domingo, 19 de maio de 2019

“Um novo Céu e uma nova Terra”


Um novo Céu e uma nova Terra ou o Universo renovado (como indica o adjetivo grego “kainós”). Tal é o cenário que o autor do Apocalipse tem na sua visão em que culmina o livro do Apocalipse (Ap 21 – 22), atribuído a João, o discípulo amado, e em que se destaca a Jerusalém nova”.
Não é fábula ou conto de fadas a perícopa apocalíptica (Ap 21,1-5a) que a Liturgia da Palavra do 5.º domingo da Páscoa assumiu como 2.ª leitura, mas é um mundo verdadeiramente novo, que surge da Ressurreição de Jesus e em que “Deus enxugará as lágrimas dos nossos olhos”. E a Igreja, que participa nos sofrimentos de Jesus, neste mundo, verá terminada esta experiência dolorosa, pois, na glória celeste, não haverá gemidos nem dor. Na verdade, o mundo antigo desaparecerá e nós, de peregrinos que somos, passaremos a cidadãos dos novos Céus e da nova Terra, porque Deus prometeu: “Eis que vou renovar todas as coisas!”.
A renovação do Universo comporta indubitavelmente um sentido ético, porque decorre da supressão do pecado, mas inclui também uma renovação física, sobretudo tendo em conta o que se diz em 2Pe 3,10-13 (Os céus desaparecerão com estrondo, os elementos do mundo abrasados dissolver-se-ão, assim como a terra e as obras que nela houver… Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos uns novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça) e Rm 8,19-22 (A criação encontra-se em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. Foi sujeita à destruição… na esperança de que também será libertada da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus… Geme e sofre as dores de parto até ao presente). A expressão “Novo Céu e nova Terra” é tirada de Is 65,17 e 66,22, em que se refere a criação de “um novo céu e uma nova terra” e de “os novos céus e a nova terra”, respetivamente. O que se passará, em concreto, com o Universo no fim dos tempos continua um mistério (cf Gaudium et Spes, n.º 139). Em todo o caso, a renovação em causa é de ordem sobrenatural e misteriosa, não simples fruto dum processo evolutivo natural.
A Jerusalém nova é uma imagem da Igreja, a Esposa do Cordeiro (Ap 9-10), noiva adornada para o seu esposo. Coincide com a linguagem de Paulo, que chama à Igreja “a Jerusalém lá do alto, que é nossa Mãe” (Gl 4,26). E é uma aplicação da Tradição cristã – incluindo a Liturgia – a Nossa Senhora, a Esposa do Espírito Santo e a Mãe, modelo e membro destacado da Igreja. (2Cor 11,2; Ef 5,25; Mt 22,1; 25,1; Jo 3,29). A Igreja aparece aqui na sua fase definitiva e final, celeste e triunfante, mas, desde já, ela é a verdadeira “morada de Deus com os homens”: esta presença única de Deus e com Deus inicia-se com a Encarnação, é garantida na Última Ceia, no Calvário e na saída vitoriosa de Cristo do túmulo e é consumada no Céu na parusia, sendo que a Eucaristia é a sua vivência por antecipação e seu penhor.
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Todavia, há muito caminho por fazer nesta peregrinação terrestre da Igreja a caminho da realização plena da cidadania celeste. A luz que ilumina esta peregrinação é a glorificação de Jesus, o Filho, e a glorificação do Pai no Filho; e o caminho é o do amor fraterno. E a perícopa do Evangelho de hoje (Jo 13,31-33a.34-35) sintetiza estas duas vertentes.
Depois da Ceia, Judas sai para perpetrar a traição do Mestre. É Jesus quem o ordena (“O que tens a fazer fá-lo depressa” – Jo 13,27). Após a saída do traidor, Jesus fica profundamente perturbado com o pensamento da sua Paixão, mas tal perturbação transforma-se e Ele solta um grito de exultação. É como se tivesse já enfrentado a morte e se encontrasse na glória do Pai (para Deus não há o desgaste do tempo). Com efeito, a saída de Judas da Ceia para concretizar a prisão de Jesus, dando início à sua Paixão, aparece como o início da sua glorificação. É que a Paixão e a Morte do Senhor não é uma derrota, mas a vitória sobre o demónio e o pecado. E o texto joanino indica que na Paixão-Morte-Ressurreição se mostra a glória de Cristo, ao dar, pela sua Morte redentora, a Vida Eterna e o Espírito Santo aos que n’ Ele creem.
Jesus abre o seu coração na intimidade do grupo dos discípulos e desenvolve-se um terno e eficiente colóquio. Tal como antes, ao terminar o lava-pés, explicou o significado daquele gesto de serviço, agora interpreta a saída de Judas que o entregará, conforme o Mestre anunciara. Explica a aceitação que faz da morte em termos de manifestação da sua glória, que se identifica com a do Pai, porque a sua Morte, livremente aceite, é a grande prova do amor de Deus, que dá o seu Filho Unigénito (vd Jo 3,16).
A palavra “agora” (“nûn”, em grego) domina toda a frase e assinala o cumprimento da hora da Paixão e Morte, ou seja, da Glorificação. Na presença dos gregos, Jesus definiu a “hora” como o momento em que o Filho do Homem seria glorificado (Jo 12,23). Vendo realizar-se o anúncio feito pela multidão “Agora  o príncipe deste mundo será lançado fora” (Jo 12,31), experimenta já a vitória sobre o mal e sobre a morte e sente-se no coração de Deus. Através do “agora”, o evangelista exprime a convicção da fé dos primeiros cristãos: a Páscoa deu início à nova era.
É uma afirmação misteriosa e difícil de compreender. E Jesus, consciente disso, tem uma linguagem altamente evocativa. Fala de si recorrendo à expressão “Filho do Homem. Nos sinóticos, fala do Filho do Homem quando revela que a missão O levará ao sofrimento e ao despojamento. Na literatura apocalíptica judaica, o Filho do Homem é uma personagem celeste que se manifestará no fim dos tempos (vd Dn 7,13-14). Porém, no evangelho de João, a denominação “Filho do Homem” é utilizada nos textos em que se afirma que Jesus pertence a uma condição superior à humana, mesmo quando se fala da cruz. A primeira vez que João adota esta designação é no capítulo I (Jo 1,51), no episódio de Natanael (“Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem”). A última vez é em Jo 12,32 com o retomar do tema da glorificação, apresentada como já realizada em Jo 13, 31-32.
Outro elemento evocativo é a utilização dum estilo altamente lírico: é repetido 5 vezes o verbo glorificar e 3 vezes a palavra nele. O verbo glorificar tem valor quer para o passado (Jesus cumpriu a sua missão) quer para o futuro próximo (a sua Páscoa de morte e ressurreição) ou remoto e definitivo (a glória escatológica). O Filho do homem, na ótica de João, começa a ser glorificado com o início da Paixão que é “agora” e que tende para o Calvário. Ele é exaltado sobre a cruz como a serpente de bronze no poste (vd Jo 3,14ss). Desse trono manifesta em plenitude a sua divindade (vd Jo 8,28) e atrai todos a si (vd Jo 12,32). Com tal glorificação é revestido da glória divina que possuía antes da existência do cosmos (vd Jo 17,5). Portanto, o Filho do Homem foi glorificado. Foi glorificado é uma expressão proléptica, pois dá como já realizado o que com toda a certeza se vai realizar.
Pouco antes, o evangelista indicava a saída de Judas. Portanto, a glorificação de Cristo é posta em relação direta com a morte, considerada como já acontecida, mas não é Judas a causa de tal glorificação. O autor desta glorificação é Deus. Isto é indicado pelo uso da voz médio-passiva verbal (“edoxásthê”), que tem aqui um sentido manifestativo:foi glorificado” (subentende-se Deus como sujeito), isto é, Deus glorificou-o. E, glorificando Jesus, o Pai revelou a sua glória, sendo, por sua vez, glorificado. Poderia traduzir-se: “agora é que se revela a glória… (cf Jo 12,23; 17,1-5). Esta revelação realiza-se pela ressurreição de Jesus, pela sua exaltação, pela sua subida para junto do Pai. Mas, graças à relação com o Pai, o Filho estava já na glória. E com a ressurreição adquire uma outra glória: a de permitir que, por Ele, todos os crentes participem na própria vida de Deus (somos irmãos de Jesus). Jesus, elevado da terra, atrairá a si todos os homens (cf Jo 12,32) e realiza a reunião na unidade, o objetivo de Deus no envio e na obra confiada ao seu Filho único. O próprio Deus Se glorifica no Filho do Homem revelando, através dele, que é Amor.
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A partir do v. 33 há uma mudança de cena: Jesus dirige-se aos discípulos como um patriarca ou um pai que, à hora da morte, reúne os descendentes para lhes entregar o testamento, e usa um termo afetuoso: filhinhos. Anunciando  a sua partida, Jesus cria uma situação nova. Não estará mais com os seus como esteve até agora. Por isso, chama-os a continuar a amizade com Ele através duma fé profunda, que está em relação direta com o amor fraterno. O mandamento do amor que lhes dá evoca a ideia de Aliança, não a realizada através de Moisés, mas a nova e definitiva Aliança levada a cabo por Jesus. Eis porque o mandamento é apresentado como “novo” (em grego kainos, a indicar uma mudança qualitativa). O termo “mandamento”, no 4.º evangelho, significa a palavra que revela o amor de Deus Pai; por isso é apenas um, e não dois ou dez.
A lei do amor fraterno não era uma novidade em si (cf Lv 19,18). A novidade está na medida e no sentido. A medida já não é a do coração meramente humano, “como a ti mesmo”, mas a do coração de Cristo, “Como Eu vos amei”, na entrega da própria vida pela redenção de todos (cf 1Jo 4,9-11). Não se trata de os discípulos deverem imitar o comportamento do Mestre, o que seria redutor, tornando Jesus uma personagem do passado, de quem se herda algo a aplicar, de modo que a ação dos discípulos apenas perpetuasse no tempo a de Jesus. Ao invés, postula-se uma interpretação mais profunda. A conjunção “como” não tem o sentido de semelhança, mas de origem ou causa fundante. O sentido é: “Com o amor com que vos amei, amai-vos uns aos outros”. O amor do Filho de Deus pelos discípulos gera o seu movimento de amor: é o seu amor, o amor de Jesus que passa neles quando amam os irmãos e são por eles amados. É o amor com que Jesus ama cada homem que gera a fraternidade e nela empenha cada comunidade cristã, “um amor sempre novo, sempre gratuito e profundo, como a aliança que Deus revela amando a humanidade e o mundo”. Como se vê, não é só a medida que é nova, mas o sentido. Por outro lado, este amor fraterno é a medida da fé e do testemunho: é um amor que suscita a fé da parte dos outros e que torna credível o testemunho. Assim, é um sinal: Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,31). 
O amor recíproco manifestará a todos, também num ambiente não crente, a pertença a Cristo, através de quem cada pessoa pode passar da morte à vida. O amor que deve viver a comunidade cristã torna-se o rosto do Ressuscitado que vive na sua Igreja (1Jo 4,12), é a virtude essencial do cristão que vive na espera do regresso do Senhor. Para Tertuliano (Apolog. 39), os primeiros cristãos tomaram tão a sério as palavras do Senhor, que os pagãos exclamavam admirados: Vede como eles se amam! (cf Jo 15,12.13.17; 1Jo 2,8; Mt 22,39; Jo 17,23; At 4,32). Depois, o mandamento novo, sugerindo a Nova Aliança, difere da antiga economia, pois então Lei e Aliança eram duas noções paralelas; porém, aqui, Jesus atua não como simples intermediário de Deus, à maneira de Moisés, mas com uma autoridade própria, que explicita, e em seu nome próprio, pois: “Eu dou-vos um mandamento…. E este mandamento do amor fraterno é o testamento e a herança que o Senhor nos deixou. Por vontade expressa de Jesus é o amor o sinal que identifica os seus discípulos.
Este mandamento, que é também sinal da presença invisível, mas real, da presença do Mestre e Senhor no meio de nós, é ainda novo pela necessária universalidade do amor que Jesus recomenda em favor de todos os homens, inclusive dos inimigos. É ainda novo, porque Jesus é a sua origem, modelo e bitola: amai-vos como Eu vos amei. Daí a importância do amor fraterno que Jesus equiparou ao amor de Deus. O sinal que distinguirá os Seus seguidores será a caridade fraterna. É ainda novo porque, nascendo no contexto da Última Ceia em que Jesus fala na Nova Aliança no Seu Sangue derramado pela multidão dos homens, é eucarístico (entrega, comunhão e ação de graças). Não é uma imposição, mas dom concedido gratuitamente aos que acreditam em Jesus. Desta benevolência recebida na mesa da comunhão brota o amor cristão a Deus e ao próximo. O amor, com a fé, constitui o fundamento do cristianismo. Assim, reconhecer hoje os cristãos nas celebrações do culto, na participação da Missa, nas outras devoções tradicionais é interessante, mas a originalidade da vocação cristã, no nosso mundo, marcado pela incredulidade e pelo ódio, é a fé que atua e se exprime por meio da caridade ou do amor (Gl 5,6).
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É bom pertencer à Igreja, com os seus dogmas e tradições, a sua organização e estruturas. É bom recitar o Credo e participar na Missa, nas outras celebrações e nas orações. É bom dar esmola, trazer ou ter em casa objetos religiosos, como cruzes, imagens, medalhas… Porém, tudo isso são apenas sinais, mas não “o sinal”. O que nos constitui pessoalmente cristãos é o amor que o Pai nos tem em Cristo e que o Espírito Santo derrama nos nossos corações. Não se pode inventar outro sinal. Acolhamos o pedido de Jesus: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. Na Igreja primitiva, os crentes tinham um só coração e uma só alma (At 4,32). Se, no tempo de Tertuliano, as pessoas comentavam acerca dos cristãos: “Vede como eles se amam”, mais perto de nós, o poeta indiano Tagore tinha outra opinião. Depois de ter viajado pela Europa, afirmou dececionado:
Jesus, o Rabi da Galileia deveria ter vivido e ensinado a Sua mensagem de amor e de fraternidade nas margens do rio Ganges. A sua Boa Nova, certamente teria tido muito mais aceitação entre os povos orientais do que nos ocidentais.” (cf B. Caballero, En las fuentes de la Palabra, p. 884-887).
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Apesar dos problemas que existiam, a Igreja dos primeiros tempos dava sólido testemunho do Ressuscitado. A 1.ª leitura da 5.ª dominga pascal (At 14,21b-27) apresenta Paulo e Barnabé a narrarem o trabalho que tinham no crescimento da Igreja: exortavam os discípulos a perseverar na fé, animavam-nos, contra o escândalo das provações, a suportar os sofrimentos para entrar no Reino dos Céus. Oravam, jejuavam, designavam presbíteros e encomendavam-nos ao Senhor, em Quem tinham acreditado. E, agora percorrem em sentido inverso, desde o ponto extremo da 1.ª viagem missionária: isto é, desde Derbe, na Licaónia, voltaram a Listra, a Icónio e, passando por Perga, Pisídia e Panfília, embarcaram para Antioquia (da Síria, donde tinham saído, hoje à cidade turca de Antáquia) – tudo cidades que tinham evangelizado na Ásia Menor, a fim de virem confirmar na fé e organizar as comunidades cristãs aí fundadas. Não faltou a designação de “anciãos, que não eram meros chefes, como os havia nas comunidades judaicas da diáspora, mas homens que desempenhavam o ministério sagrado em virtude do sacramento da Ordem, recebido com a imposição das mãos e com asorações (v. 23).
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Ora, tendo em conta o novo mandamento legado por Jesus e o exemplo dos primeiros cristãos, a questão inquietante é: Ao sairmos da Eucaristia, alguém nos reconhecerá como discípulos de Jesus Cristo?
2019.05.19 – Louro de Carvalho

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