O Presidente analista e comentador de tudo e todos, o mais falador da
democracia portuguesa, tomou uma postura excecional e inusitada, nele próprio e
mesmo no quadro dos demais chefes de Estado portugueses, em tempo de crise
política. Chegou a pensar-se que o silêncio seria quebrado a todo o momento.
Mas não. Pode dizer-se que a crise não fazia sentido, que foi artificial e que
até não passou de manobra política em reação ao devir da campanha eleitoral
para as eleições europeias. Pode alegar-se que foi crise de pouca duração e
tudo o mais.
O certo é que a posição do Primeiro-Ministro de reação e contra-ataque ao
Parlamento se estribou numa oposição dura ao Governo por parte duma maioria ad hoc construída pelas forças políticas à direita e à esquerda do
partido da família política do núcleo duro do Governo. Por outro lado, veio a
verificar-se que a duração da crise foi muito curta. Mas isso soube-se a posteriori. E, tanto quanto é dado
saber-se, o Chefe do Governo colocou de fora do combate o Presidente da
República, ou seja, não condicionou a sua atitude de pedido de demissão à
atitude que Marcelo viesse a tomar em relação ao putativo decreto parlamentar (submissão ao veredicto do Tribunal
Constitucional, veto político, promulgação).
Que a crise foi sol
de pouca dura resultou da reviravolta, mais ou menos explícita, mas nunca
assumida, por CDS e PSD, que chutaram para a esquerda o ónus de aprovar ou não
as condicionantes que iam propor ao plenário da Assembleia da República.
***
Não se trata, em meu
entender, do facto de Marcelo analista ou comentador ceder o passo ao Marcelo
institucionalista. Com efeito, de 8 diplomas do Governo que promulgou a 5 de
maio, produziu comentários a seis:
“Embora
tivesse sido preferível submeter esta matéria a debate parlamentar, atendendo à
sua relevância, ao teor do diploma e à audição que o precedeu…”; “Atendendo a
que a última versão do diploma acentuou a caráter alternativo das soluções e
exigiu a proporcionalidade na opção entre elas, bem como a audição dos
proprietários…”; “Apesar de reservas que lhe suscita, em termos de ponderação e
eficácia, considerando que o novo regime decorre da Lei do Orçamento do Estado
para 2019 e que ainda mitiga os seus efeitos, quer alargando a intervenção dos
interessados, quer reconhecendo diversas situações que obstam à sua aplicação…”;
“No pressuposto que este diploma não prejudica as iniciativas que os Municípios
entendam desenvolver no mesmo domínio…”; “Sabendo embora que o diploma não
traduz a integralidade das posições da Liga dos Bombeiros Portugueses e da
Associação Nacional dos Municípios Portugueses, tendo em vista não prejudicar
ou adiar a satisfação, ainda que parcial, das pretensões dos Bombeiros
Voluntários…”; “Atendendo à preocupação de valorizar o estatuto do Presidente
do Conselho Económico e Social…”.
E, no dia 8, promulgou dois diplomas da Assembleia da República e, sobre um
deles, comentou:
“Embora registando que suscita objeções da
Comissão Nacional de Proteção de Dados, atendendo à ausência de reservas do
Conselho Superior da Magistratura e da Procuradoria-Geral da República…”.
Já não falo do facto
de ter oposto o veto político a um diploma do Parlamento no dia 5, em que, por
obrigação constitucional, tinha de o devolver acompanhado de mensagem à
Assembleia da República, o que não constituiu quebra do silêncio político da
crise, ao invés do que o Presidente do Parlamento quis fazer crer e a que os
deputados reagiram de forma diversificada.
O certo é que o Chefe
de Estado, em quem se põem os olhos em tempo de crise, não teve uma palavra a
dizer aos portugueses. Não sabia o que dizer? Inventava. Pelo menos, podia
dizer o que todos sabemos, mas que sabe bem ouvir tempo de crise: “que isto é
normal em democracia, que há várias soluções para o desfecho político, que não
está em causa o regular funcionamento das instituições democráticas e que os
órgãos de soberania estão no uso das suas competências – sendo que o Parlamento
é central no país, mas que ao Governo, se não pode seguir as indicações do
Parlamento, resta a demissão”. Além disso, poderia publicamente apelar a que os
partidos ponderassem a deliberação que estavam a preparar. Dizem as vozes que
lhe são simpáticas que o Presidente instara por telefone Cristas e Rio à
reconsideração da postura parlamentar dos partidos que lideram. Se é verdade
porque não o fez também em relação ao PCP e ao BE?
O silêncio de Marcelo
não foi de ouro, como dizem alguns. O povo, que o sufragou com o voto, merece
uma palavra presidencial nestes momentos. A princípio, eu pensava que ele, de
tanto falar, em tempo de crise produziria declarações em que não se confiasse;
depois, quando vi que se esquivava a comentar ou comentava evasivamente
determinadas matérias de que não tinha domínio, que lhe desagradavam ou sobre
as quais já se tinha pronunciado (e as circunstâncias se encarregaram de lhes mudar o curso),
pressenti que o silêncio poderia ser a arma do Presidente.
***
O fim da crise sui generis agrada
a Marcelo. Como comentador, não se queimou porque meteu férias; enquanto
analista, confiou que os partidos da direita só tinham o recuo como saída, pois
ainda não estariam preparados para eleições legislativas; e, enquanto
Presidente, livrou-se da decisão entre veto ou promulgação de lei explosiva e
de decidir entre manter Costa em chefe dum governo de gestão até outubro e
dissolver o Parlamento com a marcação de eleições para julho, acabando com a
fórmula de governação por que deu o rosto ao longo da legislatura.
***
O Palácio de Belém mergulhou num dos silêncios mais sepulcrais de que há
memória e Marcelo absteve-se de andar entre o povo, como gosta, reduzindo a sua
agenda ao mínimo. O Presidente acabou por ter a vida facilitada: com o recuo,
primeiro do CDS, depois do PSD, a crise morreu ao terceiro dia. Não obstante,
PCP e BE resistiram à guinada dos parceiros improváveis com quem esquissaram o
diploma que ofereceu a Costa o pretexto de ameaça de demissão.
Não se sabe ao certo se Marcelo trabalhou nos bastidores para o recuo dos
sociais-democratas e dos centristas. Porém, pelo menos, esperou pelo que percebeu
inevitável a partir da declaração de António Pires de Lima ao Expresso, onde o ex-ministro da Economia
pelo CDS mostrava a sua desilusão por a líder do partido ter trocado “os contribuintes
pelo Mário Nogueira”. Para o Presidente, apesar de o eventual desgaste
eleitoral que esta pseudocrise provocará no PSD e no CDS não contribuir para o
que ele tem desejado – uma alternativa clara e forte ao Governo de Costa –, é o
menor dos males, pois a demissão do Governo seria mais difícil para Marcelo. Por
um lado, teria que decidir o que fazer à lei que deu o pretexto a Costa para a
demissão e, assim, livra-se de ter que optar entre veto e promulgação; por
outro lado, tendo assumido desde o início do seu mandato a defesa do
cumprimento da legislatura, prefere não ter que gerir uma crise. Se Costa
tivesse feito depender a demissão da entrada em vigor da lei dos professores, o
facto a consumar-se daria ao Presidente da República o poder de, vetando a lei,
retirar o argumento a Costa ou, promulgando-a, assumir-se como oposição ao
Governo. Mas Costa não lhe deu tal vantagem: escolheu depender só do
Parlamento, deixando ao Presidente quase só a prerrogativa de dissolver ou não
a Assembleia da República.
Pelos vistos, o taticismo o Primeiro-Ministro que surpreendeu o Presidente caiu
mal em Belém. E independentemente da tentação que Marcelo pudesse ter de forçar
Costa a ficar a governar em gestão até outubro, o mais natural seria o PR
dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas. Marcelo estudara o
calendário com alguns conselheiros mais próximos e terá apontado como possível
convocar as legislativas para 21 de julho. Embora muitos portugueses estejam de
férias, não seria a primeira vez. E o PSD teve sorte com eleições em tempo de
férias (Cavaco Silva
obteve a 1.ª maioria absoluta nas legislativas de 19 de julho de 1987).
***
No passado dia 10, o Parlamento votou o diploma que pretende garantir aos
professores a contagem integral do tempo de serviço. Marcelo Rebelo de Sousa não
falou sobre o assunto.
As posições dos partidos fizeram com que o documento não passasse pelo
crivo do Plenário parlamentar: CDS e PSD apresentar uma proposta de garantia de
que a medida só avançaria se fosse assegurada uma salvaguarda financeira. Como
PCP e BE, contra o público apelo de Mário Nogueira, votaram contra a proposta,
alinhando com o PS, o diploma caiu.
Com o desenrolar deste episódio que, mesmo que artificialmente, abalou a
política portuguesa, muitos estranharam a ausência de uma voz que tem habituado
os portugueses a fazer-se ouvir: a do Presidente da República, Marcelo Rebelo
de Sousa. E nem depois da votação no Parlamento o Chefe de Estado quebrou o
silêncio: nunca, neste mandato presidencial, Marcelo esteve tanto tempo fora
dos holofotes. Para o comentador de política da TSF, Paulo Baldaia, houve uma conversa (pura ficção) entre o analista Marcelo e o Presidente Marcelo:
Disse Baldaia:
“Como a situação era muito delicada, julgo que o analista Marcelo
Rebelo de Sousa disse ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa que era melhor esperar
para ver no que é que isto ia dar. Esta visão não é minha, é de fontes de
Belém, que a colocaram cá fora para explicar o silêncio.” .
Desde o dia
1 de maio que a agenda do Presidente estava praticamente em branco, a não ser
para vetos, promulgações condolências, felicitações, receções inadiáveis e a
assinatura do “Apelo Comum pela Europa pelos 21 Presidentes da República da União
Europeia, antes das eleições de maio de 2019”. Pelo meio, Assunção Cristas pediu uma audiência mas, pelos
vistos, está por agendar e não se sabe se ainda fará sentido. Baldaia nota que
Marcelo se resguardou para depois da votação final global – justificação que
parecia válida. Disse o comentador à TSF:
“Guardou-se para esta altura. Ora, se se guardou para esta altura, em
que se votasse no Parlamento, em que deixasse de ser um problema para resolver
noutro órgão de soberania, Marcelo entendeu que devia ficar à espera para
passar a ser com ele. Se fez assim para falar com os portugueses sobre a
matéria, faz sentido que explique também ao CDS e a Assunção Cristas que falará
depois do assunto estar resolvido na Assembleia da República. Tem esta
justificação válida de que, estando um problema desta magnitude a ser resolvido
no Parlamento – um outro órgão de soberania – entendeu que só deveria entrar no
jogo quando passasse a ser com ele.”.
Ainda assim, a estratégia acarretou riscos. Baldaia lembra, por isso, um
outro episódio da política nacional em que outro Presidente entrou logo em
cena: o da “crise
irrevogável de Paulo Portas”. Na altura, Cavaco Silva era o Presidente e,
segundo Baldaia, “de imediato,
entrou no jogo para evitar que houvesse uma demissão do Governo como
consequência da demissão de um dos parceiros da coligação”. Fazendo a
ponte para esta crise com os professores, Marcelo “entendeu que o mais lógico era que esta crise ficasse esvaziada porque
alguém iria recuar. Se a crise tivesse ido noutro sentido, Marcelo arriscava-se
a ser muito criticado por não ter feito tudo” para a evitar –
sustenta Paulo Baldaia.
***
O silêncio
do Chefe de Estado sobre a recuperação do tempo de serviço dos professores tem
indignado os sindicatos e deputados parlamentares, que esperavam que, após a
votação do texto final da Comissão de Educação e Ciência, o silêncio fosse
quebrado.
Desde o
início do mês de maio que a agenda presencial esteve praticamente e em branco.
O dia 2 marca a aprovação, na especialidade, da garantia de recuperação do
tempo de serviço dos professores e o início de uma breve crise política, que
levou ao anúncio de demissão do Governo por falta de “sustentabilidade
financeira”. O PSD e CDS-PP juntaram-se ao PCP, PEV e BE, na chamada ‘coligação
negativa’, para aprovar a iniciativa legislativa. O segundo
dia de maio coincidiu com a viagem de regresso do presidente à China. Marcelo
estava numa visita oficial de seis dias, a convite do homólogo chinês, Xi
Jinping, onde participou na segunda edição do fórum “Faixa e Rota” e visitou
Xangai e Macau.
Aterrou em
Portugal a 3 de maio, e a primeira coisa que fez foi ligar a Iker Casillas,
guarda-redes do FC Porto, que tinha sofrido um enfarte de miocárdio. De tarde, recebeu António Costa, após uma reunião de
emergência do núcleo duro do Governo. Sobre essa reunião, nem uma palavra. Numa
declaração ao país, depois de falar com o Presidente, Costa anunciava a
intenção do Governo de se demitir, caso a recuperação do tempo de serviço dos
professores avançasse. Depois disso, nem uma palavra do Presidente.
Durante o
fim de semana, o Presidente da República terá telefonado aos líderes
partidários para discutir a recuperação do tempo congelado. No dia 5, a líder
centrista, Assunção Cristas, e o presidente do PSD, Rui Rio, anunciavam um
recuo na posição tomada no dia 2, na Comissão de Educação e Ciência, considerando
que só votariam a favor da medida, em plenário, se a sustentabilidade
orçamental estivesse garantia. E nem uma palavra de Marcelo aos portugueses.
Pelo meio, o
Presidente promulgou diplomas da Assembleia da República (vetou um) e do Governo, incluindo a alteração ao regime da
carreira especial de enfermagem e da carreira de enfermagem nas entidades
públicas empresariais e nas parcerias em saúde, e a definição dos critérios de
seleção e aquisição de produtos alimentares, promovendo o consumo sustentável
de produção local nas cantinas e refeitórios públicos.
O Chefe de
Estado devolveu ao Parlamento o diploma que permite a manutenção de uma
farmácia de dispensa de medicamentos ao público num hospital do SNS (Serviço
Nacional de Saúde), pedindo
“mais clarificação do seu caráter excecional e singular”.
***
Há,
porém, uma razão adicional que pode explicar, sem o justificar, o silêncio
presidencial. Marcelo teve comentários dúplices e ambíguos sobre a matéria:
vetou o diploma do Governo porque, na vigência da Lei do Orçamento para 2019,
não houvera negociações entre o Governo e os sindicatos; após uma farsa
negocial, promulgou o decreto (sem alterações) para não impedir a recuperação
de algum do tempo de serviço e lembrou que os deputados poderiam encontrar em
sede de apreciação parlamentar uma solução que, respeitando a lei-travão,
oferecesse em tempo faseado a recuperação integral do tempo de serviço.
***
Enfim,
reconheço que fosse difícil ao Presidente tomar a palavra nesta matéria, mas
ele, quando assumiu a candidatura presidencial, sabia para onde ia. E, por isso,
tinha de saber resguardar-se sem cair em ambiguidades e arriscar sempre que necessário.
Nestes termos, se não se pode de todo censurar o silêncio do Chefe de Estado,
também não se pode elogiar aduzindo que este não era o tempo do presidente, mas
o do Parlamento, sobretudo um silêncio da parte de quem tantas vezes fala e
condiciona até que se sinta desconfortável. O povo mercê mais e melhor!
2019.05.12 – Louro
de Carvalho
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