É este o mínimo que se pode dizer do relatório
extraordinário que o BdP (Banco
de Portugal) divulgou pelas 14 horas de hoje, dia 28 de
maio, sobre os grandes devedores à banca, “sem nomes nem números sobre
devedores”.
Nos termos do art.º 6.º da Lei n.º 15/2019, de 12
de fevereiro, o BdP tinha 100 dias corridos da publicação desta Lei para
entregar “à Assembleia da República um relatório extraordinário com a
informação relevante relativa às instituições de crédito abrangidas em que, nos
12 anos anteriores à publicação da presente lei, se tenha verificado qualquer
das situações de aplicação ou disponibilização de fundos públicos previstas na
alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º”.
Por seu
turno, a alínea a) do n.º 1 do referido art.º 3.º, entre outras coisas, define:
“Instituição de crédito abrangida:
qualquer instituição de crédito, independentemente da natureza pública ou
privada dos titulares do seu capital, que tenha sido objeto ou resultado de
medida de resolução, de nacionalização, de liquidação, ou de operação de apoio
à sua capitalização, com recurso a fundos públicos disponibilizados pelo
Estado, ou pelo Fundo de Resolução com recurso a financiamento ou garantia
prestados pelo Estado, incluindo através da aquisição ou subscrição de capital
social, aquisição de ativos (operações de carve out), subscrição de
instrumentos de capital contingente ou capitalização de instituições de
transição”.
Ora, o BdP
enviou, na semana passada, à Assembleia da República o relatório extraordinário
com informação relevante sobre todos os bancos que recorreram a fundos públicos
nos 12 anos anteriores à publicação da Lei, mas ficou de fora informação sob a
capa da proteção do segredo bancário. Trata-se dum documento de 34 páginas em que
aproximadamente um terço é dedicado à explicação do motivo da sua existência e
metodologia, mas a que falta informação sobre nomes e valores dos
grandes devedores aos bancos que receberam ajuda pública. Estão abrangidos por
esta obrigação os bancos que foram alvo de resolução, como o BES e o Banif, mas
também o BPN (Banco Português de Negócios), a CGD (Caixa Geral
de Depósitos) e os
bancos BCP (Banco Comercial Português) BPI (Banco Português de Investimento), que receberam injeções de fundos públicos durante o
período de resgate financeiro, tendo os dois últimos já reembolsado o Estado na
totalidade.
O Parlamento
autorizou o BdP a publicar o predito relatório sobre os devedores à banca, a
publicação foi feita e, apesar de o documento ter sido expurgado da informação
sensível, há, pelo menos, uma informação relevante: o supervisor contabiliza em 23,8
mil milhões de euros o valor da ajuda pública a sete bancos, entre 2007 e 2018.
Em
declarações aos jornalistas no Parlamento, o deputado do PSD Duarte Pacheco
garantiu que o partido não abdica da divulgação da lista de devedores que
entraram em incumprimento e cujas perdas, segundo o socialdemocrata, são
responsáveis pelas ajudas do Estado aos bancos. Com efeito, a informação sobre
os grandes devedores fica guardada em anexo ao documento em posse do
Parlamento. Cabe agora aos deputados decidir o que fazer com essa informação.
***
O relatório
do supervisor recorda que, entre 2007 e 2018, o Estado disponibilizou 23,8 mil
milhões de euros a sete instituições bancárias. O banco que mais recebeu no
decurso desse tempo foi a CGD, com
6,25 mil milhões de euros. Os seus números poderiam ser ainda maiores,
se o supervisor tivesse incluído
nestas contas aproximadamente 2,4 mil milhões de euros, por não
“corresponderem a um desembolso de novos fundos” e ainda a emissão de duas tranches, também de 500 milhões de euros
cada uma, de obrigações e instrumentos de dívida. Os preditos 2,4 mil
milhões dizem respeito, por exemplo, ao aumento de capital da CGD em mais de 1.400 milhões de euros, feito em
inícios de 2017 (no âmbito da primeira fase de recapitalização do banco
do Estado), através da conversão em capital
de 900 milhões de euros (e respetivos juros) dos instrumentos de capital contingente (CoCos) subscritos pelo Estado em 2012 e de 500 milhões de euros de uma passagem
para a CGD das ações da sociedade Parcaixa, tendo a CGD incorporado 49%
do capital social da Parcaixa.
O BPN, com 4,91 mil milhões de euros, foi o
segundo banco que recebeu mais naqueles 12 anos. Segue-se-lhe o BES (Banco Espírito
Santo), cujas responsabilidades pertencem
agora ao NB (Novo Banco), que recebeu 4,33 mil milhões de euros. Aqui,
o BdP esclarece que, no caso do BES/NB, se consideram “apenas empréstimos do
Tesouro ao Fundo de Resolução e não o montante total de fundos disponibilizados
pelo Fundo de Resolução ao BES/NB (4.900
milhões em 2014 e 791,7 milhões em 2018)”. Depois,
vem o Banif, que foi alvo de uma injeção de 3,35 mil milhões de euros, e o BCP, que recebeu três mil milhões de euros. Já o
BPI recebeu 1,5 mil milhões de
euros. Segundo oque destaca o BdP, os valores recebidos pelo BCP e
BPI foram em formato de Contingent Convertible Bonds (‘CoCos’ –
obrigações convertíveis em capital) e já foram
reembolsadas integralmente ao Estado. Por fim, o BPP (Banco
Privado Português) recebeu do
Estado 450 milhões de euros.
Parece que
os gastos totais feitos e a fazer com a salvação da banca ultrapassam os 23,8
milhões oficialmente contabilizados pelo supervisor. Há quem avance com o montante
de cerca de 40 mil milhões.
Foi em
meados de junho de 2012, segundo o relatório, que o Estado aplicou o valor mais
elevado, de 6,15 mil milhões de euros, incluindo a totalidade dos fundos do BCP
e BPI e 1,65 mil milhões aplicados na CGD.
***
Nem tudo é mau no relatório. Em
comunicado, o supervisor bancário diz que o documento abrange todas as
instituições que recorreram a fundos públicos nos 12 anos anteriores à
publicação da lei que obriga à produção do relatório, que inclui “informação
relevante, designadamente sobre as grandes posições financeiras das
instituições de crédito abrangidas no momento da disponibilização de fundos
públicos e nos cinco anos anteriores.
Estão em causa posições financeiras
de montante agregado superior a cinco milhões de euros, desde que igual ou
superior a 1% do valor total dos fundos públicos mobilizados para essa
instituição”. E estão abrangidos por esta obrigação os bancos resolvidos, como
o BES, o Banif, bem como o BPN, que foi nacionalizado e, posteriormente vendido,
a CGD e os bancos privados BCP e BPI que receberam injeções de fundos públicos
na era da troika, através da emissão de obrigações convertíveis, mas que já
reembolsaram o Estado.
O prazo de 100 dias que o BdP tinha
para elaborar e enviar ao Parlamento o relatório extraordinário terminou no dia
23. E o supervisor refere que, para preparar o documento, promoveu várias
diligências junto dos bancos e outras entidades abrangidas pelo diploma.
O relatório foi entregue ao
presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, com destino à COFMA (comissão de orçamento e finanças e
modernização administrativa). A decisão sobre o que iria ser tornado público do documento deveria
resultar da interação entre o BdP e o próprio Parlamento. Já a CPI (comissão parlamentar de inquérito) à CGD terá acesso aos dados
reservados que digam respeito ao banco do Estado, visto que o objeto desta
comissão já abrange os grandes devedores cujo incumprimento contribuiu para as
necessidades de recapitalização.
A instituição liderada por Carlos Costa justifica a posição de não fornecer um único número e um único nome sobre as grandes
dívidas que poderão ter levado as instituições financeiras a pedir apoios
estatais, referindo que tal informação está “abrangida pelo segredo
bancário” e enumera mais cinco razões para não a divulgar, que vão da estabilidade financeira ao equilíbrio concorrencial,
passando pelo “significativo” impacto no emprego que
resultaria de danos reputacionais eventualmente causados por estes dados.
São, pois, seis os motivos aduzidos para a não revelação daqueles dados: segredo bancário e proteção de
dados pessoais; estabilidade financeira; estarem em causa elementos “detalhados e sensíveis” sobre operações ainda vigentes; concorrência entre entidades; condições negociais das entidades envolvidas; e dano reputacional e consequente impacto na atividade e emprego
gerado. Assim, no preâmbulo do relatório, lê-se:
“A informação constante do Anexo ao
Relatório Extraordinário, reportada pelas entidades abrangidas nos termos do
artigo 6.º da Lei n.º15/2019, [de 12 de fevereiro], está abrangida pelo segredo bancário que vincula as instituições
de crédito nos termos da lei”.
E frisa o BdP que os dados em causa atingem a “vida e atividade
principal das instituições de crédito abrangidas” pelo dever de
reporte, bem como “às relações destas com os seus clientes”, nomeadamente as
operações bancárias “com dados individuais”.
Por outro lado, o documento sublinha:
“A informação constante do Anexo encontra-se igualmente abrangida pelo dever de segredo do Banco de Portugal,
relativamente ao qual se verifica, em resultado da entrega à Assembleia da
República do presente Relatório Extraordinário, nos termos da Lei n.º15/2019,
[de 12 de fevereiro], uma extensão aos respetivos destinatários, nos
termos mais detalhadamente expostos no documento autónomo que acompanha o
presente relatório”.
Para lá da propalada preservação do segredo bancário e da
“confidencialidade” dos dados pessoas, o supervisor invoca a defesa da
estabilidade financeira para “esconder” os números reportados pelas
instituições financeiras vincando que a divulgação de tal
informação constituiria ameaça ao equilíbrio concorrencial entre
as instituições financeiras e às “condições negociais” dessas entidades,
nomeadamente em possíveis “ações de reestruturação”.
Como reforça o relatório extraordinário, além de contrária às regras sobre
o segredo e sobre a proteção de dados pessoais, “a sua eventual divulgação,
constituiria um risco significativo para a estabilidade
financeira e o regular do financiamento da economia, ao introduzir distorções muito significativas nas condições negociais das
entidades envolvidas (…), criando igualmente um grave e
injustificado desequilíbrio concorrencial face às entidades não abrangidas
pelo presente reporte”. E o texto preambular adverte que o documento
contém “elementos detalhados e sensíveis sobre operações que poderão
estar ainda vigentes” e sustenta que a divulgação do anexo referido
poderia causar “danos reputacionais”, o que teria um “impacto
significativo” na atividade dessas instituições e consequentemente no emprego
gerado. Depois, conclui:
“Neste quadro, o tratamento da informação
reportada requer, no entender do Banco de Portugal, um dever de reserva
especial, que salvaguarde firmemente o segredo a que essa informação está
sujeita, de modo a não prejudicar as instituições de crédito, as empresas e a
economia”.
Entregue o relatório, no dia 23, na Assembleia da
República, a Mesa decidiu dar o aval ao BdP para que publicasse a informação.
E a COFMA, presidida pela socialdemocrata Teresa Leal Coelho, decidirá sobre o
que pode ser publicado e o que fica abrangido pelo dever de segredo.
***
Entretanto,
PSD acusa o Banco de Portugal de
ter violado a lei dos grandes de devedores da banca por não ter publicado no
seu site e dentro do prazo previsto
um relatório com informação agregada e anónima sobre os grandes créditos em
incumprimento.
Ao deputado Duarte Pacheco juntou-se o também deputado socialdemocrata
António Leitão Amaro Escreveu, que escreveu, a este propósito, na sua conta
de Twitter.
“Repararam que o Banco de Portugal está a
violar a lei? É grave. O Banco de Portugal tinha até 23 de maio que publicar um
outro relatório com o resumo em agregado da informação relativa aos grandes créditos
incumpridos. Porque ignorou n.º 3 do artigo 4.º da Lei 15/2019, [de 12 de
fevereiro]? Por que não fez e/ou publicou este relatório?”
Na verdade, o referido n.º 2 do art.º da lei em referência
estabelece:
“Nos prazos previstos
nos artigos 5.º e 6.º, o Banco de Portugal publica, no respetivo sítio da
Internet, um relatório com o resumo sob a forma agregada e anonimizada da
informação relevante relativa às grandes posições financeiras”.
Como se
disse e agora se sintetiza, o regulador bancário divulgou hoje, dia 28, um
documento em que mostra apenas a metodologia que utilizou para identificar os
grandes devedores dos bancos ajudados pelo Estado e a discriminação de alguns
fundos públicos usados nas operações de auxílio à banca nos últimos 12 anos. Porém,
não publicou os tais dados agregados e anonimizados sobre os grandes créditos
em incumprimento.
Ora, Leitão
Amaro argumenta que, de acordo com a lei, o Banco de Portugal tinha um prazo
de 100 dias a contar da sua entrada em vigor para publicar “no respetivo sítio
da Internet um relatório com o resumo sob a forma agregada e anonimizada da
informação relevante relativa às grandes posições financeiras”. Ou seja, o
prazo terminava no passado dia 23 e nada foi publicado no site do supervisor bancário liderado por Carlos
Costa.
Ademais,
sustenta, em declarações enviadas ao Observador, que a lei “é clara a dizer que há dois documentos diferentes de informação:
um relatório com informação agregada e anónima sobre esses grandes devedores, a
ser divulgado; e outro, a entregar ao Parlamento com dados discriminados e
detalhados de cada um dos créditos incumpridos, acima dos cinco milhões de
euros, incluindo dados sobre garantias e reestruturações.
Por isso, o deputado adiantou que os sociais-democratas vão levar este assunto à conferência de líderes da
Assembleia da República, onde exigirão “uma ação do Parlamento perante esta
ilegalidade”.
A ver vamos no que vai dar esta exigência socialdemocrata, se contraria a
posição do BdP ou se as seis razões do anonimato e do “anaritmonato” dos grandes devedores vingará.
2019.05.28 –
Louro de Carvalho
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