Jesus é o Cordeiro que revela Deus-Pastor ou a faceta
pastoral de Deus, o Cordeiro porque segue o Pai, Bom-Pastor. É o Cordeiro porque, sendo Filho, se faz
cordeiro manso e amigo, próximo e voz do Bom Pastor, que
dá a vida pelas suas ovelhas. É o Cordeiro que vai à frente
do rebanho, como Mestre, e nos desafia a ser cordeiros à
sua imagem e no seu seguimento. É o Cordeiro frágil e de
coração grande, cuja palavra é vida e luz, que a todos
purifica e faz ver o valor que o quotidiano esconde.
Este Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo,
além do chamamento que a todos e a todas faz à vida da Graça e de apostolado,
que deriva do Batismo que nos foi ministrado, chamou e continua a chamar vocações
de especial consagração: monges, frades, freiras, leigas e leigos consagrados, sacerdotes,
missionários e missionárias. São vidas de cordeiro obediente que se tornam bons
pastores, num mundo inquieto e a grande velocidade, que vertiginosamente corre à volta de si correndo o risco de se
aniquilar. São opções de vida alternativa que
transfiguram o sentido da vida e mostram a força da liberdade de
servir com alegria. Constituem um modo dinâmico de aprendizagem com o Cordeiro
a fazer a diferença no rebanho, não pela vestimenta, pela
aparência ou pela ausência, mas pelo olhar, pelo sentir,
pelo amar e pelo acreditar. É necessário um excesso de
contemplação do Cordeiro imaculado, no meio de tantos programas de
distração a passar.
O Senhor, Bom Pastor, ontem, hoje e para sempre, desvela-se em cuidado paciente, amoroso e
misericordioso. Cristo, Cordeiro de Deus, que é o rosto humano
do Bom Pastor, abre-nos o coração à Palavra que nos ama e
ilumina, para que não nos cansemos em vão nem esqueçamos os irmãos ao
longo desta sacra peregrinação terrestre. De coração magnânimo nos chama ao
serviço da missão e coloca o tesouro do Evangelho
no barro frágil das nossas vidas, que se encarregam de retransmitir o programa
de Deus. Ele dá força e entusiasmo àqueles e àquelas que chama a segui-Lo
numa vida consagrada ao Evangelho e à Igreja, para que saibam dizer “sim” e serem fiéis ao chamamento divino, em
ordem à transformação do mundo.
***
O 4.º domingo da Páscoa é o “Domingo do Bom
Pastor”, pois todos os anos a liturgia propõe um trecho do capítulo
10 do Evangelho de São João, em que Jesus Se apresenta como o Bom Pastor. Por outro lado, a
perspicácia de São Paulo VI fez deste domingo o Dia Mundial de Oração pelas vocações
Sacerdotais e Religiosas, a cujo
tema a evolução dos tempos acabou por consagrar a semana que o antecede
e alargou o sentido do dia a todas as vocações
especiais que acima se referiram. Como foi referido, no Evangelho (Jo 10,27-30) apresenta-Se Cristo como o Bom Pastor, cuja missão é trazer a vida plena
às ovelhas do seu rebanho, as quais, por sua vez, são convidadas a escutar o Pastor, a acolher
a sua proposta e a segui-Lo para encontrarem a vida em abundância. Ante a proposta do Pastor, a 1.ª leitura (At 13,14.43-52) evidencia duas atitudes: a das ovelhas autossuficientes e comodamente instaladas nas suas certezas; e a das
ovelhas atentas à voz do Pastor
e dispostas a arriscar segui-Lo até às pastagens verdejantes da vida abundante
e plena. Obviamente, esta segunda atitude é que é evangélica. E a 2.ª leitura (Ap 7,9.14b-17) apresenta a meta final do rebanho
que seguiu Jesus, o Bom Pastor: a vida total, de felicidade infinda.
***
A partir
do cap. 13, o livro dos Atos dos Apóstolos apresenta a via da Igreja no mundo
greco-romano, etapa cujo protagonista humano é Paulo (animado
e conduzido pelo Espírito do Ressuscitado).
Efetivamente, a comunidade cristã de Antioquia da Síria,
ansiosa por fazer chegar a todos os povos a Boa Nova de Jesus, envia Barnabé e
Paulo a evangelizar. Entre 13,1 e 15,35, descreve-se o envio dos missionários,
a viagem, a evangelização de Chipre e da Ásia Menor (Perga, Antioquia da Pisídia, Icónio,
Listra, Derbe) e os
problemas colocados à jovem Igreja pela entrada maciça de gentios, para os
quais ela sentiu a necessidade de se voltar.
A perícopa proclamada nesta liturgia dominical situa-nos na
cidade de Antioquia da Pisídia (a atual Yalvas, na Turquia), na Ásia Menor. Nos versículos anteriores, o autor de Atos
pôs na boca de Paulo, em longo discurso, uma síntese da catequese primitiva
sobre Jesus, que enquadra no plano de Deus a oferta de salvação que Jesus
trouxe (cf At 13,16-41). E a questão central gira em torno da
reação dos judeus (e os
cristãos provindos do judaísmo) e pagãos (e os
cristãos provindos do paganismo) ao anúncio de salvação apresentado por Paulo e Barnabé. Os que pensavam
ter o monopólio de Deus e da verdade, instalados em suas certezas, não estavam dispostos
a “embarcar” na aventura do seguimento de Cristo. Porém, os que, no desafio do
Evangelho, descobriram a universalidade da vida verdadeira, questionaram-se, arriscaram
e responderam com alegria e entusiasmo à oferta libertadora feita por Deus por
intermédio dos missionários. Na verdade, a Boa Nova de Jesus é dirigida a todos
os homens, de todas as raças e nações; não é proposta fechada, exclusivista,
destinada a um grupo de eleitos, mas uma oferta universal em prol de todos os
homens (sem exceção). Decisivo não é ter nascido neste
ou naquele ambiente, mas a capacidade de aceitar o desafio, acolher com simplicidade,
alegria e entusiasmo a oferta de Jesus e partir, no quotidiano, para e pelo
caminho onde Deus nos põe a encontrar a vida total.
Os judeus e cristãos provindos do judaísmo são hoje os que se
acomodaram à religião morna, segura, feita de hábitos, leis, devoções, ritos
externos e fórmulas fixas, mas que não põe em causa a consciência e o coração,
nem tem impacto real na vida diária da família e da sociedade. É a religião dos
certinhos, que têm medo da novidade de Deus. São o irmão mais velho da parábola
do Pai Misericordioso (vd
Lc 15,11-32). Ao invés,
os cristãos provindos do paganismo e os próprios pagãos são hoje os que, tendo
tantas vezes uma história pessoal complicada e uma caminhada de fé nem sempre
exemplar, estão abertos à novidade de Deus e se deixam questionar por Ele. São
o irmão o filho mais novo da parábola do Pai Misericordioso. Não têm medo de se
desinstalar, de arriscar partir para uma vida nova e mais exigente, ainda que
seja um caminho de cruz e de perseguição.
***
A liturgia do 3.º domingo da Páscoa apresentava-nos o
Cordeiro, o Senhor da história, que Se prepara para abrir e ler o livro dos
sete selos (sete o número
simbólico da totalidade),
o livro onde estava escrita a história humana. Segundo o autor do Apocalipse, a
abertura dos selos expõe a realidade do mundo: na caminhada histórica dos
homens, pontifica Cristo vitorioso em combate permanente contra tudo o que
escraviza o homem (1.º
selo – o cavaleiro branco);
está patente a guerra e o sangue (2.º selo – o cavaleiro vermelho), a fome e a penúria (3.º selo – o cavaleiro negro), a morte, a doença, a decomposição
(4.º selo – o cavaleiro
esverdeado). Em pano de
fundo jazem os mártires, os que sofreram perseguições por causa da fé e que,
dia a dia, clamavam a Deus por justiça (5.º selo). Por conseguinte, prepara-se o “grande dia da ira”, que anuncia a
intervenção de Deus na história para destruir o mal (6.º selo). E a revelação final apresenta o combate definitivo,
em que as forças de Deus derrotam as do mal (7.º selo). Os 4 primeiros selos representam o nosso mundo,
sobressaindo o mais excelso dos homens, Cristo, o cavaleiro branco (branca é a cor de Deus e a cor
originária da luz), o da
alegria da vitória, ao passo que os outros três selos, representam o mundo que
ostenta o poder de Deus concretizado na bem-aventurança dos mártires, no domínio
da natureza a reagir à soberba humana e nas trombetas a anunciar o juízo de
Deus.
A perícopa proclamada na liturgia de hoje situa-nos no
contexto do 7.º selo (o
anúncio do “Dia do Senhor”). Aos mártires que clamam por justiça, o autor do “Apocalipse” descreve
o que vai resultar da intervenção de Deus: a libertação definitiva. Como que
através da fresta duma janela entreaberta, João apresenta-nos uma inumerável, imensa
e universal multidão. Os seus componentes estão de pé, em sinal de vitória,
pois participam da ressurreição de Cristo; envergam túnicas brancas, já que
pertencem à esfera de Deus, aclamam com palmas e louvam Deus e o Cordeiro. Esta
aclamação e louvor aludem à Festa das Tendas,
celebrada no final das colheitas, marcada pela alegria e pelo louvor, em
memória do êxodo (em que
os israelitas viveram em “tendas”) e que, por influência de Zc 14,16, assume claras
ressonâncias escatológicas. Na liturgia dessa festa, a multidão entrava em
cortejo no recinto do Templo, agitando palmas e cantando.
Estes – como diz o vidente – são os que “vieram da grande tribulação e que branquearam as vestes no sangue do Cordeiro”
(v. 14), isto é, que suportaram a
perseguição mais feroz e alcançaram a redenção pela entrega de Jesus. Diante de
Deus tributam-Lhe, dia e noite, o culto, que não é o somatório dum conjunto de
ritos, mas fruto da gozosa presença diante de Deus e do Cordeiro.
Recorde-se que a Festa
das Tendas aludia à marcha do Povo de Deus pelo deserto, desde a terra da
escravidão até à terra da liberdade. A referência a esta festa significa que se
cumpre agora o novo e definitivo êxodo: depois da intervenção final de Deus na
história, a multidão dos que aderiram ao Cordeiro alcança a libertação
definitiva, acolhida na tenda de Deus (É Deus que faz a colheita), onde não haverá a morte, o sofrimento, as lágrimas. Cristo
ressuscitado, sentado no trono, é o Pastor deste novo Povo e condu-lo para “as
fontes de águas vivas”, isto é, à plenitude dos bens definitivos. Aos santos
que gritam por justiça, anuncia-se a mensagem da esperança sustentada. O quadro
antecipa o tempo escatológico: o da intervenção definitiva de Deus na história,
de que resultará a libertação definitiva do Povo de Deus.
O autor do Apocalipse deixa-nos, assim, a mensagem da
esperança sustentada, pois em vez da condenação ao fracasso, teremos a vida plena,
a felicidade total. Basta que acolhamos o dom da salvação que nos é feito por
Deus. A resposta positiva à oferta de salvação que Deus nos faz introduz em nós
um novo dinamismo que nos fortalece a coragem e nos permite continuar a lutar,
desde já, pela concretização do novo céu e da nova terra.
***
O capítulo 10 do 4.º Evangelho contém a catequese do Bom
Pastor. O autor utiliza esta imagem para apresentar a missão de Jesus: a obra
do Messias consiste em conduzir o homem às pastagens verdejantes e às fontes
cristalinas de onde brota a vida em plenitude.
Não foi o autor do 4.º Evangelho que inventou a imagem do Bom
Pastor. Este discurso simbólico está construído com materiais do Antigo
Testamento. Tem presente Ez 34 onde se encontra a chave de compreensão da
metáfora do pastor e do rebanho. Falando aos exilados na Babilónia, Ezequiel
realça que os líderes de Israel foram falsos pastores que levaram o Povo por ínvios
caminhos de morte e de desgraça; mas, segundo Ezequiel, Deus vai assumir a
condução do seu Povo e porá à frente dele um Bom Pastor, o Messias, ali
referido como “o meu Servo David”, que o livrará da escravidão e o conduzirá à
vida. Assim, a catequese que o 4.º Evangelho nos faz do Bom Pastor sugere que a
promessa de Deus afirmada por Ezequiel se cumpre em Jesus. O texto joânico
acentua, sobretudo, a relação estabelecida entre o Pastor, Cristo, e as
ovelhas, os seus discípulos (e todos aqueles que são chamados à salvação). A missão do Pastor é dar vida às e pelas ovelhas.
Sendo assim, João descreve a ação de Jesus como uma recriação e revivificação
do homem, no sentido de fazer nascer o Homem Novo (cf Jo 3,3.5-6), o homem que, seguindo Jesus, se
torna “filho de Deus” (cf
Jo 1,12) e que é capaz
de oferecer a vida por amor lúcido e generoso. Quem aceita a oferta de Jesus não
se perderá (“nunca hão de
perecer e ninguém as arrebatará da minha mão” – Jo 10,28), pois a qualidade de vida que Jesus
lhes comunica supera a própria morte (cf Jo 3,16;8,51). Jesus está disposto a defender os seus até dar a própria
vida por eles (cf Jo
10,11), a fim de que
nada nem ninguém (os
dirigentes, os que estão interessados em perpetuar mecanismos de egoísmo, de
injustiça, de escravidão)
possa privar os discípulos dessa vida em abundância. As ovelhas (os discípulos), por sua vez, têm de fazer a sua
parte: escutar a voz do Pastor e segui-Lo (cf Jo 10,27), ou seja, comprometer-se com Ele e, como Ele, entregar-se sem reservas
numa vida de amor e de doação ao Pai e aos homens.
O texto termina com uma referência à identificação plena
entre o projeto do Pai e o projeto de Jesus: para ambos, o objetivo é fazer nascer
uma nova humanidade. Em Jesus está presente e manifesta-se o plano salvador do
Pai de dar vida ao homem e pelo homem; pela ação de Jesus, a obra criadora de Deus atinge o seu ponto culminante.
Na nossa cultura urbana, a imagem do pastor é uma parábola de
outras eras. Em contraponto, conhecemos a figura do líder: não raras vezes, é
alguém que que exige, que manipula, que arrasta, que se impõe despoticamente.
Mas o Evangelho convida-nos a descobrir a figura bíblica do Pastor, que evoca
doação, simplicidade, amor gratuito, a ponto de dar a vida para defender das
garras das feras as ovelhas que lhe foram confiadas. Para os cristãos, o Pastor
é Cristo: só Ele nos leva para as “pastagens verdadeiras”, onde encontramos
vida em plenitude.
Nas nossas comunidades cristãs, temos pessoas que presidem e
que animam. Aceitamos, sem problemas, que receberam essa missão de Cristo e da
Igreja, apesar dos seus limites e imperfeições, mas não podemos parar nelas,
mas, através delas, escutar e seguir sem condições Cristo, o único e Bom Pastor.
As ovelhas da grei de Jesus têm de “escutar a voz” do Pastor e segui-Lo, ou
seja, percorrer o mesmo caminho de Jesus, numa entrega total ao projeto de Deus
e numa doação total, de amor e de serviço aos irmãos.
A voz de Jesus, o nosso Pastor, distingue-se de outros
apelos, de cantos de sereia que não conduzem à vida em plenitude, pelo
confronto permanente com a Palavra, pela participação nos sacramentos onde se
nos comunica a vida que o Pastor nos oferece e num permanente e íntimo diálogo com
Ele. E isto nos fará ver o que se passa no mundo e analisá-lo com o olhar de
Deus, estando atentos aos seus sinais neste tempo e nestes lugares, sujeitando
o que observamos ao juízo de Deus, e, segundo este juízo, colocarmo-nos em ação
para a transformação, mas, se calhar, começando pela aproximação, atendimento,
escuta e apoio.
Pessoas que vivem da Páscoa e a testemunham não podem ficar
ensimesmadas. Têm que romper cadeias, partir pedra, ser apóstolos, estar e ir
em missão.
2019.05.12
– Louro de Carvalho
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