domingo, 26 de maio de 2019

Votar – atitude cívico-política chave da democracia representativa


Em dia de eleições para o Parlamento Europeu (PE), pairava no ar o fantasma real da abstenção. E vêm alguns desculpar-se com a campanha trivial, medíocre e acintosa, oca de conteúdos de interesse europeu; outros entendem que estas eleições são de pouco interesse porque o PE está lá muito longe, passa-nos ao lado e o poder maior está no Conselho; e o Presidente da República, que subscreveu, nos princípios deste mês, um apelo comum dos chefes de Estado e de Governo da União Europeia à participação nestas eleições, veio apelar, de forma lancinante, no dia da reflexão, à participação no ato eleitoral.
Na verdade, como refere Leonete Botelho no Público de hoje, dia 26 de maio, a abstenção nas eleições europeias “é sempre muito elevada e este ano há uma agravante: a entrada em vigor do recenseamento automático dos emigrantes fez crescer de 300 mil para 1,4 milhões os cidadãos no estrangeiro que entraram no sistema”. E o Presidente Marcelo verifica:
Eu sei que o mais de um milhão de compatriotas que vive por esse mundo fora pode estar ainda longe destas suas primeiras eleições”.
E, assinalando o tom em que correu a campanha, disse:
Também sei que, nas campanhas eleitorais europeias, se fala de muito mais do que de Europa, sobretudo num ano, como este, em que daqui por quatro meses, há novas eleições, as eleições para a Assembleia da República. É, por isso, tentador ficar em casa e deixar a outros o encargo de irem votar, guardando para Outubro o voto considerado essencial. (…) Mas é um erro. É um erro enorme.”.
 Tem razão o Chefe de Estado em fazer este apelo ao “pequeno sacrifício do voto” e nos termos em que o fez. De facto, é melhor esquecer o que desgostou o eleitorado na campanha eleitoral e ir votar. Grosso modo os portugueses sabem aquele poucochinho que, no fundo, querem os diversos partidos, mesmo os mais pequenos, pelo que têm elementos suficientes para decidir o voto. Sabem também que todos prometem e têm muita dificuldade em cumprir: é a vida. E não é com um virar de costas que resolvem o problema. Pelo contrário, o perigo espreita e, como advertiu o Presidente, “assim começou, em tantos casos, a fraqueza das democracias; assim começou, vezes de mais, o caminho para a sedução dos poderes absolutos”.
Antes, se querem resolver o problema do divórcio entre partidos e eleitores, governança e cidadãos, os eleitores, primeiro, devem votar e, depois, usar a voz e a caneta para a crítica oportuna e importuna, utilizar o exercício dos direitos de reclamação, reunião, associação e manifestação. Não se pode, como diz Marcelo, deixar nas mãos de poucos (era melhor que não tivesse referido valores percentuais para não “legitimar” as previsões de grande abstencionismo em 20% ou 25%) o destino do país e o destino da Europa, mas também não se podem proibir os abstencionistas de virem queixar-se ou criticar no futuro se estiverem descontentes. Isto, porque não votar é também um direito, tal como o silêncio, porque o abstencionista de hoje pode ser o votante de amanhã, porque o direito de crítica não pode ser cerceado só porque “sim” ou por retaliação e porque todos têm culpas no cartório: Partidos, Governo, Deputados, Comunicação Social, Escolas, Massa Associativa, Agentes Culturais, etc. – por descurarem a formação, o esclarecimento, a divulgação.
Por outro lado, as aspirações do votante só podem ser integralmente satisfeitas se a formação política em que votou ganhar a maioria dos mandatos ou se, pelo menos, obtiver uma representação significativa no universo do órgão. É por isso que se fala, por vezes do voto útil, diferente do voto fútil, apregoado nesta campanha por alguns a alguns! Não é lícito subestimar os adversários e os eleitores. E o labéu era para ambos.                    
E para o direito à abstenção se revestir de eficácia como tomada de posição política, era necessário que o abstencionista comparecesse na mesa de voto e declarasse a abstenção à boca das urnas e esta fosse registada, como acontece nas votações dos órgãos colegiais. Aliás, nas eleições autárquicas é conferido ao eleitor a faculdade de se abster à boca das urnas na votação para um ou mais órgãos em causa.
Dizer que pouco se falou da Europa na campanha é demasiado curto. É muito difícil distinguir o que distingue a lógica nacional da lógica europeia, pois as posições dos partidos relativamente às questões nacionais repercutem-se necessariamente na postura que assumirão na Europa e vice-versa, porque na Europa se tomam muitas decisões que implicam o país, dada a transferência de soberania, e porque, para a Europa ter uma voz forte no mundo, é necessária a a lucidez e a força corroborada de cada um dos Estados-membros.
Se intentarmos supinamente na omissão do voto, teremos sempre razões, mas o bem comum postula que nos decidamos a sair do buraquinho de conforto ou a perder uns minutos de praia, clube ou meditação.
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Manuel Carvalho, no Público, opina que a existência da larga maioria de cidadãos que não sabe o nome de nenhum dos candidatos é parte da “atitude demissionária” do eleitorado e, embora haja culpa na campanha e suas circunstâncias, “este distanciamento representa uma forma muito lamentável de ser português”, a do “crítico sistemático de tudo e todos”, a dos “que se gabam de fugir aos impostos, a dos arquitetos e engenheiros de obras feitas ou dos advogados das causas perdidas. Por isso, com justiça, critica “o abstencionismo crónico e deliberado” e preconiza que “não votar sem causa justa é fugir a uma responsabilidade social” e sentencia – e bem – que, se muitos não trocam a praia ou a patuscada pelo direito/dever de votar, “é porque preferem essa forma de ser videirinha que tende a considerar os assuntos nacionais como um problema que não é deles”, pelo que “não merecem a nossa condescendência”. Porém, avisa:
Não basta apontar o dedo. Limpar os cadernos eleitorais, por exemplo, é tarefa que devia ter sido feita e atualizada há muito. Instalar o sistema de voto electrónico tornaria simples o ato de votar. Os políticos e quem governa podem fazer muito mais para travar este flagelo.”.
Mas reconhece que “todos fizeram questão de chamar a atenção para o que está em causa”.
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Outro problema é o dos eleitores jovens cujo desinteresse é preocupante.
Cerca de 114 mil jovens (dados do INE) capacitaram-se, este ano, para votar por terem atingido a maioridade. Porém, não se sabe se cumprem esse dever e exercem esse direito ou não.
Natália Faria, do Público, vê-os “matraqueados com a ideia de que não terão emprego nem reforma”, “preocupados ‘com a ideia de sobrevivência’ e desenganados em relação aos partidos”. Se alguns garantem que não abdicam de votar nestas eleições, tendo até já escolhido o partido, ainda que não saibam de cor o nome do cabeça de lista, outros há que não se tinham decidido, por não estarem muito a par do assunto, e outros que decidiram não votar, e pronto.
Margarida Gaspar de Matos, coordenadora em Portugal do estudo da Organização Mundial de Saúde sobre a adolescência, diz que “não é estupidez nem desinteresse”, mas “é porque estão desenganados em relação aos partidos e não estão para perder tempo com uma estrutura que não lhes dá nada”. Ora, a meu, isso é fugir à questão e desculpar a irresponsabilidade.  
É verdade que, nas europeias de 2014, apenas votaram 19% dos jovens portugueses com idades entre os 18 e os 24 anos, o que resulta em 81% de abstencionistas nesta faixa etária. Porém, os eleitores mais adultos não têm autoridade para recriminação, pois, em termos gerais, a abstenção ultrapassou os 66%. E, segundo as previsões, desta feita, só 3% dos jovens portugueses entre os 15 e os 24 anos declararam ser provável irem votar – alegadamente por o voto não alterar nada (33%) e pela desconfiança no sistema político (30%).
Uma estudante que se preparava para integrar a franja dos que foram às urnas, tendo acompanhando alguns debates televisivos (caso excecional em relação aos da sua idade) e apontando como positiva “a transversalidade das preocupações com o clima”, lamentava:
Gostava de ter ouvido falar da igualdade de género, étnica, e também em termos de orientação sexual, porque estas eleições podiam ser uma oportunidade de a Europa marcar uma posição, sobretudo agora que os Estados Unidos estão a retroceder no tempo”.
Esta centena de milhar de jovens que pode votar agora pela primeira vez insere-se na geração Z, a que não sabe viver sem o smartphone no bolso e, segundo os sociólogos que lhes estudaram os estilos de vida, trata-se de jovens realistas, pragmáticos, focados em si próprios, que “não leem jornais, não integram associações”, são pouco contestatários, vão aos mesmos concertos que os pais e imitam-nos nos valores. Ora, apesar de não caber ao sociólogo a avaliação do mérito, devo dizer que esta situação atitudinal e comportamental é deveras preocupante. De que valores se fala? Namoro do telemóvel? Diversão em concertos? Resignação? Ninguém nos veio dar de bandeja emprego, casamento, bem-estar. E a generalização da mesada não é antiga… e quem é que teve garantido emprego e reforma? Alguns escolhem o partido em que votam por influência dos pais, predominantemente regida por valores atreitos ao tradicionalismo. Que valores!
A psicóloga Margarida Gaspar de Matos, já referida, assinala diferenças relativamente à geração anterior, a dos millenials, explicitando que “apanharam com a crise aquando da entrada na adolescência: “em vez de amores, sonhos, viagens, ouviram falar de gente deprimida, crise, desemprego”. E, percebendo que os pais “não eram tão invulneráveis” como pensavam, adquiriram “um pragmatismo que não é suposto terem”. Por conseguinte:   
São hoje miúdos sem grandes ideias ou sonhos, sem uma visão hedónica da vida. São inteligentes, aplicados. Vejo-os muito aflitos com as notas – competitivos até –, não porque queiram ser melhores do que os outros, mas porque sabem que só haverá lugar para alguns.”.
É caso para questionar onde está a solidariedade que a família e a escola deveriam ensinar?
Acho esquisito como psicólogos e sociólogos se resignam à resignação dos jovens. O sociólogo Elísio Estanque diz que para estes jovens “o mundo laboral tornou-se imprevisível, instável e precário por definição”. E Margarida Gaspar aponta que “eles estão todos convencidos de que não terão reforma”.
Estanque, assacando culpas aos dirigentes, atira:
As instituições tradicionais da democracia representativa deixaram que se instalasse a ideia de que a democracia era um estado natural de vida, que estava madura e consolidada. (…) Cabe às estruturas partidárias, principais responsáveis pelos velhos clichés ‘do dirigismo partidário e dos jogos de poder’ a tarefa de reverter a imagem negativa e suja que a política ganhou.”.
Entretanto, uma jovem, cujos pais a habituaram a discutir política, repara:
Os jovens perderam noção do valor que tem o facto de termos liberdade para votar. Se vivemos em democracia, alguém fez com que isso acontecesse. Mas nas escolas não se aposta muito neste tipo de mensagem.”.
Porém, um jovem de 20 anos e que desperdiçou a oportunidade de votar nas autárquicas de 2017, assume que também em dia de eleições não se desligará do YouTube para ir às urnas, porque não está “dentro desse mundo”, só ouve falar “nas dívidas e no dinheiro”, não vê televisão nem lê jornais, está “mais, tipo, no computador”, “não conhece os partidos e muito menos sabe enquadrá-los à esquerda ou à direita”.
Isto é, além de iliteracia política e cívica, misantropia. E os psicólogos descuram esta doença?
Estanque aduz que “os velhos critérios ideológicos têm pouco significado para esta geração”, pois os jovens identificam-se “com os valores do ambiente e do combate a uma indústria excessivamente corrosiva, as desigualdades, a ausência de oportunidades”.
Ora bolas! Mas isso só se consegue através de intervenção política ativa e solidária, que postula o voto, a crítica e a associação, mas não o braço dado com o computador ou o telemóvel. 
Margarida Gaspar pensa que, “se sentirem que podem ter voz, estes jovens são motiváveis” (Então porque não os motivam?), pois o alheamento juvenil não é em relação ao mundo mas “aos partidos que veem como uma coisa para gente crescida e desinteressante”. Embora os partidos tenham culpa por se autoenredarem no aparelho e formarem de forma enviesada as juventudes partidárias, isso não iliba os professores (Que é feito da formação cívica e da educação para a cidadania?) e psicólogos da responsabilidade da séria educação para o mundo da política, em detrimento de tantas fantochadas que povoam a escola e a sociedade.  
Margarida Gaspar identifica como problema o facto de não termos descoberto nenhum novo figurino para a democracia e discorre:
Nós gastámos a galinha dos ovos de ouro sem conseguir fazer passar a relevância da organização partidária aos jovens. Portanto, o perigo advém de não termos uma alternativa trabalhada para lhes propor.”.
Estanque adverte que, sem novas soluções à vista, a democracia vai-se aguentado “com maiorias eleitas por menos de 10% dos eleitores” e, entre os jovens que votam essas maiorias, elas são aqui e ali escolhidas com a ajuda de algoritmos. E o jovem Pedro Melo, por exemplo, diz que, a votar, se apoia num questionário na Internet que tem umas trinta questões de escolha múltipla e que, no final, dá uma estatística sobre em quem estamos mais inclinados a votar. Eu também vi esse questionário paupérrimo e confesso que o meu perfil indicava uma formação partidária em que nunca votei.  
Para Estanque, devia ser mais escrutinado o papel das redes sociais no comportamento dos jovens que as têm “como prolongamento do corpo”, pois, numa altura em que a relação com os media digitais é incontornável, falta saber a que ponto o volume de informação tão vasto e tão disperso a que acedem se pode tornar paralisante”.
O politólogo Carlos Jalali fala do “efeito de habituação”, referindo:
O voto é um hábito que se ganha nas primeiras eleições em que a pessoa pode votar e, se a pessoa não ganha esse hábito, não é mais tarde que o vai adquirir”.
Mas descarta o voto obrigatório, “porque mata o mensageiro, no sentido em que a abstenção também nos diz algo sobre a vitalidade dos sistemas democráticos”.
O politólogo entende que deve a escola incluir uma disciplina de cidadania de implicações práticas e sugere uma lotaria para eleitores a modo de orçamento participativo, “sendo que as propostas não podem ser em interesse próprio”. A lógica é semelhante a um Euromilhões, mas, em vez de os jogadores, na semana em que jogam, “mesmo sabendo que as probabilidades de ganhar são escassas”, se porem a conjeturar hipóteses de mudança de vida em caso de ganho (‘E se eu ganhasse? Deixava de trabalhar?’), deveriam conjeturar: ‘E, se eu ganhar, o que é que vou propor’? E conclui que gerar “esta reflexão nas pessoas já é uma forma de mobilização”.
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A democracia não é um dado adquirido nem um figurino único nem a inventar. É obra a construir, obra de todos e a convocar muitas sinergias. Há que para ela reorientar os adultos, educar os jovens e afinar as estruturas partidárias, de governança e de administração.   
2019.05.26 – Louro de Carvalho

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