domingo, 12 de maio de 2019

O enigmático e inusitado silêncio do Presidente da República


O Presidente analista e comentador de tudo e todos, o mais falador da democracia portuguesa, tomou uma postura excecional e inusitada, nele próprio e mesmo no quadro dos demais chefes de Estado portugueses, em tempo de crise política. Chegou a pensar-se que o silêncio seria quebrado a todo o momento. Mas não. Pode dizer-se que a crise não fazia sentido, que foi artificial e que até não passou de manobra política em reação ao devir da campanha eleitoral para as eleições europeias. Pode alegar-se que foi crise de pouca duração e tudo o mais.
O certo é que a posição do Primeiro-Ministro de reação e contra-ataque ao Parlamento se estribou numa oposição dura ao Governo por parte duma maioria ad hoc construída pelas forças políticas à direita e à esquerda do partido da família política do núcleo duro do Governo. Por outro lado, veio a verificar-se que a duração da crise foi muito curta. Mas isso soube-se a posteriori. E, tanto quanto é dado saber-se, o Chefe do Governo colocou de fora do combate o Presidente da República, ou seja, não condicionou a sua atitude de pedido de demissão à atitude que Marcelo viesse a tomar em relação ao putativo decreto parlamentar (submissão ao veredicto do Tribunal Constitucional, veto político, promulgação). 
Que a crise foi sol de pouca dura resultou da reviravolta, mais ou menos explícita, mas nunca assumida, por CDS e PSD, que chutaram para a esquerda o ónus de aprovar ou não as condicionantes que iam propor ao plenário da Assembleia da República.
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Não se trata, em meu entender, do facto de Marcelo analista ou comentador ceder o passo ao Marcelo institucionalista. Com efeito, de 8 diplomas do Governo que promulgou a 5 de maio, produziu comentários a seis:
Embora tivesse sido preferível submeter esta matéria a debate parlamentar, atendendo à sua relevância, ao teor do diploma e à audição que o precedeu…”; “Atendendo a que a última versão do diploma acentuou a caráter alternativo das soluções e exigiu a proporcionalidade na opção entre elas, bem como a audição dos proprietários…”; “Apesar de reservas que lhe suscita, em termos de ponderação e eficácia, considerando que o novo regime decorre da Lei do Orçamento do Estado para 2019 e que ainda mitiga os seus efeitos, quer alargando a intervenção dos interessados, quer reconhecendo diversas situações que obstam à sua aplicação…”; “No pressuposto que este diploma não prejudica as iniciativas que os Municípios entendam desenvolver no mesmo domínio…”; “Sabendo embora que o diploma não traduz a integralidade das posições da Liga dos Bombeiros Portugueses e da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, tendo em vista não prejudicar ou adiar a satisfação, ainda que parcial, das pretensões dos Bombeiros Voluntários…”; “Atendendo à preocupação de valorizar o estatuto do Presidente do Conselho Económico e Social…”.
E, no dia 8, promulgou dois diplomas da Assembleia da República e, sobre um deles, comentou:
Embora registando que suscita objeções da Comissão Nacional de Proteção de Dados, atendendo à ausência de reservas do Conselho Superior da Magistratura e da Procuradoria-Geral da República…”.
Já não falo do facto de ter oposto o veto político a um diploma do Parlamento no dia 5, em que, por obrigação constitucional, tinha de o devolver acompanhado de mensagem à Assembleia da República, o que não constituiu quebra do silêncio político da crise, ao invés do que o Presidente do Parlamento quis fazer crer e a que os deputados reagiram de forma diversificada.
O certo é que o Chefe de Estado, em quem se põem os olhos em tempo de crise, não teve uma palavra a dizer aos portugueses. Não sabia o que dizer? Inventava. Pelo menos, podia dizer o que todos sabemos, mas que sabe bem ouvir tempo de crise: “que isto é normal em democracia, que há várias soluções para o desfecho político, que não está em causa o regular funcionamento das instituições democráticas e que os órgãos de soberania estão no uso das suas competências – sendo que o Parlamento é central no país, mas que ao Governo, se não pode seguir as indicações do Parlamento, resta a demissão”. Além disso, poderia publicamente apelar a que os partidos ponderassem a deliberação que estavam a preparar. Dizem as vozes que lhe são simpáticas que o Presidente instara por telefone Cristas e Rio à reconsideração da postura parlamentar dos partidos que lideram. Se é verdade porque não o fez também em relação ao PCP e ao BE?         
O silêncio de Marcelo não foi de ouro, como dizem alguns. O povo, que o sufragou com o voto, merece uma palavra presidencial nestes momentos. A princípio, eu pensava que ele, de tanto falar, em tempo de crise produziria declarações em que não se confiasse; depois, quando vi que se esquivava a comentar ou comentava evasivamente determinadas matérias de que não tinha domínio, que lhe desagradavam ou sobre as quais já se tinha pronunciado (e as circunstâncias se encarregaram de lhes mudar o curso), pressenti que o silêncio poderia ser a arma do Presidente.
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O fim da crise sui generis agrada a Marcelo. Como comentador, não se queimou porque meteu férias; enquanto analista, confiou que os partidos da direita só tinham o recuo como saída, pois ainda não estariam preparados para eleições legislativas; e, enquanto Presidente, livrou-se da decisão entre veto ou promulgação de lei explosiva e de decidir entre manter Costa em chefe dum governo de gestão até outubro e dissolver o Parlamento com a marcação de eleições para julho, acabando com a fórmula de governação por que deu o rosto ao longo da legislatura.   
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O Palácio de Belém mergulhou num dos silêncios mais sepulcrais de que há memória e Marcelo absteve-se de andar entre o povo, como gosta, reduzindo a sua agenda ao mínimo. O Presidente acabou por ter a vida facilitada: com o recuo, primeiro do CDS, depois do PSD, a crise morreu ao terceiro dia. Não obstante, PCP e BE resistiram à guinada dos parceiros improváveis com quem esquissaram o diploma que ofereceu a Costa o pretexto de ameaça de demissão.
Não se sabe ao certo se Marcelo trabalhou nos bastidores para o recuo dos sociais-democratas e dos centristas. Porém, pelo menos, esperou pelo que percebeu inevitável a partir da declaração de António Pires de Lima ao Expresso, onde o ex-ministro da Economia pelo CDS mostrava a sua desilusão por a líder do partido ter trocado “os contribuintes pelo Mário Nogueira”. Para o Presidente, apesar de o eventual desgaste eleitoral que esta pseudocrise provocará no PSD e no CDS não contribuir para o que ele tem desejado – uma alternativa clara e forte ao Governo de Costa –, é o menor dos males, pois a demissão do Governo seria mais difícil para Marcelo. Por um lado, teria que decidir o que fazer à lei que deu o pretexto a Costa para a demissão e, assim, livra-se de ter que optar entre veto e promulgação; por outro lado, tendo assumido desde o início do seu mandato a defesa do cumprimento da legislatura, prefere não ter que gerir uma crise. Se Costa tivesse feito depender a demissão da entrada em vigor da lei dos professores, o facto a consumar-se daria ao Presidente da República o poder de, vetando a lei, retirar o argumento a Costa ou, promulgando-a, assumir-se como oposição ao Governo. Mas Costa não lhe deu tal vantagem: escolheu depender só do Parlamento, deixando ao Presidente quase só a prerrogativa de dissolver ou não a Assembleia da República.
Pelos vistos, o taticismo o Primeiro-Ministro que surpreendeu o Presidente caiu mal em Belém. E independentemente da tentação que Marcelo pudesse ter de forçar Costa a ficar a governar em gestão até outubro, o mais natural seria o PR dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas. Marcelo estudara o calendário com alguns conselheiros mais próximos e terá apontado como possível convocar as legislativas para 21 de julho. Embora muitos portugueses estejam de férias, não seria a primeira vez. E o PSD teve sorte com eleições em tempo de férias (Cavaco Silva obteve a 1.ª maioria absoluta nas legislativas de 19 de julho de 1987).
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No passado dia 10, o Parlamento votou o diploma que pretende garantir aos professores a contagem integral do tempo de serviço. Marcelo Rebelo de Sousa não falou sobre o assunto.
As posições dos partidos fizeram com que o documento não passasse pelo crivo do Plenário parlamentar: CDS e PSD apresentar uma proposta de garantia de que a medida só avançaria se fosse assegurada uma salvaguarda financeira. Como PCP e BE, contra o público apelo de Mário Nogueira, votaram contra a proposta, alinhando com o PS, o diploma caiu.
Com o desenrolar deste episódio que, mesmo que artificialmente, abalou a política portuguesa, muitos estranharam a ausência de uma voz que tem habituado os portugueses a fazer-se ouvir: a do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. E nem depois da votação no Parlamento o Chefe de Estado quebrou o silêncio: nunca, neste mandato presidencial, Marcelo esteve tanto tempo fora dos holofotes. Para o comentador de política da TSF, Paulo Baldaia, houve uma conversa (pura ficção) entre o analista Marcelo e o Presidente Marcelo: Disse Baldaia:
Como a situação era muito delicada, julgo que o analista Marcelo Rebelo de Sousa disse ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa que era melhor esperar para ver no que é que isto ia dar. Esta visão não é minha, é de fontes de Belém, que a colocaram cá fora para explicar o silêncio. .
Desde o dia 1 de maio que a agenda do Presidente estava praticamente em branco, a não ser para vetos, promulgações condolências, felicitações, receções inadiáveis e a assinatura do “Apelo Comum pela Europa pelos 21 Presidentes da República da União Europeia, antes das eleições de maio de 2019. Pelo meio, Assunção Cristas pediu uma audiência mas, pelos vistos, está por agendar e não se sabe se ainda fará sentido. Baldaia nota que Marcelo se resguardou para depois da votação final global – justificação que parecia válida. Disse o comentador à TSF:
Guardou-se para esta altura. Ora, se se guardou para esta altura, em que se votasse no Parlamento, em que deixasse de ser um problema para resolver noutro órgão de soberania, Marcelo entendeu que devia ficar à espera para passar a ser com ele. Se fez assim para falar com os portugueses sobre a matéria, faz sentido que explique também ao CDS e a Assunção Cristas que falará depois do assunto estar resolvido na Assembleia da República. Tem esta justificação válida de que, estando um problema desta magnitude a ser resolvido no Parlamento – um outro órgão de soberania – entendeu que só deveria entrar no jogo quando passasse a ser com ele..
Ainda assim, a estratégia acarretou riscos. Baldaia lembra, por isso, um outro episódio da política nacional em que outro Presidente entrou logo em cena: o da “crise irrevogável de Paulo Portas”. Na altura, Cavaco Silva era o Presidente e, segundo Baldaia, “de imediato, entrou no jogo para evitar que houvesse uma demissão do Governo como consequência da demissão de um dos parceiros da coligação”. Fazendo a ponte para esta crise com os professores, Marcelo “entendeu que o mais lógico era que esta crise ficasse esvaziada porque alguém iria recuar. Se a crise tivesse ido noutro sentido, Marcelo arriscava-se a ser muito criticado por não ter feito tudo” para a evitar – sustenta Paulo Baldaia.
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O silêncio do Chefe de Estado sobre a recuperação do tempo de serviço dos professores tem indignado os sindicatos e deputados parlamentares, que esperavam que, após a votação do texto final da Comissão de Educação e Ciência, o silêncio fosse quebrado.
Desde o início do mês de maio que a agenda presencial esteve praticamente e em branco. O dia 2 marca a aprovação, na especialidade, da garantia de recuperação do tempo de serviço dos professores e o início de uma breve crise política, que levou ao anúncio de demissão do Governo por falta de “sustentabilidade financeira”. O PSD e CDS-PP juntaram-se ao PCP, PEV e BE, na chamada ‘coligação negativa’, para aprovar a iniciativa legislativa. O segundo dia de maio coincidiu com a viagem de regresso do presidente à China. Marcelo estava numa visita oficial de seis dias, a convite do homólogo chinês, Xi Jinping, onde participou na segunda edição do fórum “Faixa e Rota” e visitou Xangai e Macau.
Aterrou em Portugal a 3 de maio, e a primeira coisa que fez foi ligar a Iker Casillas, guarda-redes do FC Porto, que tinha sofrido um enfarte de miocárdio. De tarde, recebeu António Costa, após uma reunião de emergência do núcleo duro do Governo. Sobre essa reunião, nem uma palavra. Numa declaração ao país, depois de falar com o Presidente, Costa anunciava a intenção do Governo de se demitir, caso a recuperação do tempo de serviço dos professores avançasse. Depois disso, nem uma palavra do Presidente.
Durante o fim de semana, o Presidente da República terá telefonado aos líderes partidários para discutir a recuperação do tempo congelado. No dia 5, a líder centrista, Assunção Cristas, e o presidente do PSD, Rui Rio, anunciavam um recuo na posição tomada no dia 2, na Comissão de Educação e Ciência, considerando que só votariam a favor da medida, em plenário, se a sustentabilidade orçamental estivesse garantia. E nem uma palavra de Marcelo aos portugueses.
Pelo meio, o Presidente promulgou diplomas da Assembleia da República (vetou um) e do Governo, incluindo a alteração ao regime da carreira especial de enfermagem e da carreira de enfermagem nas entidades públicas empresariais e nas parcerias em saúde, e a definição dos critérios de seleção e aquisição de produtos alimentares, promovendo o consumo sustentável de produção local nas cantinas e refeitórios públicos.
O Chefe de Estado devolveu ao Parlamento o diploma que permite a manutenção de uma farmácia de dispensa de medicamentos ao público num hospital do SNS (Serviço Nacional de Saúde), pedindo “mais clarificação do seu caráter excecional e singular”.
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Há, porém, uma razão adicional que pode explicar, sem o justificar, o silêncio presidencial. Marcelo teve comentários dúplices e ambíguos sobre a matéria: vetou o diploma do Governo porque, na vigência da Lei do Orçamento para 2019, não houvera negociações entre o Governo e os sindicatos; após uma farsa negocial, promulgou o decreto (sem alterações) para não impedir a recuperação de algum do tempo de serviço e lembrou que os deputados poderiam encontrar em sede de apreciação parlamentar uma solução que, respeitando a lei-travão, oferecesse em tempo faseado a recuperação integral do tempo de serviço.
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Enfim, reconheço que fosse difícil ao Presidente tomar a palavra nesta matéria, mas ele, quando assumiu a candidatura presidencial, sabia para onde ia. E, por isso, tinha de saber resguardar-se sem cair em ambiguidades e arriscar sempre que necessário. Nestes termos, se não se pode de todo censurar o silêncio do Chefe de Estado, também não se pode elogiar aduzindo que este não era o tempo do presidente, mas o do Parlamento, sobretudo um silêncio da parte de quem tantas vezes fala e condiciona até que se sinta desconfortável. O povo mercê mais e melhor!
2019.05.12 – Louro de Carvalho      

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