sexta-feira, 10 de maio de 2019

Necessária uma conversão contínua e profunda dos corações


Foi publicada, a 9 de maio, a Carta Apostólica sob a forma de Motu ProprioVos estis lux mundi” que estabelece normas a ter em conta em caso de abuso sexual de menores (ou a eles equiparados na fragilidade) por parte de clérigos e membros de IVCSVA (Institutos de Vida Consagrada ou de Sociedades de Vida Apostólica). Com efeito, recorda o Papa que estes crimes ofendem a Deus, “causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade”.
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A exigência decorrente da espiritualidade e a pertinência das normas
As normas tornam-se necessárias face à gravidade da matéria e ao número estrondoso de casos que ocorrem nas famílias, em instituições (públicas e privadas) e em diversos patamares da sociedade, sendo que os factos imputáveis àqueles a quem se destina o presente documento são excessivos para o que seria de esperar de quem está especialmente vocacionado para um estado de vida em que deve brilhar a condição de discípulos de Cristo e, consequentemente, a de apóstolos para o mundo. E essa condição sintetiza-se no que disse Jesus: “Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte” (Mt 5,14). Isto postula a formação da consciência de cada fiel em ser chamado “a ser exemplo luminoso de virtude, integridade e santidade” e “a dar testemunho concreto da fé em Cristo na nossa vida e, de modo particular, na nossa relação com o próximo”. E, se as normas são necessárias, elas são insuficientes para evitar que tais fenómenos aconteçam, porque é urgente, antes de mais, “uma conversão contínua e profunda dos corações” concretizada em “ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja” que garantam, pela santidade pessoal e empenho moral, “a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja”. Mas, para esta conversão, é necessária a graça do Espírito Santo derramado nos corações, que devemos invocar, pois Jesus nos assegurou “Sem Mimnada podeis fazer” (Jo 15,5). E, por outro lado, colhendo as lições do passado, importa “olhar com esperança para o futuro”.
A responsabilidade por provocar tal conversão recai, antes e mais, sobre os Bispos, como sucessores dos Apóstolos, a quem Deus incumbe do governo pastoral do seu povo e de quem exige o empenho de seguir de perto os passos do Mestre. E, citando o Vaticano II, diz o Papa:
Na realidade, em virtude do seu ministério, eles regem ‘as Igrejas particulares que lhes foram confiadas como vigários e legados de Cristo, por meio de conselhos, persuasões, exemplos, mas também com autoridade e poder sagrado, que exercem unicamente para edificar o próprio rebanho na verdade e na santidade, lembrados de que aquele que é maior se deve fazer como o menor, e o que preside como aquele que serve (Const. Lumen gentium, 27).”.
E a mesma responsabilidade recai, segundo a condição de cada um, em todos aqueles que “assumem ministérios na Igreja, professam os conselhos evangélicos ou são chamados a servir o povo cristão”. Por conseguinte, devem adotar-se “procedimentos tendentes a prevenir e contrastar estes crimes que atraiçoam a confiança dos fiéis. É um compromisso eclesial e “expressão da comunhão que nos mantém unidos, na escuta mútua e aberta às contribuições de todos aqueles que têm a peito este processo de conversão”.
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Do teor das normas
As normas em causa, formuladas ad experimentum e em vigor a partir de 1 de junho, aplicam-se em caso de “assinalações” relativas a clérigos ou a membros de Institutos de Vida Consagrada ou de Sociedades de Vida Apostólica, por delitos contra o 6.º mandamento do Decálogo que consistam; em forçar alguém, com violência, ameaça ou abuso de autoridade, a realizar ou sofrer atos sexuais; em realizar atos sexuais com um menor ou pessoa vulnerável; em produzir, exibir, possuir ou distribuir (inclusive por via telemática) material pornográfico infantil, bem como em recrutar ou induzir um menor ou pessoa vulnerável a participar em exibições pornográficas.
As normas abrangem também os atos ou omissões dos respetivos responsáveis pelos procedimentos se estes incorrerem em ações ou omissões tendentes a interferir ou a contornar as investigações civis ou as investigações canónicas, administrativas ou criminais, contra um clérigo ou um religioso, relativas aos delitos em causa.
Tomando em consideração as indicações adotadas pelas respetivas Conferências Episcopais e órgãos congéneres, as Dioceses ou as Eparquias, individualmente ou em conjunto, “devem estabelecer, dentro de um ano a partir da entrada em vigor destas normas, um ou mais sistemas estáveis e facilmente acessíveis ao público para apresentar as assinalações, inclusive através da instituição duma peculiar repartição eclesiástica” e informar o Representante Pontifício de que foram instituídos os referidos sistemas. Estas informações são tuteladas e tratadas de modo a garantir a sua segurança, integridade e confidencialidade nos termos dos cânones 471-2.° CIC e 244-§ 2, 2.° CCEO (guardando segredo nos limites e no modo estabelecidos pelo direito ou pelo Bispo).
A assinalação deve conter os elementos o mais possível detalhados, tais como indicações de tempo e local dos factos, das pessoas envolvidas ou informadas, bem como qualquer outra circunstância que possa ser útil para assegurar uma cuidadosa avaliação dos factos.
A não ser nos casos atinentes a clérigos com alta responsabilidade na hierarquia (Cardeais, Patriarcas, Bispos e Legados do Romano Pontífice; clérigos que se ocupam ou ocuparam do governo pastoral duma Igreja particular ou equivalente, durante munere; e moderadores supremos de IVCSVA de direito pontifício, durante munere) o ordinário que recebeu a assinalação transmite-a de pronto ao Ordinário do lugar da ocorrência, bem como ao Ordinário próprio da pessoa indicada, os quais procedem de acordo com o direito segundo o previsto para o caso específico. Para estes efeitos, são equiparadas às Dioceses as Eparquias, e ao Ordinário é equiparado o Hierarca.
Ressalvado o estabelecido para os preditos clérigos com alta responsabilidade na hierarquia, sempre que um clérigo ou membro dum IVCSVA saiba ou tenha fundados motivos para supor que foi praticado um dos atos em referência, tem a obrigação de assinalar prontamente o facto ao Ordinário do lugar onde teriam ocorrido os factos ou a outro Ordinário (vigário geral ou episcopal). Estão livres desta obrigação: clérigos que tenham conhecimento em razão do exercício do sagrado ministério; magistrados civis, médicos, parteiras, advogados e outros, vinculados ao segredo profissional; e quem temer que do seu testemunho resulte infâmia ou vexação perigosa para si ou cônjuge, consanguíneos ou afins próximos.
Qualquer pessoa pode apresentar assinalação respeitante às condutas em causa, servindo-se das modalidades referidas ou de outro modo apropriado. Também podem as informações ser adquiridas ex officio. Quando a assinalação atinge um dos preditos clérigos com alta responsabilidade na hierarquia, é encaminhada para a autoridade individuada. A assinalação pode sempre ser dirigida à Santa Sé, diretamente ou através do Representante Pontifício. A não ser nos casos acima referidos, o facto de fazer uma denúncia não constitui uma violação do sigilo profissional. São proibidos danos, retaliações ou discriminações pelo facto de alguém ter feito uma assinalação e podem equivaler à conduta que o presente documento tem em vista, a não ser que se trate de denúncia caluniosa, que sujeita o infrator a sanções pelo crime de falsidade. E não pode ser imposto, a quem assinala, qualquer ónus de silêncio a respeito do conteúdo da mesma.
No atinente aos cuidados a prestar às pessoas, as autoridades eclesiásticas empenham-se em que sejam tratados com dignidade e respeito quantos afirmam ter sido ofendidos e suas famílias, proporcionando-lhes: acolhimento, escuta e acompanhamento, inclusive através de serviços específicos; assistência espiritual; e assistência médica, terapêutica e psicológica de acordo com o caso específico. Ademais, são tuteladas a imagem e a esfera privada das pessoas envolvidas, bem como a confidencialidade dos dados pessoais.
O Dicastério competente é a CDF (Congregação para a Doutrina da Fé), para os delitos a ela reservados pelas normas em vigor; e, nos outros casos, no que é da respetiva competência estabelecida na lei própria da Cúria Romana: a Congregação para as Igrejas Orientais; a Congregação para os Bispos; a Congregação para a Evangelização dos Povos; a Congregação para o Clero; e a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Porém, a fim de se assegurar a melhor coordenação, o Dicastério competente informa acerca da assinalação e do resultado da investigação a Secretaria de Estado e os outros Dicastérios diretamente interessados. As comunicações previstas entre o Metropolita e a Santa Sé realizam-se através do Representante Pontifício.
No caso de assinalação relativa a um Bispo da Igreja Latina, a autoridade recetora transmite-a quer à Santa Sé quer ao Metropolita da Província Eclesiástica onde tem domicílio a pessoa indicada. Se a assinalação se referir ao Metropolita ou estiver vacante a Sé Metropolitana, será transmitida à Santa Sé, bem como ao Bispo sufragâneo mais antigo por promoção, a quem se aplicam as sucessivas disposições relativas ao Metropolita. Caso a assinalação se refira a um Legado Pontifício, é transmitida diretamente à Secretaria de Estado. No caso de assinalação relativa a Bispo das Igrejas Orientais, ou a Bispo duma Igreja Patriarcal, Arquiepiscopal Maior ou Metropolitana sui iuris, é transmitida ao respetivo Patriarca, Arcebispo Maior ou Metropolita da Igreja sui iuris. Se se referir a Metropolita duma Igreja Patriarcal ou Arquiepiscopal Maior, que exerce o cargo dentro do território destas Igrejas, é transmitida ao respetivo Patriarca ou Arcebispo Maior. A autoridade que recebeu a assinalação transmite-a também à Santa Sé. Se a pessoa assinalada for Bispo ou Metropolita fora do território da Igreja Patriarcal, Arquiepiscopal Maior ou Metropolitana sui iuris, a assinalação é transmitida à Santa Sé. No caso de a assinalação se referir a Patriarca, Arcebispo Maior, Metropolita duma Igreja sui iuris ou Bispo das outras Igrejas Orientais sui iuris, é transmitida à Santa Sé. As sucessivas disposições relativas ao Metropolita aplicam-se à autoridade eclesiástica a quem é transmitida a assinalação.
A não ser que a assinalação se revele claramente infundada, o Metropolita solicita prontamente ao Dicastério competente o encargo para iniciar a investigação. Se o Metropolita considerar a assinalação claramente infundada, informa disso o Representante Pontifício. E o Dicastério provê sem demora (e em todo o caso dentro de 30 dias a contar da receção da primeira assinalação pelo Representante Pontifício ou da solicitação do encargo por parte do Metropolita), fornecendo as instruções sobre como proceder no caso em concreto. Se o Dicastério o considerar oportuno, confia a investigação a pessoa diferente do Metropolita, informando-o. O Metropolita entrega todas as informações e os documentos relevantes à pessoa encarregada pelo Dicastério. E as sucessivas disposições relativas ao Metropolita aplicam-se à pessoa encarregada da investigação.
O Metropolita, obtido o encargo do Dicastério e respeitando as instruções, pessoalmente ou através duma ou mais pessoas idóneas: recolhe as informações relevantes a propósito dos factos; toma conhecimento das informações e documentos necessários para a investigação guardados nos arquivos eclesiásticos; obtém, se necessária, a colaboração doutros Ordinários ou Hierarcas; e solicita informações aos indivíduos e instituições (mesmo civis) capazes de fornecer elementos úteis para a investigação. Se for necessário ouvir o menor ou a pessoa vulnerável, o Metropolita adota modalidades adequadas, que tenham em conta o seu estado. Se houver fundados motivos para considerar que possam ser subtraídas ou destruídas informações ou documentos relativos à investigação, o Metropolita adota as medidas necessárias para a sua preservação. E, mesmo quando se serve doutras pessoas, o Metropolita permanece responsável pela direção e realização das investigações, bem como pela execução precisa das instruções do Dicastério competente, a quem transmite, de 30 em 30 dias, relatório informativo sobre o estado das investigações. Tenha-se em conta que à pessoa sob investigação é reconhecida a presunção de inocência.
O Metropolita, assistido por notário escolhido livremente nos termos do direito, é obrigado a agir de forma imparcial e livre de conflito de interesses. Se considerar que se encontra em conflito de interesses ou não é capaz de manter a imparcialidade necessária à integridade da investigação, é obrigado a abster-se e referir a circunstância ao Dicastério.
O Metropolita, se solicitado pelo Dicastério, informa a pessoa da investigação contra ela, ouve-a sobre os factos e convida-a a apresentar defesa, sendo que ela pode servir-se dum procurador.
De acordo com eventuais diretrizes da Conferência Episcopal ou organismo equivalente, os Bispos da respetiva Província (individualmente ou em conjunto) podem elaborar listas de pessoas qualificadas, dentre as quais o Metropolita pode escolher as mais idóneas para o assistirem na investigação, conforme as necessidades do caso e, em particular, tendo em conta a cooperação que pode ser oferecida pelos leigos. Mas é livre para escolher outras pessoas igualmente qualificadas. Quem assista o Metropolita na investigação presta juramento de cumprir digna e fielmente o encargo e é obrigado a agir de forma imparcial e livre de conflito de interesses; e, se estes existirem, é obrigado a abster-se e referir a circunstância ao Metropolita.
As investigações devem ser concluídas no prazo de 90 dias (ou no indicado pelas instruções do Dicastério), podendo o Metropolita pedir a extensão do prazo ao Dicastério competente.
Se os factos ou as circunstâncias o exigirem, o Metropolita propõe ao Dicastério competente a adoção de disposições ou de medidas cautelares apropriadas contra o investigado.
Pode ser estabelecido um Fundo para sustentar as despesas com as investigações, administrado segundo as normas do direito. A pedido do Metropolita designado, os fundos necessários à investigação em concreto são disponibilizados pelo administrador do Fundo, salvaguardado o dever de apresentar a este um relatório financeiro no fim da investigação.
Completada a investigação, o Metropolita transmite as atas ao Dicastério competente juntamente com o seu próprio votum sobre os resultados da investigação e dando resposta a eventuais quesitos nas instruções do Dicastério. E, se não houver sucessivas instruções do Dicastério, as faculdades do Metropolita cessam quando a investigação estiver completada.
No respeito pelas instruções do Dicastério, o Metropolita, se lhe for pedido, informa do resultado da investigação a pessoa que afirma ter sido ofendida ou os seus representantes legais.
O Dicastério competente, a não ser que decida organizar uma investigação suplementar, procede nos termos do direito, de acordo com o previsto para o caso específico. Todas estas normas se aplicam sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada local pelas leis estatais, particularmente as relativas a eventuais obrigações de assinalação às competentes autoridades civis.
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Concluindo
Desta súmula, que não substitui a leitura integral do documento pontifício em referência, ressalta a obrigação da denúncia dos abusos praticados por clérigos e membros dos IVCSVA, bem como a de as dioceses disporem de estruturas adequadas à sua receção e análise. Sobressai ainda a proibição da retaliação contra quem tenha feito a denúncia, a não ser que se trate de acusação falsa ou caluniosa, bem como a responsabilização de bispos que sejam acusados de “ações ou omissões” que visem interferir ou contornar as investigações civis, canónicas, administrativas ou criminais nestes casos, devendo, ao invés cooperar com as autoridades civis.       
Por outro lado, fica evidenciado o dever de apoio em várias vertentes às vítimas e seus familiares, bem como a presunção da inocência dos indiciados e do seu direito à defesa.
Porém, o documento, que chama a atenção para a observância de cânones da lei eclesiástica (designadamente o CIC e o CCEO) que acautelam o dever do sigilo e a dispensa de denúncia, quando declara que a denúncia, nestes casos, não constitui uma violação do sigilo profissional, deixa a dúvida sobre quando há ou não violação do sigilo.
Não obstante, é de ter em conta que as normas em causa foram estabelecidas ad experimentum, que não são suficientes as, sendo necessária a provocação da mudança de mentalidades, atitudes e comportamentos e que a Carta Apostólica se estriba na doutrina decorrente do Evangelho, quer na índole luminar do discípulo, quer na responsabilidade daqueles através de quem venha o escândalo ao mundo.
Importa, assim, que o sensus Ecclesiae se desenrole e futuros documentos esclareçam as dúvidas fora do ambiente de tensão provocado pelo desfie dos acontecimentos.
2019.05.10 – Louro de Carvalho

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