conjugado com iniciativas particulares
e sociais, úteis, necessárias e eficazes.
Na
relação entre o Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade
Social, salientam as iniciativas
da sociedade e da Igreja, com as marcas da proximidade das situações concretas
e da espontaneidade de quem nelas intervém por dever próprio, sendo que toda a
comunidade ganha com isso e não só a poupança das despesas ao Estado. Por isso,
deve se reforçada tal relação.
***
A leitura da Carta Pastoral da CEP, fundada na DSI,
será útil mesmo para quem não concorde com tudo. Também da divergência nascerá
a luz em prol da sociedade justa, humana e fraterna!
2019.05.23 –
Louro de Carvalho
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