Em dia
de eleições para o Parlamento Europeu (PE), pairava no ar o fantasma real
da abstenção. E vêm alguns desculpar-se com a campanha trivial, medíocre e
acintosa, oca de conteúdos de interesse europeu; outros entendem que estas
eleições são de pouco interesse porque o PE está lá muito longe, passa-nos ao
lado e o poder maior está no Conselho; e o Presidente da República, que
subscreveu, nos princípios deste mês, um apelo comum dos chefes de Estado e de
Governo da União Europeia à participação nestas eleições, veio apelar, de forma
lancinante, no dia da reflexão, à participação no ato eleitoral.
Na
verdade, como refere Leonete Botelho no Público
de hoje, dia 26 de maio, a abstenção nas eleições europeias “é sempre muito
elevada e este ano há uma agravante: a entrada em vigor do recenseamento
automático dos emigrantes fez crescer de 300 mil para 1,4 milhões os cidadãos
no estrangeiro que entraram no sistema”. E o Presidente Marcelo verifica:
“Eu sei que o mais de um milhão de compatriotas que vive por esse mundo
fora pode estar ainda longe destas suas primeiras eleições”.
E,
assinalando o tom em que correu a campanha, disse:
“Também sei que, nas campanhas eleitorais europeias, se fala de muito
mais do que de Europa, sobretudo num ano, como este, em que daqui por quatro
meses, há novas eleições, as eleições para a Assembleia da República. É, por
isso, tentador ficar em casa e deixar a outros o encargo de irem votar, guardando
para Outubro o voto considerado essencial. (…) Mas é um erro. É um erro enorme.”.
Tem razão o Chefe de Estado em fazer este
apelo ao “pequeno sacrifício do voto” e nos termos em que o fez. De facto, é
melhor esquecer o que desgostou o eleitorado na campanha eleitoral e ir votar. Grosso modo os portugueses sabem aquele
poucochinho que, no fundo, querem os diversos partidos, mesmo os mais pequenos,
pelo que têm elementos suficientes para decidir o voto. Sabem também que todos
prometem e têm muita dificuldade em cumprir: é a vida. E não é com um virar de
costas que resolvem o problema. Pelo contrário, o perigo espreita e, como
advertiu o Presidente, “assim começou, em
tantos casos, a fraqueza das democracias; assim começou, vezes de mais, o
caminho para a sedução dos poderes absolutos”.
Antes,
se querem resolver o problema do divórcio entre partidos e eleitores,
governança e cidadãos, os eleitores, primeiro, devem votar e, depois, usar a
voz e a caneta para a crítica oportuna e importuna, utilizar o exercício dos
direitos de reclamação, reunião, associação e manifestação. Não se pode, como
diz Marcelo, deixar nas mãos de poucos (era melhor que não
tivesse referido valores percentuais para não “legitimar” as previsões de
grande abstencionismo em 20% ou 25%)
o destino do país e o destino da Europa, mas também não se podem proibir os
abstencionistas de virem queixar-se ou criticar no futuro se estiverem
descontentes. Isto, porque não votar é também um direito, tal como o silêncio,
porque o abstencionista de hoje pode ser o votante de amanhã, porque o direito
de crítica não pode ser cerceado só porque “sim” ou por retaliação e porque
todos têm culpas no cartório: Partidos, Governo, Deputados, Comunicação Social,
Escolas, Massa Associativa, Agentes Culturais, etc. – por descurarem a
formação, o esclarecimento, a divulgação.
Por
outro lado, as aspirações do votante só podem ser integralmente satisfeitas se
a formação política em que votou ganhar a maioria dos mandatos ou se, pelo
menos, obtiver uma representação significativa no universo do órgão. É por isso
que se fala, por vezes do voto útil, diferente do voto fútil, apregoado nesta
campanha por alguns a alguns! Não é lícito subestimar os adversários e os
eleitores. E o labéu era para ambos.
E para o
direito à abstenção se revestir de eficácia como tomada de posição política,
era necessário que o abstencionista comparecesse na mesa de voto e declarasse a
abstenção à boca das urnas e esta fosse registada, como acontece nas votações
dos órgãos colegiais. Aliás, nas eleições autárquicas é conferido ao eleitor a
faculdade de se abster à boca das urnas na votação para um ou mais órgãos em
causa.
Dizer que
pouco se falou da Europa na campanha é demasiado curto. É muito difícil
distinguir o que distingue a lógica nacional da lógica europeia, pois as
posições dos partidos relativamente às questões nacionais repercutem-se
necessariamente na postura que assumirão na Europa e vice-versa, porque na
Europa se tomam muitas decisões que implicam o país, dada a transferência de
soberania, e porque, para a Europa ter uma voz forte no mundo, é necessária a a
lucidez e a força corroborada de cada um dos Estados-membros.
Se
intentarmos supinamente na omissão do voto, teremos sempre razões, mas o bem
comum postula que nos decidamos a sair do buraquinho de conforto ou a perder
uns minutos de praia, clube ou meditação.
***
Manuel
Carvalho, no Público, opina que a
existência da larga maioria de cidadãos que não sabe o nome de nenhum dos
candidatos é parte da “atitude demissionária” do eleitorado e, embora haja
culpa na campanha e suas circunstâncias, “este
distanciamento representa uma forma muito lamentável de ser português”, a
do “crítico sistemático de tudo e todos”, a dos “que se gabam de fugir aos
impostos, a dos arquitetos e engenheiros de obras feitas ou dos advogados das
causas perdidas. Por isso, com justiça, critica “o abstencionismo crónico e
deliberado” e preconiza que “não votar
sem causa justa é fugir a uma responsabilidade social” e sentencia – e bem
– que, se muitos não trocam a praia ou a patuscada pelo direito/dever de votar,
“é porque preferem essa forma de ser videirinha que tende a considerar os
assuntos nacionais como um problema que não é deles”, pelo que “não merecem a
nossa condescendência”. Porém, avisa:
“Não basta apontar o dedo. Limpar os cadernos eleitorais, por exemplo, é
tarefa que devia ter sido feita e atualizada há muito. Instalar o sistema de
voto electrónico tornaria simples o ato de votar. Os políticos e quem governa
podem fazer muito mais para travar este flagelo.”.
Mas
reconhece que “todos fizeram questão de chamar a atenção para o que está em
causa”.
***
Outro
problema é o dos eleitores jovens cujo desinteresse é preocupante.
Cerca de
114 mil jovens (dados do INE) capacitaram-se, este ano, para votar
por terem atingido a maioridade. Porém, não se sabe se cumprem esse dever e
exercem esse direito ou não.
Natália
Faria, do Público, vê-os “matraqueados
com a ideia de que não terão emprego nem reforma”, “preocupados ‘com a ideia de
sobrevivência’ e desenganados em relação aos partidos”. Se alguns garantem que
não abdicam de votar nestas eleições, tendo até já escolhido o partido, ainda
que não saibam de cor o nome do cabeça de lista, outros há que não se tinham
decidido, por não estarem muito a par do assunto, e outros que decidiram não
votar, e pronto.
Margarida
Gaspar de Matos, coordenadora em Portugal do estudo da Organização Mundial de
Saúde sobre a adolescência, diz que “não é estupidez nem desinteresse”, mas “é
porque estão desenganados em relação aos partidos e não estão para perder tempo
com uma estrutura que não lhes dá nada”. Ora, a meu, isso é fugir à questão e
desculpar a irresponsabilidade.
É
verdade que, nas europeias de 2014, apenas votaram 19% dos jovens portugueses
com idades entre os 18 e os 24 anos, o que resulta em 81% de abstencionistas
nesta faixa etária. Porém, os eleitores mais adultos não têm autoridade para
recriminação, pois, em termos gerais, a abstenção ultrapassou os 66%. E,
segundo as previsões, desta feita, só 3% dos jovens portugueses entre os 15 e
os 24 anos declararam ser provável irem votar – alegadamente por o voto não
alterar nada (33%)
e pela desconfiança no sistema político (30%).
Uma
estudante que se preparava para integrar a franja dos que foram às urnas, tendo
acompanhando alguns debates televisivos (caso excecional em
relação aos da sua idade)
e apontando como positiva “a transversalidade das preocupações com o clima”,
lamentava:
“Gostava de ter ouvido falar da igualdade de género, étnica, e também em
termos de orientação sexual, porque estas eleições podiam ser uma oportunidade
de a Europa marcar uma posição, sobretudo agora que os Estados Unidos estão a
retroceder no tempo”.
Esta
centena de milhar de jovens que pode votar agora pela primeira vez insere-se na
geração Z, a que não sabe viver sem o smartphone no bolso e, segundo os
sociólogos que lhes estudaram os estilos de vida, trata-se de jovens realistas,
pragmáticos, focados em si próprios, que “não leem jornais, não integram
associações”, são pouco contestatários, vão aos mesmos concertos que os pais e
imitam-nos nos valores. Ora, apesar de não caber ao sociólogo a avaliação do
mérito, devo dizer que esta situação atitudinal e comportamental é deveras
preocupante. De que valores se fala? Namoro do telemóvel? Diversão em
concertos? Resignação? Ninguém nos veio dar de bandeja emprego, casamento,
bem-estar. E a generalização da mesada não é antiga… e quem é que teve garantido
emprego e reforma? Alguns escolhem o partido em que votam por influência dos
pais, predominantemente regida por valores atreitos ao tradicionalismo. Que valores!
A
psicóloga Margarida Gaspar de Matos, já referida, assinala diferenças
relativamente à geração anterior, a dos millenials,
explicitando que “apanharam com a crise aquando da entrada na adolescência: “em
vez de amores, sonhos, viagens, ouviram falar de gente deprimida, crise,
desemprego”. E, percebendo que os pais “não eram tão invulneráveis” como
pensavam, adquiriram “um pragmatismo que não é suposto terem”. Por conseguinte:
“São hoje miúdos sem grandes ideias ou sonhos, sem uma visão hedónica da
vida. São inteligentes, aplicados. Vejo-os muito aflitos com as notas –
competitivos até –, não porque queiram ser melhores do que os outros, mas
porque sabem que só haverá lugar para alguns.”.
É caso
para questionar onde está a solidariedade que a família e a escola deveriam
ensinar?
Acho
esquisito como psicólogos e sociólogos se resignam à resignação dos jovens. O
sociólogo Elísio Estanque diz que para estes jovens “o mundo laboral tornou-se
imprevisível, instável e precário por definição”. E Margarida Gaspar aponta que
“eles estão todos convencidos de que não terão reforma”.
Estanque,
assacando culpas aos dirigentes, atira:
“As instituições tradicionais da democracia representativa deixaram que
se instalasse a ideia de que a democracia era um estado natural de vida, que
estava madura e consolidada. (…) Cabe
às estruturas partidárias, principais responsáveis pelos velhos clichés ‘do
dirigismo partidário e dos jogos de poder’ a tarefa de reverter a imagem
negativa e suja que a política ganhou.”.
Entretanto,
uma jovem, cujos pais a habituaram a discutir política, repara:
“Os jovens perderam noção do valor que tem o facto de termos liberdade
para votar. Se vivemos em democracia, alguém fez com que isso acontecesse. Mas
nas escolas não se aposta muito neste tipo de mensagem.”.
Porém,
um jovem de 20 anos e que desperdiçou a oportunidade de votar nas autárquicas
de 2017, assume que também em dia de eleições não se desligará do YouTube para
ir às urnas, porque não está “dentro desse mundo”, só ouve falar “nas dívidas e
no dinheiro”, não vê televisão nem lê jornais, está “mais, tipo, no computador”,
“não conhece os partidos e muito menos sabe enquadrá-los à esquerda ou à
direita”.
Isto é,
além de iliteracia política e cívica, misantropia. E os psicólogos descuram
esta doença?
Estanque
aduz que “os velhos critérios ideológicos têm pouco significado para esta
geração”, pois os jovens identificam-se “com os valores do ambiente e do
combate a uma indústria excessivamente corrosiva, as desigualdades, a ausência
de oportunidades”.
Ora
bolas! Mas isso só se consegue através de intervenção política ativa e
solidária, que postula o voto, a crítica e a associação, mas não o braço dado
com o computador ou o telemóvel.
Margarida
Gaspar pensa que, “se sentirem que podem ter voz, estes jovens são motiváveis”
(Então porque não os
motivam?),
pois o alheamento juvenil não é em relação ao mundo mas “aos partidos que veem
como uma coisa para gente crescida e desinteressante”. Embora os partidos
tenham culpa por se autoenredarem no aparelho e formarem de forma enviesada as
juventudes partidárias, isso não iliba os professores (Que é feito da formação cívica e da
educação para a cidadania?)
e psicólogos da responsabilidade da séria educação para o mundo da política, em
detrimento de tantas fantochadas que povoam a escola e a sociedade.
Margarida
Gaspar identifica como problema o facto de não termos descoberto nenhum novo
figurino para a democracia e discorre:
“Nós gastámos a galinha dos ovos de ouro sem conseguir fazer passar a relevância
da organização partidária aos jovens. Portanto, o perigo advém de não termos
uma alternativa trabalhada para lhes propor.”.
Estanque
adverte que, sem novas soluções à vista, a democracia vai-se aguentado “com
maiorias eleitas por menos de 10% dos eleitores” e, entre os jovens que votam
essas maiorias, elas são aqui e ali escolhidas com a ajuda de algoritmos. E o
jovem Pedro Melo, por exemplo, diz que, a votar, se apoia num questionário na
Internet que tem umas trinta questões de escolha múltipla e que, no final, dá
uma estatística sobre em quem estamos mais inclinados a votar. Eu também vi
esse questionário paupérrimo e confesso que o meu perfil indicava uma formação
partidária em que nunca votei.
Para
Estanque, devia ser mais escrutinado o papel das redes sociais no comportamento
dos jovens que as têm “como prolongamento do corpo”, pois, numa altura em que a
relação com os media digitais é incontornável, falta saber a que ponto o volume
de informação tão vasto e tão disperso a que acedem se pode tornar paralisante”.
O
politólogo Carlos Jalali fala do “efeito de habituação”, referindo:
“O voto é um hábito que se ganha nas primeiras eleições em que a pessoa
pode votar e, se a pessoa não ganha esse hábito, não é mais tarde que o vai
adquirir”.
Mas
descarta o voto obrigatório, “porque mata
o mensageiro, no sentido em que a abstenção também nos diz algo sobre a
vitalidade dos sistemas democráticos”.
O
politólogo entende que deve a escola incluir uma disciplina de cidadania de
implicações práticas e sugere uma lotaria para eleitores a modo de orçamento
participativo, “sendo que as propostas não podem ser em interesse próprio”. A
lógica é semelhante a um Euromilhões, mas, em vez de os jogadores, na semana em
que jogam, “mesmo sabendo que as probabilidades de ganhar são escassas”, se
porem a conjeturar hipóteses de mudança de vida em caso de ganho (‘E
se eu ganhasse? Deixava de trabalhar?’),
deveriam conjeturar: ‘E, se eu ganhar, o que é que vou propor’? E conclui que gerar
“esta reflexão nas pessoas já é uma forma
de mobilização”.
***
A
democracia não é um dado adquirido nem um figurino único nem a inventar. É obra
a construir, obra de todos e a convocar muitas sinergias. Há que para ela reorientar
os adultos, educar os jovens e afinar as estruturas partidárias, de governança
e de administração.
2019.05.26 –
Louro de Carvalho
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