Todos os dias, no templo e nas casas, os apóstolos não cessavam de
ensinar e de anunciar a Boa-Nova de Jesus, o Messias (vd At 5,42). É o que nos diz o
livro dos Atos dos Apóstolos a encerrar um capítulo problemático da história da
comunidade primitiva dos seguidores de Jesus.
Com efeito, depois de denunciada a mentira de Ananias e Safira ao
Espírito Santo (alegadamente ofereciam aos apóstolos todo o produto da venda
dum campo, quando a venda fora por valor superior), são relatados factos atinentes à
palavra e aos prodígios que os apóstolos faziam, induzindo o ajuntamento “em
massa [de] homens e mulheres, que acreditavam no Senhor” (id, 14).
Entretanto, o
Sumo Sacerdote e os seus sequazes deitaram as mãos aos Apóstolos, metendo-os na
prisão. Mas, de noite, o Anjo do Senhor abriu-lhes as portas, conduziu-os para
fora e mandou-os para o templo a anunciar ao povo a Palavra da Vida. E eles, obedientes
a estas ordens, entraram no templo de manhã cedo e começaram a ensinar. Os que
mandaram prender os apóstolos convocaram o Sinédrio e o Senado e mandaram
buscar os apóstolos à cadeia. Porém, os guardas, não os encontrando na prisão,
voltaram e declararam: ‘Encontrámos a
cadeia fechada com toda a segurança e os guardas de sentinela à porta, mas,
depois de a abrirmos, não encontrámos ninguém no interior’. Então os sumos
sacerdotes e o comandante do templo numa grande perplexidade perguntavam a si
próprios o que poderia significar aquilo. Entrementes, alguém veio dizer que
aqueles homens estavam no templo a ensinar o povo. O comandante do templo
dirigiu-se para lá com os guardas e trouxeram os Apóstolos à presença do
Sinédrio, não à força, pois receavam ser apedrejados pelo povo. E o Sumo
Sacerdote sentenciou: “Proibimo-vos
formalmente de ensinardes nesse nome, mas vós enchestes Jerusalém com a vossa
doutrina e quereis fazer recair sobre nós o sangue desse homem”.
Aí, Pedro e
os Apóstolos responderam: “Importa mais
obedecer a Deus do que aos homens”. E explicaram com entusiasmo:
“O
Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a quem matastes, suspendendo-o num
madeiro. Foi a Ele que Deus elevou, com a sua direita, como Príncipe e
Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados.
E nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo, que
Deus tem concedido àqueles que lhe obedecem.”.
“Obedecer” é um verbo que no latim se dizia “oboedire”, de ob+audire (pôr-se diante de
alguém para escutar, ouvir; e quem ouve crê e, crendo, faz o que lhe é mandado). Em grego,
dizia-se, por exemplo, “peitharkheîn”, de peithein+arkeîn
(entregar-se
docilmente, submeter-se
a quem tem o poder de mandar).
Gamaliel aconselhou o Sinédrio a que deixasse correr, pois, se aquilo
fosse mera obra humana, acabaria por si própria (como outras de que reza a experiência), mas se fosse obra
de Deus, não conseguiriam destruir aqueles homens sem o risco de guerra contra
Deus. As suas palavras
prudenciais foram tidas em conta: chamaram os apóstolos, mandaram-nos açoitar, proibiram-nos de falarem no nome
de Jesus e libertaram-nos. E os apóstolos saíram da sala cheios de alegria por
terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus,
quiçá lembrados da bem-aventurança profética de Jesus e respetiva exortação a
eles dirigidas:
“Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e,
mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu; pois
também assim perseguiram os profetas que vos precederam.” (Mt 5,11-12).
***
Enviados por
Jesus como testemunhas de quanto Lhe aconteceu e movidos pelo Espírito Santo,
os apóstolos não podiam calar-se, tinham que falar, na certeza de que os
prodígios, sempre que necessário, corroborariam a palavra da Verdade e o
ensinamento de que a todos os homens é oferecido o arrependimento e o perdão
dos pecados, pregados em nome do Messias Senhor, que é exatamente Aquele a quem
os chefes de Israel dera a morte crucificando-O, mas que Deus Pai ressuscitou e
tornou o Senhor.
***
Os apóstolos
nunca mais esqueceriam as aparições do Ressuscitado: a do dia da Ressurreição,
em que Ele lhes deixou a sua paz como prometera no fim da Ceia, mostrou as
marcas da Paixão, soprou sobre eles insuflando-lhes o Espírito Santo e lhes
confiou a missão de perdoar (cf Jo 20,19-23); a
de oito dias depois, em que mostrou em especial a Tomé, incrédulo, as marcas da
Paixão e o desafiou a meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no lado aberto,
ao que o até ali incrédulo se prostrou numa atitude de fé, espanto e adoração, “Meu Senhor e meu Deus”, tendo Jesus
acabado por exortar à fé sem a necessidade de ver (cf Jo 20,24-29); e a da pesca milagrosa (Jo 21,1-14), que se comenta a seguir.
A perícopa em
referência, carregada de simbolismo teológico, mostra como o Ressuscitado se
presentifica no quotidiano da comunidade e lhe assegura a eficácia da missão.
Começa o
trecho evangélico por nos apresentar um grupo de sete discípulos. Como o número
sete é um número simbólico da totalidade, nestes sete discípulos estão
englobados todos os discípulos de Cristo. Estes sete alinharam na iniciativa de
Pedro, porque este tem um lugar relevante na comunidade, e vão pescar. Também
esta pesca tem o seu simbolismo. Com efeito, Jesus, aquando da escolha dos
discípulos, disse que a sua missão é de serem pescadores (haleeîs) de homens (cf Mc 1,17; Mt 4,19; Lc 5,10), pois, à imagem da missão de Jesus, consiste em
tirar todos os homens do mar do sofrimento e da escravidão em que vivem. O mar
era, para os judeus, o lugar dos monstros, forças e espíritos demoníacos que
procuravam roubar a vida e a felicidade dos homens. Assim, agora ressuscitado,
Jesus retoma e reforça a missão haliêutica de Pedro e de todos os discípulos: a
de pescar/tirar/libertar os homens do poder do mal e das forças da morte.
Recorde-se
que, enquanto Mateus e Marcos escrevem “haleeîs”
para chamar pescadores e pescadores de homens aos discípulos, segundo o dito do
Senhor, Lucas (cf Lc 5,10) emprega a frase “apó toû nyn anthrópous ésêi zôgrôn” (doravante serás o que apanha vivos homens,
ou os reanima – em conformidade com o particípio presente do berbo zogréô), referente a Simão Pedro.
Os apóstolos
quiseram realizar esta pesca de noite, na ausência de Jesus. E ela não
resultou, porque sem Ele nada podemos
fazer (cf Jo 15,5). É a sua presença que garante a
eficácia da missão e é à luz do dia, sob a luz de Cristo que ela se desenvolve,
ouvindo, vendo e falando claro. Assim e apesar da sensação da noite da ausência
de Jesus, não perdemos a esperança, porque o Senhor Ressuscitado não nos
abandona: torna-se presente na nossa vida permitindo que a noite ceda o seu
lugar ao romper da aurora de um novo dia e de um mundo novo.
Com a
presença do Senhor Ressuscitado e seguindo docilmente a sua palavra (obedecendo-Lhe), a missão não está condenada ao
fracasso, mas redunda em êxito. Visto que Jesus está presente e porque os discípulos
seguem as suas indicações: mesmo sem o terem reconhecido de pronto, os
discípulos executam a missão com êxito: pescam 153 grandes peixes (símbolo da totalidade da humanidade,
pois, ao tempo eram 153 as espécies de peixes conhecidas). Nestes termos, o texto deixa claro
que o êxito desta missão universal não se deve ao mero esforço humano, mas à
presença e à Palavra do Senhor Ressuscitado, embora nós tenhamos de fazer a
nossa parte. No entanto, esta presença é uma presença diferente. Jesus não
se coloca no barco onde os discípulos estão a pescar, mas em terra e continua a
interpelá-los e a convidá-los para terra, para a refeição que preparou, solicitando
que tragam algo do que pescaram. Ele não abandona a comunidade, mas no hoje da
história é a comunidade cristã – os discípulos de Jesus – a continuadora da
missão.
Outro dado
relevante a sublinhar é o ambiente evocador da eucaristia. Na verdade, quando
os discípulos puxaram as redes carregadinhas de peixes para terra, Jesus
convidou-os a comer do pão e dos peixes que Ele já tinha preparado, junto com
peixes que eles acabaram de pescar. Diz o evangelista: “Jesus
aproximou-Se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com os peixes”. É a mesma fórmula
utilizada na ocasião da multiplicação dos pães e dos peixes, na última ceia e
na refeição com os discípulos de Emaús, após a ressurreição. Desde os primeiros
tempos da Igreja, o pão foi referido à eucaristia, e o peixe foi sinal e contrassenha de Cristo e, por assimilação, dos
cristãos, que são fundamentalmente pessoas eucarísticas.
E outro aspeto
a sublinhar nesta perícopa é o facto de o discípulo predileto, modelo de todos
os discípulos de Jesus, ter reconhecido a presença do Senhor Jesus ao ver o
êxito da pesca. E isso deve-se a um fator determinante: o amor – amar, ser
amado e ter a consciência de ser amado. Como na visita ao sepulcro vazio, o
amor ajudou: “Viu e acreditou” (Jo 20,8). E será o amor praticado como Ele mandou que nos
tornará idóneos para reconhecer, à imagem do discípulo predileto, a presença do
Ressuscitado na simplicidade e banalidade do nosso dia a dia e na pessoa
daqueles e daquelas que precisam da nossa atenção, entrega e doação.
***
E, por falar
de amor com base da dinâmica da fé escutante, obediente, confiada e disponível
para a ação pastoral, é de considerar a perícopa que vem a seguir à pesca
milagrosa no capítulo 21 do 4.º Evangelho (Jo 21,14-19) e que mostra como o Ressuscitado, apesar das nossas negações e
traições, com o seu amor nos reabilita como suas testemunhas e arautos neste
mundo.
O belo
diálogo do Senhor com Pedro restabelece a relação de amor entre Pedro e Jesus e
onde o Senhor confia a Pedro a missão de apascentar o seu rebanho. Jesus pergunta,
por três vezes, a Pedro se O ama e, à medida que obtém uma resposta positiva,
confia-lhe o cuidado dos seus cordeiros, das suas ovelhas.
A tríplice
interrogação e a subsequente tríplice resposta constituem um claro paralelo às
três negações de Pedro na noite da Paixão. Com efeito, a relação de amor entre
Pedro e Jesus, quebrada pelo pecado, tem de ser restaurada. Porém, a iniciativa
desta restauração reconciliante não parte de Pedro, mas de Jesus. É Ele o
pastor que vem em busca da ovelha perdida.
Jesus volta a
chamar Pedro de “Simão, filho de João”.
Só há dois casos em que Jesus se dirige a Pedro deste modo: quando lhe impõe o
nome de Pedro (cf Jo 1,42); e aquando da confissão messiânica
de Pedro em Cesareia de Filipe e lhe confia a Igreja (vd Mt 16,16-19). Sendo assim, conclui-se que, neste
texto, se está a renovar e a corroborar a vocação/missão de Pedro. Jesus vai
confiar a Pedro a missão de apascentar o seu rebanho.
Não obstante,
para que Pedro possa desempenhar tal missão, foi sujeito a um exame sobre o
amor a Jesus, tendo de responder à questão: “Tu amas-Me?”, já que, para apascentar as ovelhas, que não são suas,
mas do Bom Pastor, tem de entrar pela porta do aprisco que é Jesus (cf Jo 10), estar e viver em comunhão de amor com Jesus.
É por isso
que a pergunta de Jesus a Pedro é uma pergunta sobre o amor. E não é um verbo qualquer
que Jesus utiliza. Jesus, nas duas primeiras vezes, utiliza segmento verbal agapâs me, ou seja, se Pedro ama a Jesus
com um amor divino, profundo, intelectual e gerador de comunidade e, por outro
lado, se O ama “mais do que estes”. O
pronome demonstrativo “estes” (tútôn, em genitivo do plural, igual para o
masculino, feminino e neutro) pode referir-se aos outros discípulos que estavam com Pedro e também se
pode referir a estas coisas, isto é, o trabalho de pescador. Assim, Jesus pode
estar a pedir a Pedro que deixe a sua vida habitual de pescador e se dedique
exclusivamente à missão do pastoreio do rebanho. Pedro respondeu à
pergunta: “Sim, Senhor, Tu sabes que Te
amo”. Contudo, o verbo grego que na resposta é traduzido por amar não é o
que aparece na pergunta de Jesus. Pedro responde com o amor de simples amizade
(philô se). Esta diferença de verbos mostra
que Pedro se conhece bem e deixou de ser orgulhoso. Não temos aqui a resposta
soberba que Pedro deu a Jesus na última ceia (cf Mt 26,36). A resposta de Pedro mostra, não só a consciência da sua
debilidade e do seu fracasso, mas também a vontade de, na sua debilidade, amar
Jesus até ao fim. E, na terceira pergunta de Jesus a Pedro, Jesus, condescende
e já não usa o verbo “agapáô”, mas o
verbo “philéô” (phlileîs me). E é a este Pedro débil que Jesus
confia o seu rebanho e convida ao seguimento, um seguimento até ao fim, até dar
a sua vida por Ele. E é Pedro, restabelecido no amor e consciente da responsabilidade
da missão de apascentar o rebanho, que anuncia a morte e a ressurreição de
Jesus e enfrenta todos os perigos, porque “deve
obedecer-se antes a Deus que aos homens” (cf At 5,29sss).
Foi Pedro quem proclamou, em nome dos companheiros, a morte e
a ressurreição de Jesus, em forma de denúncia profética e de testemunho
pessoal:
“Foi este Jesus que Deus ressuscitou, e disto
nós somos testemunhas. Tendo sido elevado pelo
poder de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou-o como
vedes e ouvis. Saiba toda a Casa de Israel, com absoluta
certeza, que Deus estabeleceu como Senhor e Messias a esse Jesus por vós
crucificado” (At 2,32-33.36).
***
Também agora em cada dia, mas sobretudo ao domingo, Jesus na eucaristia,
à imagem do ocorrido no evangelho, parte o pão que é o seu corpo e no-lo
entrega, nos convida ao amor que leva à descoberta da sua presença na nossa
vida e ao restabelecimento da comunhão de amor com Ele, tantas vezes rompida
pelas nossas negações, traições e pecados.
O que nos vale é a misericórdia divina, cujo anúncio faz parte integrante
do núcleo da missão da Igreja. A este respeito, escrevia o Papa Francisco na
bula Misericordiae vultus (Mv), pela qual convocava a Igreja para o Jubileu Extraordinário
da Misericórdia:
“A
Igreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A sua
vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu convicto anúncio.
Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia de
grandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a todos no grande
mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é
chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia,
professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo.” (Mv 25).
***
Assim, a liturgia
do 3.º Domingo da Páscoa convida-nos a prestar atenção ao modo como a Igreja
primitiva de Jerusalém testemunhava Cristo Ressuscitado e vivia a sua fé. Constituída
por pessoas que conheceram Jesus, testemunharam os Seus milagres e ouviram a
Sua pregação, enfrentava o ambiente de perseguição e preocupava-se em viver com
fidelidade o que Jesus ensinou. E a sua vivência ser de estímulo a que a Igreja
do nosso tempo, que nós integramos, e do lugar em que vivemos, examine a
fidelidade ao que Jesus ensinou, pois só merece o nome de Discípulo do Senhor aquele que procurar viver assim e se dispuser
ao apostolado por todos os meios que tenha e possa vir a ter ao seu alcance,
tentando entender o mundo e ver nele os sinais de Deus e insuflar-lhe o espírito
evangélico.
Ámen. Aleluia!
2019.05.05 – Louro de Carvalho
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