Dá-me a impressão de que os únicos
partidos políticos que não andaram nem para a frente nem para trás nesta
matéria foram o BE e o PCP. O próprio Primeiro-Ministro o reconheceu aquando da
sua declaração aos jornalistas no dia 3 de maio, mas esqueceu-se de dizer que o
seu PS voltou atrás, porquanto, em outubro de 2017,
o PS votou a favor do projeto de resolução que recomenda ao Governo a contagem
integral do tempo de serviço congelado nas carreiras da administração pública
em que não há lugar a promoções, tendo o mesmo ficado estipulado, por opção de
PS (e
Governo),
BE, PVP e PEV, na Lei do OE (Orçamento do Estado) para 2018 e na Lei do OE para 2019. Assim,
o art.º 19.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, estipula:
“A expressão
remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias
integradas em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição
remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço
legalmente estabelecido para o efeito, é considerada em processo negocial com
vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a
sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”.
De igual modo, o art.º 17.º da Lei n.º
78/2018, de 31 de dezembro, repete a substância e a dosagem quase ipsis verbis:
“A expressão
remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias
integrados em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição
remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de
serviço legalmente estabelecido para o efeito, é objeto de negociação sindical,
com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a
sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”.
O Governo tentou, antes da entrada em
vigor desta segunda lei, dar-lhe cumprimento ensaiando a farsa negocial que acabou pela apresentação a Belém dum
decreto-lei que o Presidente vetou apontando para a negociação na vigência da
lei do orçamento. E o Governo reagiu com nova ronda negocial que deixou tudo na
mesma, levando-o a apresentar ao Presidente, que o promulgou, o Decreto-Lei n.º 36/2019, de
15 de março ,
que “regula o modelo de
recuperação do tempo de serviço dos docentes de carreira dos estabelecimentos
públicos de educação pré-escolar, e dos ensinos básico e secundário, cuja
contagem do tempo de serviço esteve congelada entre 2011 e 2017” – esquecendo o
tempo que decorreu desde 29 de agosto de 2005 a 31 de dezembro de 2007 – e que estabelece:
“A partir de 1 de
janeiro de 2019, (…) são[-lhes] contabilizados 2 anos, 9 meses e 18 dias, a
repercutir no escalão para o qual progridam a partir daquela data”.
Na vigência do decreto-lei em causa, o BE
e o PCP avocaram a apreciação parlamentar do mesmo diploma, tendo o PSD também
vindo a reboque solicitar a sua apreciação parlamentar.
Entrementes, chegara ao Parlamento uma
petição de cidadãos eleitores que se transformou em projeto de lei. Todas estas
iniciativas foram discutidas em plenário, a 16 de abril, e baixaram, sem
votação à Comissão Parlamentar de Educação e Ciência.
Já nessa ocasião se levantou na Assembleia
da República, da parte da bancada do PS a hipótese da demissão do
Primeiro-Ministro, o que veio a ser desmentido.
A 2 de maio, em votação na
especialidade da comissão parlamentar de educação e ciência, que discutiu e
votou as propostas de alteração dos partidos ao decreto do Governo relativo à
contagem do tempo de serviço congelado aos docentes, os partidos, à exceção do
PS, que votou contra, aprovaram uma nova redação do artigo 1.º do diploma.
A primeira proposta aprovada foi a
que definiu “o modelo de
recuperação integral do tempo de serviço, nomeadamente, os termos e forma, para
efeitos de progressão na carreira e respetiva valorização remuneratória
ou outros efeitos a serem considerados em processo de negocial, prestado em
funções docentes (…) num total de 3.411 dias, período de tempo em que se
verificou o congelamento no qual não houve qualquer valorização remuneratória” – os 9 anos, 4
meses e 2 dias (alguns observadores baralham e põem aqui 18 dias e 2 dias na
contagem global) reclamados pela oposição ao Governo, incluindo os seus
parceiros parlamentares desta legislatura.
Neste ponto, contra o PS
entenderam-se esquerda e direita, que também se juntaram
quanto à recuperação de parte deste tempo (os 2 anos, 9 meses e 18 dias) por inteiro e já
este ano, quando o Governo queria a devolução, de forma faseada, até 2021. Caso
não exista o montante suficiente para fazer face a esta despesa, passa para o
Orçamento de 2020, mas com efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2019, como
defendeu o PSD (embora com abstenção de PCP e BE) para contornar a
norma-travão que proíbe a apresentação de projetos de lei ou propostas de
alteração “que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou
diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
As propostas do PCP e do BE, que
determinavam um calendário para a recuperação de todo o tempo até 2025, foram
chumbadas. Mas a proposta conjunta passou, sem definir calendário para a
reposição – a única coisa que foi acordada foi que a partir de 2020 o Governo
tem de estabelecer um “processo negocial” para efetivar a recuperação do tempo
(o que
era proposto pelo PSD e pelo CDS), tendo o PS ficado
isolado também nesta votação.
***
O PS foi acenando com o
espectro da inconstitucionalidade do que estava a ser votado, mas o cuidado dos
deputados da aliança ad hoc tiveram o
cuidado de ir aprimorando o texto, de modo que os constitucionalistas que
restaram públicas declarações se dividem sobre o juízo de
inconstitucionalidade, pairando ainda dúvidas quanto à observância do princípio da igualdade, que não foram suscitadas aquando de
aprovação semelhante pelas assembleias legislativas das duas regiões autónomas,
pontificando numa o PSD e noutra o PS. Por isso, reapareceu a provável hipótese
da demissão do Governo. E, enquanto o CDS se esfalfava a justificar-se perante
os militantes e a tentar minimizar os danos da colagem à esquerda, com Pires de
Lima a reagir que ou têm de estar com os contribuintes ou com “Mário Nogueira”
(que a opinião pública acusa de radical esquerdista) e a comunicação social
a veicular o texto das propostas votadas em grandes parangonas, António Costa
convocou de emergência para a manhã de 3 de maio o núcleo duro do Conselho de
Ministros a que agregou o Ministro da Educação e a secretária-geral adjunta do
PS, para uma tonada de posição não consensual, que ficou no segredo dos deuses
até à declaração do Primeiro-Ministro após uma audiência com o Presidente da
República. Pelos vistos, o Chefe de
Estado, que se antecipa a tudo e tudo sabe, desta feita terá sido apanhado de
surpresa, ficando silenciosos os telefones e os assessores.
O Primeiro-Ministro, na
sequência dos espirros demissionários de Carlos César, anunciou que se
demitiria se o Parlamento em votação final global aprovasse a contagem do tempo
integral do serviço dos professores, que julga injusta e financeiramente
insustentável. Referiu que não fez o anúncio desta tomada de posição sem antes,
por uma questão de lealdade, ter informado o Presidente da República.
Reconhecendo que BE e PCP se mantêm iguais a si próprios nesta matéria, acusa a
irresponsabilidade dos partidos à direita, que parecem querer voltar aos tempos de constrição do passado. De
pronto, o Ministro das Finanças se disponibilizou para declarações à SIC no Jornal da Noite e o Ministro dos Negócios Estrangeiros fez o mesmo
em relação ao Telejornal da RTP1. Ambos se desfiaram em
considerações nas pegadas do Chefe do Governo tolerando a esquerda e atirando
farpas à direita. Recordo que Centeno, ao ser questionado sobre o desenrolar
dos acontecimentos da crise política, respondeu não saber, aduzindo que sabe prever as variáveis
económicas, que isso estuda-se, mas não as cambiantes políticas. Ora, o rico
esquece que, por vezes, os povos sofrem mais com as previsões dos economistas
do que pelo devir político, que até resulta, muitas vezes, de opções tomadas a
partir da análise de cenários económicos erradamente formulados. E isto também
se pode estudar. Quantas vezes os opositores de tendências díspares e até
opostas se juntam para derrubar o detentor do poder! O 2.º Governo de Sócrates
sofreu o impacto duma coligação negativa de esquerda/direita no caso da
avaliação de desempenho dos professores e no chumbo do PEC IV. E este Governo
já teve, pelo menos, uma coligação negativa deste género: lembro a deliberação
parlamentar que obrigou o Governo a abrir um concurso para os professores para
o ano letivo de 2018/2019. Depois, quando um Chefe de Governo se sente
ultrapassado pelo Parlamento e não quer seguir as suas determinações, é natural
que tome a posição que tem ao seu alcance: a demissão. Fê-lo Sócrates, pode
fazê-lo Costa. Mas Centeno cometeu um
erro ao intrometer-se em questões de língua dizendo que democracia e demagogia só
têm em comum as três primeiras letras (d, e, m). Esqueceu as duas
últimas (i, a). Enfim, o subtexto era de acusação ao
Parlamento de que estava a tomar posições demagógicas com vista ao voto em ano
eleitoral.
O PS curte as dores do Primeiro-Ministro
e seu secretário-geral. Catarina Martins, que acusou o Governo de tomar uma
atitude precipitada e aproveitou o ensejo para contabilizar o que de bom se
conseguiu com a iniciativa e o contributo do seu partido, veio dizer que não há
margem para recuos. O PCP diz que não é um partido de voltar atrás e que não está comprometido com o
Primeiro-Ministro, mas com o povo. Rui Rio, que, num primeiro momento, comentou
que António Costa fez esta encenação por sentir que a campanha para as eleições
europeias lhe está a correr mal e que o Governo mente ao dizer que a
deliberação parlamentar baralha as contas, pois, não se acrescentou um tostão ao orçamento, agora está em consultas e prometeu
uma declaração política para domingo dia 5 (sempre atrasado com é
habito…). Assunção Cristas sustenta que o Governo perdeu a maioria
que o apoiava, pelo que já não
tem condições para governar, nesse sentido, disse ter pedido audiência ao Presidente da República e desafiou Costa a
apresentar uma a moção de confiança e garantiu que, pelo CDS, o Governo já
tinha caído, pois até apresentou duas moções de censura. E dezenas de milhares
de funcionários da administração pública exigem do Parlamento uma solução igual
à encontrada para os professores.
Os professores epidermicamente
rejubilaram com a pesada derrota do Governo, mas endodermicamente as dúvidas
mantêm-se: pode o reconhecimento da contagem integral do tempo de serviço congelado não passar duma medida meramente
simbólica, pois deixar a concretização para os idos das negociações de futuros
governos gera uma enorme e espessa bruma.
E, embora Costa não tenha feito depender a sua decisão da atitude que Marcelo assuma face ao diploma do Parlamento, é de questionar que
será feito do DL n.º 36/2019, de 15 de março, se o Presidente vier a vetar o
diploma parlamentar ou se o Tribunal Constitucional o chumbar em sede de
fiscalização prévia ou sucessiva da constitucionalidade? Mudarão, entretanto, PSD e CDS o seu sentido de
voto? Ficarão bem na fotografia?
***
Do ponto de vista
político, a situação mercê outro tipo de considerandos. Num crescente isolamento a caminho de
duas batalhas eleitorais decisivas, desgastado por sucessivos embates com as esquerdas
inevitavelmente empenhadas em preservar os seus quinhões do eleitorado e a
ligação aos sindicatos (recorde-se o que se passou com a Lei de Bases da Saúde, em que a
proposta governamental alegadamente negociada com o BE e dada a conhecer por
este partido eliminaria a prazo as PPP, só as deixando como supletivas), Costa recebeu da direita um inesperado
pretexto para dramatizar a saída de cena. Com efeito, desgastado por difíceis negociações,
condicionamentos incontornáveis da parte do Presidente da República, greves,
avanços e recuos com passagem por Belém, o dossiê dos professores é a gota de
água para a saída na varanda eleitoral. É eleitoralismo na certa, como dizem
esquerdas e direitas, mas também a necessidade de clarificação. Enquanto o PSD
e o CDS, enervando seus militantes com vocação a dirigentes (vg: Montenegro e Pires de Lima), jogam a cartada de agrado aos
docentes esquecendo o que fizeram passar e sofrer aos funcionários públicos, em
cujo universo se incluem os professores, e ao contribuinte em geral, o PS e o
Governo insistem em que levaram a cabo a concretização da bandeira da direita,
o equilíbrio das contas públicas (descida da dívida líquida, redução espantosa do défice e
ligeiro crescimento económico…) e com algum desígnio de esquerda, alguma reposição de rendimentos. Por
seu turno, PCP e BE, garantindo a fidelidade à matriz da esquerda, acenam com o
compromisso com o povo e pregam o contributo que deram à causa da governação,
dizendo que ainda teria sido tudo melhor se o PS não se encostasse tanto à
direita. E vamos ouvir repetidas vezes o PS dizer que equilibrámos as contas,
cresceu a economia, reduzimos a dívida, repusemos rendimento, não fizemos
orçamentos retificativos, ganhámos boa imagem no exterior – pelo que não
podemos voltar ao tempo da constrição provocada pela crise económica interna e
externa, com alguns irresponsavelmente querem. E alguns socialistas cantam a
morte da “geringonça”!
É calculista a posição do Governo, empenhado na narrativa das
boas finanças que foi o seu principal trunfo político e capital de credibilização
externa, como é eleitoralista a posição do PSD e do CDS, que lhes poderá sair
cara. Se inverteram a votação assumida no Orçamento do Estado para 2019, como
vão explicar as razões e o calendário do alinhamento com BE e PCP?
E, sobre a questão de fundo, fica afinal quase tudo por
responder. O impacto financeiro sempre suscitou dúvidas, agravadas pelo facto
de ser deixado em aberto um calendário a trabalhar por futuros governos. Mesmo
que não influa na execução orçamental deste ano, deixa o encargo de inscrição
de verba avultada para novos orçamentos, o que potencia o aumento de despesa
sem acautelar a contrapartida em receitas, que provêm basicamente dos impostos.
E não se esperam, nesta fase, muitas lágrimas pelo dinheiro que vai para a
banca ou para alimentar a corrupção e vícios similares e a justiça lancinante para
com os professores ficará esquecida em tempo eleitoral. Enfim, PSD e CDS piscam
o olho aos professores, sem se comprometerem com a substância das contas, e até
pensarão que estão a redimir-se do mal que fizeram à classe, quando o pior mal
aos funcionários públicos ainda foi do tempo de Sócrates. PSD/CDS fizeram mal a
todos, menos aos mais ricos, e sobrecarregaram a escola. Mais um problema para
o próximo executivo, que será resolvido negativamente se for apoiado por uma
maioria parlamentar estável. E o futuro começará a jogar-se na votação final do
diploma, entre 10 e 15 de maio.
Um governo gerado pela centralidade do Parlamento é vítima da
mesma centralidade. Mudam-se os tempos… Morrerá a solução governativa à
esquerda? Virá, por milagre uma direita pujante a contrariar o fenómeno
espanhol? Virá por aí um bloco central em versão light?
O voto o
dirá!
2019.05.04 –
Louro de Carvalho
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