domingo, 5 de maio de 2019

Uma leitura da crise política que envolve os professores


Dá-me a impressão de que os únicos partidos políticos que não andaram nem para a frente nem para trás nesta matéria foram o BE e o PCP. O próprio Primeiro-Ministro o reconheceu aquando da sua declaração aos jornalistas no dia 3 de maio, mas esqueceu-se de dizer que o seu PS voltou atrás, porquanto, em outubro de 2017, o PS votou a favor do projeto de resolução que recomenda ao Governo a contagem integral do tempo de serviço congelado nas carreiras da administração pública em que não há lugar a promoções, tendo o mesmo ficado estipulado, por opção de PS (e Governo), BE, PVP e PEV, na Lei do OE (Orçamento do Estado) para 2018 e na Lei do OE para 2019. Assim, o art.º 19.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, estipula:
A expressão remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integradas em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o efeito, é considerada em processo negocial com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”.
De igual modo, o art.º 17.º da Lei n.º 78/2018, de 31 de dezembro, repete a substância e a dosagem quase ipsis verbis:
A expressão remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integrados em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o efeito, é objeto de negociação sindical, com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”.
O Governo tentou, antes da entrada em vigor desta segunda lei, dar-lhe cumprimento ensaiando a farsa negocial que acabou pela apresentação a Belém dum decreto-lei que o Presidente vetou apontando para a negociação na vigência da lei do orçamento. E o Governo reagiu com nova ronda negocial que deixou tudo na mesma, levando-o a apresentar ao Presidente, que o promulgou, o Decreto-Lei n.º 36/2019, de 15 de março , que “regula o modelo de recuperação do tempo de serviço dos docentes de carreira dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar, e dos ensinos básico e secundário, cuja contagem do tempo de serviço esteve congelada entre 2011 e 2017” – esquecendo o tempo que decorreu desde 29 de agosto de 2005 a 31 de dezembro de 2007 – e que estabelece:
A partir de 1 de janeiro de 2019, (…) são[-lhes] contabilizados 2 anos, 9 meses e 18 dias, a repercutir no escalão para o qual progridam a partir daquela data”. 
Na vigência do decreto-lei em causa, o BE e o PCP avocaram a apreciação parlamentar do mesmo diploma, tendo o PSD também vindo a reboque solicitar a sua apreciação parlamentar.
Entrementes, chegara ao Parlamento uma petição de cidadãos eleitores que se transformou em projeto de lei. Todas estas iniciativas foram discutidas em plenário, a 16 de abril, e baixaram, sem votação à Comissão Parlamentar de Educação e Ciência.
Já nessa ocasião se levantou na Assembleia da República, da parte da bancada do PS a hipótese da demissão do Primeiro-Ministro, o que veio a ser desmentido.     
A 2 de maio, em votação na especialidade da comissão parlamentar de educação e ciência, que discutiu e votou as propostas de alteração dos partidos ao decreto do Governo relativo à contagem do tempo de serviço congelado aos docentes, os partidos, à exceção do PS, que votou contra, aprovaram uma nova redação do artigo 1.º do diploma.
A primeira proposta aprovada foi a que definiu o modelo de recuperação integral do tempo de serviço, nomeadamente, os termos e forma, para efeitos de progressão  na carreira e respetiva valorização remuneratória ou outros efeitos a serem considerados em processo de negocial, prestado em funções docentes (…) num total de 3.411 dias, período de tempo em que se verificou o congelamento no qual não houve qualquer valorização remuneratória – os 9 anos, 4 meses e 2 dias (alguns observadores baralham e põem aqui 18 dias e 2 dias na contagem global) reclamados pela oposição ao Governo, incluindo os seus parceiros parlamentares desta legislatura.
Neste ponto, contra o PS entenderam-se esquerda e direita, que também se juntaram quanto à recuperação de parte deste tempo (os 2 anos, 9 meses e 18 dias) por inteiro e já este ano, quando o Governo queria a devolução, de forma faseada, até 2021. Caso não exista o montante suficiente para fazer face a esta despesa, passa para o Orçamento de 2020, mas com efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2019, como defendeu o PSD (embora com abstenção de PCP e BE) para contornar a norma-travão que proíbe a apresentação de projetos de lei ou propostas de alteração “que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”. 
As propostas do PCP e do BE, que determinavam um calendário para a recuperação de todo o tempo até 2025, foram chumbadas. Mas a proposta conjunta passou, sem definir calendário para a reposição – a única coisa que foi acordada foi que a partir de 2020 o Governo tem de estabelecer um “processo negocial” para efetivar a recuperação do tempo (o que era proposto pelo PSD e pelo CDS), tendo o PS ficado isolado também nesta votação.
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O PS foi acenando com o espectro da inconstitucionalidade do que estava a ser votado, mas o cuidado dos deputados da aliança ad hoc tiveram o cuidado de ir aprimorando o texto, de modo que os constitucionalistas que restaram públicas declarações se dividem sobre o juízo de inconstitucionalidade, pairando ainda dúvidas quanto à observância do princípio da igualdade, que não foram suscitadas aquando de aprovação semelhante pelas assembleias legislativas das duas regiões autónomas, pontificando numa o PSD e noutra o PS. Por isso, reapareceu a provável hipótese da demissão do Governo. E, enquanto o CDS se esfalfava a justificar-se perante os militantes e a tentar minimizar os danos da colagem à esquerda, com Pires de Lima a reagir que ou têm de estar com os contribuintes ou com “Mário Nogueira” (que a opinião pública acusa de radical esquerdista) e a comunicação social a veicular o texto das propostas votadas em grandes parangonas, António Costa convocou de emergência para a manhã de 3 de maio o núcleo duro do Conselho de Ministros a que agregou o Ministro da Educação e a secretária-geral adjunta do PS, para uma tonada de posição não consensual, que ficou no segredo dos deuses até à declaração do Primeiro-Ministro após uma audiência com o Presidente da República. Pelos vistos, o Chefe de Estado, que se antecipa a tudo e tudo sabe, desta feita terá sido apanhado de surpresa, ficando silenciosos os telefones e os assessores.
O Primeiro-Ministro, na sequência dos espirros demissionários de Carlos César, anunciou que se demitiria se o Parlamento em votação final global aprovasse a contagem do tempo integral do serviço dos professores, que julga injusta e financeiramente insustentável. Referiu que não fez o anúncio desta tomada de posição sem antes, por uma questão de lealdade, ter informado o Presidente da República. Reconhecendo que BE e PCP se mantêm iguais a si próprios nesta matéria, acusa a irresponsabilidade dos partidos à direita, que parecem querer voltar aos tempos de constrição do passado. De pronto, o Ministro das Finanças se disponibilizou para declarações à SIC no Jornal da Noite e o Ministro dos Negócios Estrangeiros fez o mesmo em relação ao Telejornal da RTP1. Ambos se desfiaram em considerações nas pegadas do Chefe do Governo tolerando a esquerda e atirando farpas à direita. Recordo que Centeno, ao ser questionado sobre o desenrolar dos acontecimentos da crise política, respondeu não saber, aduzindo que sabe prever as variáveis económicas, que isso estuda-se, mas não as cambiantes políticas. Ora, o rico esquece que, por vezes, os povos sofrem mais com as previsões dos economistas do que pelo devir político, que até resulta, muitas vezes, de opções tomadas a partir da análise de cenários económicos erradamente formulados. E isto também se pode estudar. Quantas vezes os opositores de tendências díspares e até opostas se juntam para derrubar o detentor do poder! O 2.º Governo de Sócrates sofreu o impacto duma coligação negativa de esquerda/direita no caso da avaliação de desempenho dos professores e no chumbo do PEC IV. E este Governo já teve, pelo menos, uma coligação negativa deste género: lembro a deliberação parlamentar que obrigou o Governo a abrir um concurso para os professores para o ano letivo de 2018/2019. Depois, quando um Chefe de Governo se sente ultrapassado pelo Parlamento e não quer seguir as suas determinações, é natural que tome a posição que tem ao seu alcance: a demissão. Fê-lo Sócrates, pode fazê-lo Costa. Mas Centeno cometeu um erro ao intrometer-se em questões de língua dizendo que democracia e demagogia só têm em comum as três primeiras letras (d, e, m). Esqueceu as duas últimas (i, a). Enfim, o subtexto era de acusação ao Parlamento de que estava a tomar posições demagógicas com vista ao voto em ano eleitoral.
O PS curte as dores do Primeiro-Ministro e seu secretário-geral. Catarina Martins, que acusou o Governo de tomar uma atitude precipitada e aproveitou o ensejo para contabilizar o que de bom se conseguiu com a iniciativa e o contributo do seu partido, veio dizer que não há margem para recuos. O PCP diz que não é um partido de voltar atrás e que não está comprometido com o Primeiro-Ministro, mas com o povo. Rui Rio, que, num primeiro momento, comentou que António Costa fez esta encenação por sentir que a campanha para as eleições europeias lhe está a correr mal e que o Governo mente ao dizer que a deliberação parlamentar baralha as contas, pois, não se acrescentou um tostão ao orçamento, agora está em consultas e prometeu uma declaração política para domingo dia 5 (sempre atrasado com é habito…). Assunção Cristas sustenta que o Governo perdeu a maioria que o apoiava, pelo que já não tem condições para governar, nesse sentido, disse ter pedido audiência ao Presidente da República e desafiou Costa a apresentar uma a moção de confiança e garantiu que, pelo CDS, o Governo já tinha caído, pois até apresentou duas moções de censura. E dezenas de milhares de funcionários da administração pública exigem do Parlamento uma solução igual à encontrada para os professores.
Os professores epidermicamente rejubilaram com a pesada derrota do Governo, mas endodermicamente as dúvidas mantêm-se: pode o reconhecimento da contagem integral do tempo de serviço congelado não passar duma medida meramente simbólica, pois deixar a concretização para os idos das negociações de futuros governos gera uma enorme e espessa bruma. E, embora Costa não tenha feito depender a sua decisão da atitude que Marcelo assuma face ao diploma do Parlamento, é de questionar que será feito do DL n.º 36/2019, de 15 de março, se o Presidente vier a vetar o diploma parlamentar ou se o Tribunal Constitucional o chumbar em sede de fiscalização prévia ou sucessiva da constitucionalidade? Mudarão, entretanto, PSD e CDS o seu sentido de voto? Ficarão bem na fotografia?
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Do ponto de vista político, a situação mercê outro tipo de considerandos. Num crescente isolamento a caminho de duas batalhas eleitorais decisivas, desgastado por sucessivos embates com as esquerdas inevitavelmente empenhadas em preservar os seus quinhões do eleitorado e a ligação aos sindicatos (recorde-se o que se passou com a Lei de Bases da Saúde, em que a proposta governamental alegadamente negociada com o BE e dada a conhecer por este partido eliminaria a prazo as PPP, só as deixando como supletivas), Costa recebeu da direita um inesperado pretexto para dramatizar a saída de cena. Com efeito, desgastado por difíceis negociações, condicionamentos incontornáveis da parte do Presidente da República, greves, avanços e recuos com passagem por Belém, o dossiê dos professores é a gota de água para a saída na varanda eleitoral. É eleitoralismo na certa, como dizem esquerdas e direitas, mas também a necessidade de clarificação. Enquanto o PSD e o CDS, enervando seus militantes com vocação a dirigentes (vg: Montenegro e Pires de Lima), jogam a cartada de agrado aos docentes esquecendo o que fizeram passar e sofrer aos funcionários públicos, em cujo universo se incluem os professores, e ao contribuinte em geral, o PS e o Governo insistem em que levaram a cabo a concretização da bandeira da direita, o equilíbrio das contas públicas (descida da dívida líquida, redução espantosa do défice e ligeiro crescimento económico…) e com algum desígnio de esquerda, alguma reposição de rendimentos. Por seu turno, PCP e BE, garantindo a fidelidade à matriz da esquerda, acenam com o compromisso com o povo e pregam o contributo que deram à causa da governação, dizendo que ainda teria sido tudo melhor se o PS não se encostasse tanto à direita. E vamos ouvir repetidas vezes o PS dizer que equilibrámos as contas, cresceu a economia, reduzimos a dívida, repusemos rendimento, não fizemos orçamentos retificativos, ganhámos boa imagem no exterior – pelo que não podemos voltar ao tempo da constrição provocada pela crise económica interna e externa, com alguns irresponsavelmente querem. E alguns socialistas cantam a morte da “geringonça”!           
É calculista a posição do Governo, empenhado na narrativa das boas finanças que foi o seu principal trunfo político e capital de credibilização externa, como é eleitoralista a posição do PSD e do CDS, que lhes poderá sair cara. Se inverteram a votação assumida no Orçamento do Estado para 2019, como vão explicar as razões e o calendário do alinhamento com BE e PCP?
E, sobre a questão de fundo, fica afinal quase tudo por responder. O impacto financeiro sempre suscitou dúvidas, agravadas pelo facto de ser deixado em aberto um calendário a trabalhar por futuros governos. Mesmo que não influa na execução orçamental deste ano, deixa o encargo de inscrição de verba avultada para novos orçamentos, o que potencia o aumento de despesa sem acautelar a contrapartida em receitas, que provêm basicamente dos impostos. E não se esperam, nesta fase, muitas lágrimas pelo dinheiro que vai para a banca ou para alimentar a corrupção e vícios similares e a justiça lancinante para com os professores ficará esquecida em tempo eleitoral. Enfim, PSD e CDS piscam o olho aos professores, sem se comprometerem com a substância das contas, e até pensarão que estão a redimir-se do mal que fizeram à classe, quando o pior mal aos funcionários públicos ainda foi do tempo de Sócrates. PSD/CDS fizeram mal a todos, menos aos mais ricos, e sobrecarregaram a escola. Mais um problema para o próximo executivo, que será resolvido negativamente se for apoiado por uma maioria parlamentar estável. E o futuro começará a jogar-se na votação final do diploma, entre 10 e 15 de maio.
Um governo gerado pela centralidade do Parlamento é vítima da mesma centralidade. Mudam-se os tempos… Morrerá a solução governativa à esquerda? Virá, por milagre uma direita pujante a contrariar o fenómeno espanhol? Virá por aí um bloco central em versão light?
O voto o dirá!
2019.05.04 – Louro de Carvalho

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