Com o “Manifesto
Pela Verdade dos Factos”, de 6 de maio, professores e autores de blogues
dedicados à Educação desmontam a narrativa construída em torno da recuperação
do tempo congelado aos professores no contexto da crise sistémica e consideram
o chumbo do respetivo esboço de lei como a negação da valorização da classe
docente. E tomaram esta posição como forma de luta logo após o conhecimento do
vergonhoso recuo perspetivado pelo CDS e pelo PSD, que veio a concretizar-se a
10 de maio, juntando-se ao PS na votação.
Os subscritores – que invocam a sua condição de “professores, membros da
comunidade educativa e autores de diversos espaços de discussão sobre educação”,
com “opiniões livres e diversificadas” – não retiram
uma vírgula ao texto, explicam os seus motivos e analisam os acontecimentos das
últimas semanas, depois de o Primeiro-Ministro ter ameaçado com a demissão do
Governo, entretanto afastada com a reprovação da lei.
E, não
podendo ficar indiferentes face à orquestração de “tão vil e manipuladora
campanha de intoxicação da opinião pública, atacando os professores com base em
falsidades”, por parte de membros do Governo e de inúmeros comentadores, sem a
possibilidade do devido contraditório, encarregaram-se do trabalho de desmontar
as várias falsidades, que vêm contrariando os factos e que têm sido cobertas
pela generalidade da comunicação social, o que tem levado a que a opinião
pública, em vez de informada, tenha ficado sujeita a manobras de propaganda.
Assim, o manifesto
repõe a verdade dos factos, esclarecendo:
- Não é
verdade que o Governo não tenha recuado, porquanto, o Ministério
da Educação, a 18 de novembro de 2017, por acordo com os sindicatos de
professores, comprometeu-se a recuperar todo o tempo de serviço, o que depressa olvidou. Por isso, essa intenção não
é conspiração da oposição nem resulta duma ilusão criada pelos sindicatos de
professores.
- Não é
verdade que o PS, o partido do Governo, não tenha voltado atrás, já que, a 15 de dezembro de 2017, também
propôs e foi aprovada no Parlamento a recomendação da total recuperação do
tempo de serviço, conforme se pode verificar no Diário da República (Resolução
da Assembleia da República n.º 1/2018, de 2 de janeiro).
- São falsos os valores
apresentados pelo Governo sobre o custo da recuperação do tempo de serviço
docente.
Foi prometida há perto de um ano uma comissão para calcular os custos reais e
ainda hoje não se conhece o resultado desse trabalho. Os números reais,
líquidos, estimados pelos subscritores, rondam os 50 milhões de euros anuais,
caso se optasse pela solução da Região Autónoma da Madeira, de recuperar os 9
anos, 4 meses e 2 dias, no prazo de 7 anos. O Governo já apresentou, por
diversas vezes, contas inflacionadas, com totais baseados em médias erróneas,
como a própria UTAO esclareceu há dias. Um grupo de professores verificou-as e
constatou, segmentando os dados, a sua falsidade (https://guinote.files.wordpress.com/2019/05/contas-942-num-ano-2019-e-em-7-anos.xlsx).
Ora, mentira reiteradamente proferida nunca se transforma em verdade.
- É falso que que o Governo não tenha verba no
orçamento de 2019 para recuperar parte do tempo de serviço congelado, porquanto
a recuperação dos 2 anos, 9 meses e 18 dias em 2019 foi proposta do Ministério
da Educação e está consignada no Decreto-Lei n.º 36/2019, de 15 de março,
diploma que o Presidente promulgou, mas que antes tinha vetado. Por outro lado,
um recente Decreto-Lei do governo, que ainda aguarda promulgação,
apresentou a possibilidade a todos os professores de recuperar parte desse
tempo já em 2019. Ademais, o texto aprovado pela comissão de educação e
ciência (a
2 de maio) não altera um cêntimo ao Orçamento de Estado de 2019. O orçamento de 2020 ficará a cargo
do próximo Governo, o que sair das próximas eleições legislativas.
-
É falso que a reivindicação dos professores seja a exigência da devolução do
muito dinheiro perdido pelos professores naqueles anos, meses e dias de tempo
de serviço congelado, como alguns fazem crer. Aqueles 9 anos, 4 meses e 2 dias
(ou
os 2 anos, 9 meses e 18 dias de que fala o Governo) são para considerar na carreira
docente para efeitos de progressão no futuro. Não se está a oferecer ou a pedir
dinheiro perdido no passado. O que se discute agora é se o tempo de trabalho
efetivamente prestado desaparece ou não da carreira dos professores.
-
Não se coloca o problema da equidade como o refere o Primeiro-Ministro e seus
acólitos. O Primeiro-Ministro, na declaração de eventual e coativa demissão,
falou em falta de equidade e disse que aquela votação parlamentar “injusta e
insustentável” punha em causa a credibilidade internacional. Ora, mesmo as
contas inflacionadas do Governo apontam só para um acréscimo no défice de 0,2 a
0,3 pontos percentuais. E, quanto à credibilidade internacional, não foram os
salários dos professores e restantes funcionários públicos que levaram à
intervenção por parte da Troika. Essa deve-se a outros fatores bem pesados. E,
por exemplo, aos bancos (e grupos a que se expõem), que agora se descobre que
foram a grande causa do descalabro financeiro, por via de empréstimos e investimentos
ruinosos, nunca se regateia capital para novas injeções financeiras, nem se
alega falta de credibilidade internacional ao não se apurarem
responsabilidades.
***
O “Manifesto Pela Verdade dos Factos” refere que “o passado mostra que não
se ganham eleições a vilipendiar um dos grupos profissionais mais estimados
pelos portugueses, nem repetindo falsidades para amesquinhar um grupo
profissional que tem mostrado dignidade na luta, na adversidade e na
solidariedade com o todo nacional”. E os subscritores asseguram:
“Mas
isso não anula a verdade simples: os portugueses em geral, mesmo os que não
conseguem passar a barragem da comunicação social para se expressar, respeitam
e compreendem os professores e não vão ser enganados por políticos que acham
que, com barulheira e falsidades, se faz mais uma habilidade para evitar
desgraças eleitorais. Há coisas mais importantes que contar os votos da próxima
eleição. Uma delas é o respeito pela verdade e pela dignidade de uma classe
profissional que todos os dias dá o seu melhor pela formação dos futuros
cidadãos.”.
Não tenho certezas sobre o não ganho de eleições
devido ao vilipêndio dum grupo profissional e à repetição de falsidades, como
não creio que o ataque aos professores não tenha influenciado a opinião pública
contra os professores – tanto assim que mais de 50% dos inquiridos numa recente
sondagem dava razão ao Governo no diferendo com os professores. Porém,
governantes, deputados e comentadores devem pautar-se, não pelo voto, mas pela
ética e pela lei.
***
José Eduardo Lemos, presidente do Conselho das Escolas
(CE), que não assinou o manifesto, conhece o conteúdo e aplaude
a atitude, considerando “excelente” a iniciativa de professores-bloggers que,
de forma certeira, “desmontaram uma série de falsidades ou, mais benignamente,
de imposturas intelectuais, justificadas por interesses político-partidários e
profusamente difundidas pelos órgãos de comunicação social e pelas redes
sociais”. E, a seu ver, como referiu ao “educare.pt”,
os blogues prestaram “um serviço cívico que se impunha em favor da
transparência e da verdade”, um “serviço que competia a outros, desde logo ao
Governo e à comunicação social, mas que, nesta matéria, generalizadamente,
intoxicaram a opinião pública com falsidades (mais até do que com meias-verdades), perseguindo fins políticos e não olhando a meios
para os atingir”. E, parabenizando os autores do manifesto, sublinhou:
“Este manifesto tem o condão de colocar a nu
a farsa montada em torno da recuperação do tempo de serviços dos professores,
trazendo à memória coletiva factos que ocorreram entre 2017 e a atualidade e
que, indesmentivelmente, mostram quem é que tem andando às arrecuas, quem
descaradamente tem mentido aos professores e à população, quem tem sentido de
Estado e quem não o tem”.
O que está verdadeiramente em causa, em sua opinião,
não é só a recuperação do tempo de serviço congelado, é também “a velha arte de mentir no espaço público e o
mau exemplo”. E o presidente do CE lança uma pergunta e dá uma resposta:
“Como se podem sentir os professores que
ouviram responsáveis políticos declarar que recuperariam todo o tempo de
serviço, que viram a Assembleia da República aprovar a Resolução 1/2018 e que
leram os orçamentos de Estado de 2018 e de 2019? Diabolizados e enganados,
obviamente!”.
O líder do CE olha o caso como um episódio de “fake
news”, com o efeito perverso de ter colocado os professores como vilões da
história para, como refere, “envenenar a opinião pública”. E observa com
ironia:
“Tal vem apenas confirmar a necessidade de
formação em ‘Literacia para os Media’, que está a ser promovida pelo Ministério
da Educação, e também oferecer uma interessante temática para debate nas aulas de
Cidadania e Desenvolvimento”.
Por seu turno, Paulo Guinote, autor do blogue “O Meu Quintal” e subscritor do
manifesto, considerando a ameaça de demissão “um enorme cinismo político”, entende que se devem clarificar, de
uma vez por todas, os conceitos de “equidade” e de “justiça”, usados
frequentemente nos últimos dias, só que, a seu ver, esvaziados dos seus
conteúdos. Em primeiro lugar, como sustenta, é preciso esclarecer, e de forma
transparente, os cálculos sobre a contabilização do tempo de serviço docente
que o Ministério das Finanças “tem
apresentado de forma truncada e manipulada há vários meses”. E aponta em
declarações ao “educare.pt”:
“O Governo contabilizou todo o tempo de
serviço prestado às carreiras gerais e nega-o às carreiras especiais,
atropelando estatutos de carreira que estão em vigor e, no caso da carreira
docente, um estatuto legislado pelo partido no Governo, com a presença no Conselho
de Ministros do atual Primeiro-Ministro (…) O que está em causa é a negação de
um ‘direito’, legalmente previsto, tornando permanente algo que foi apresentado
como solução transitória.”.
Diga-se, em abono da verdade, que o ECD (estatuto da
carreira docente) foi gerado
num tempo de governação em que o PSD detinha no Parlamento a maioria absoluta (consulado de
Cavaco Silva) e teve uma
alteração significativa em tempo de governação socialista (consulado de
Oliveira Guterres). A grande
e subversiva alteração no tempo de Sócrates, Costa e Milu Rodrigues devia ser
para esquecer ou anatematizar. Salva-se a alteração ao ECD feita por Sócrates e
Isabel Alçada.
Ora, o autor de “O
Meu Quintal” – que explica o “muito significativo” desaparecimento do
Presidente da República neste assunto, “algo
inédito no seu mandato”, pela complexidade do problema e os riscos da
tomada de uma posição clara” – entende que não tem sentido usar a
contabilização do tempo de serviço docente como motivo para uma potencial
demissão. Com efeito, segundo julga, “a
reação é despropositada e desproporcional só se explicando por causas externas
à situação específica vivida nos últimos dias” e, em seu entendimento, “tudo resulta da combinação entre uma aversão
visceral que algum PS, fortemente representado neste Governo com vários
ex-ministros de José Sócrates e colegas de Maria de Lurdes Rodrigues, tem em
relação aos docentes e um calculismo político relacionado com o interesse em
antecipar eleições para colher dividendos de uma conjuntura de crise política
que se pretende apresentar como causada pela oposição e pelos parceiros
parlamentares da chamada geringonça”. E, sobre contas feitas e valores apresentados,
em que a soma das partes não foi igual para todos, considera:
“Tem sido apresentado um valor de ‘despesa’
que contabiliza progressões a professores no topo da carreira, oculta-se a
receita fiscal direta que acarretaria a subida salarial dos professores e
indireta pelo aumento do consumo, assim como o facto das ‘prestações sociais’
contabilizadas na despesa do Ministério da Educação serem receitas
contabilizadas no Orçamento de Estado em outras rubricas”.
Além disso, realça:
“Não se explicitou com clareza, até à
intervenção da UTAO [Unidade Técnica de Apoio Orçamental], qual o impacto real
no défice que, mesmo contando todas as carreiras especiais, se fica por 0,2%,
enquanto Mário Centeno acenava com valores muito superiores nas suas
comparações”.
Aliás, é preciso frisar, do meu ponto de vista, que
muito do tempo perdido nunca será recuperado, visto que os que atingiram o
último escalão já nada têm a recuperar, tantos professores, entretanto, se aposentaram
(por terem alcançado
a idade legal ou por terem entrado na aposentação antecipada com as forte penalizações) e muitos aderiram ao programa de rescisão por mútuo
acordo (eufemismo). Mas o professor Paulo Guinote tece mais um considerando:
os professores, que diariamente estão nas escolas, foram ignorados neste
debate. E discorre:
“Tudo isso foi agravado, em especial nas
televisões, com um monopólio quase total da ‘análise’ entregue a opinion-makers e alegados
‘especialistas’ (financeiros ou constitucionalistas) alinhados com a ‘narrativa’
produzida pelo Governo. (…) Os professores sentiram-se ignorados em todo este
contexto e foi necessário reanimar redes de mobilização, em especial no espaço
virtual, para produzir alguma resistência independente à investida mediática
governamental. Foi assim que surgiram os cálculos alternativos aos custos da
recuperação do tempo de serviço docente, feitos pelo professor Maurício Brito e
o ‘Manifesto pela Verdade dos Factos’, já depois do grupo que promoveu há um
ano a apresentação de uma Iniciativa Legislativa que permitisse abrir um
processo legislativo sobre esta matéria.”.
Também o professor Alexandre Henriques, do blogue ComRegras, um dos autores do manifesto,
refere que esse documento pretende “a
verdade e nada mais que a verdade”. Efetivamente, quem está por dentro dos
assuntos não engole tudo o que é dito e percebe mentiras e manipulações. Nestes
termos, aduz:
“O manifesto foi um alerta para o
desconhecimento e manipulação que está a ocorrer um pouco por todos os órgãos
de comunicação social, principalmente nas televisões. Quem informa tem a
obrigação de estar mais preparado, pois este Ministério da Educação e respetivo
Governo já provaram que não são sérios para com os professores e restante
população. A prova é que a própria UTAO veio afirmar que os números de Mário
Centeno são falsos, algo que os professores têm dito e repetido há já bastante
tempo.”.
O tempo de serviço é um direito consagrado na
legislação, é um pilar social. E, como o professor sublinha, “não se pode
simplesmente apagá-lo, ainda por cima com uma arrogância imprópria de um
Governo que se intitula democrático”. Alexandre Henriques defende que é
necessário lembrar que a carreira docente precisa de ser valorizada. E deixa o
alerta:
“Estamos na iminência da tempestade
perfeita, onde uma saída massiva de professores e residual renovação irá levar
a um esvaziamento da sala de professores e consequentes salas de aula. Daqui a
10 anos, não haverá professores suficientes para os alunos que temos. Isto é
factual e está a ser ignorado.”.
E, tendo em conta que “a recuperação do tempo de
serviço, não é só uma questão de justiça, é uma questão central para valorizar
os atuais profissionais e passar a mensagem de que ser professor ainda é algo
que vale a pena investir”, interrogava-se, um dia antes da votação no plenário
parlamentar, e respondia:
“E se a lei que aprova a recuperação dos
nove anos, quatro meses e dois dias for chumbada? Será a negação dessa
valorização docente e consequente confirmação de que os partidos, ao longo de
quase dois anos, não passaram da retórica oca e demagógica, afirmando algo que
agora estão a negar.”.
***
Enfim, poderá o manifesto não influenciar o devir
político, mas as verdades não ficaram por dizer. Quem tem olhos leia e quem tem
ouvidos oiça! Lembro, a propósito, o caso dum maluco com um burro à rédea que,
ao passar um avião no ar, içou ao alto a cabeça do seu burro e disse:
“Admira, burro, a ciência humana!”
(cf https://www.comregras.com/manifesto-pela-verdade-dos-factos/; Resolução da Assembleia da República n.º 1/2018, https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/114426057/details/maximized; Sara R. Oliveira,
“A verdade e nada mais que a verdade”, “educare.pt”, 13-05-2019, https://www.educare.pt/noticias/noticia/ver/?id=150826&langid=1).
2019.05.15 –
Louro de Carvalho
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