quinta-feira, 16 de maio de 2019

Extinção das espécies é consequência das ações humanas


Eis uma ideia que pairou na Conferência “Ciências e ações para a proteção das espécies – Novas Arcas de Noé para o Século XXI”, que decorreu na Casina Pio IV, na Cidade do Vaticano, de 3 a 14 de maio, em que os participantes debateram Ciências e ações para proteção das espécies”, tendo como pano de fundo a temática da encíclica papal Laudato si’.
A este respeito, a Pontifícia Academia das Ciências difundiu um comunicado em que assume que a predita encíclica do Papa Francisco, sobre o cuidado da Casa Comum, “representa uma forte crítica ao consumismo moderno e aos seus efeitos catastróficos sobre a biodiversidade”, nos adverte “para a ecologia do planeta em via de extinção e ressalta a necessidade de que a ciência e a política se empenhem com as autoridades religiosas e morais para rever a situação atual e propor estratégias conjuntas voltadas a mudar a trajetória da humanidade”.
Como resposta a essa crítica a Pontifícia Academia das Ciências declara que, “em linha de princípio, todas as principais religiões do mundo se esforçam para respeitar e preservar a natureza e podem concordar ações comuns para esse objetivo”.
Por outro lado, esclarece que o subtítulo “Arcas de Noé para o Século XXI” se refere à história bíblica da inundação destrutiva e a Noé que salva a humanidade e as espécies com a sua arca, segundo uma ordem de Deus (Gn 6-9). E, considerando a necessidade e a vantagem de incrementar a criação de novas arcas de Noé com vista à preservação das espécies, explicita:
O nosso interesse comum pela natureza leva-nos, hoje, a preservar as espécies nos jardins zoológicos e botânicos ameaçados pela destruição ambiental provocada pelo homem, incluindo as mudanças climáticas e a relativa perda de espécies. Neles, assim como nos museus de história natural, se podem estudar espécies de vida em extinção e ou extintas, de modo que a conservação possa ter uma base sólida.”.
Porém, o referido Dicastério da Cúria Romana sabe que as indicadas “Arcas de Noé” poderão não ser suficientes para prevenir completamente a ameaça de extinção de algumas espécies mediante a criação e o estudo de ilhas de proteção. Em todo o caso, está convicto de que “as comunidades mundiais que administram museus de história natural, jardins zoológicos e botânicos, e que se empenham na pesquisa neste campo, além de inspirarem milhões de visitantes, têm o potencial de se tornarem aliados catalíticos e significativos no impulso mundial à proteção das espécies e a conservação da natureza”.
Esta matéria cabe no quando dos conteúdos da Pontifícia Academia das Ciências, um organismo de âmbito internacional, multirracial na composição e não-sectário na escolha dos membros e cujo trabalho compreende seis grandes áreas: ciência fundamental; ciência e tecnologia de problemas globais; ciência para os problemas do mundo em desenvolvimento; política científica; bioética; e epistemologia.
Assim e neste rol de desafios atuais, é de recordar que a Pontifícia Academia das Ciências já se ocupou desses desafios, por exemplo, nas conferências “Humanidade sustentável, natureza sustentável: a nossa responsabilidade” (de 2 a 6 de maio de 2014), ainda antes da publicação da encíclica Laudato si’ (o que pode significar que a preocupação ecológica já estava a pairar na Academia antes da encíclica, respondendo às preocupações dos papas polaco e alemão); “Ciência e Sustentabilidade. Impacto dos conhecimentos científicos e da tecnologia sobre a sociedade humana e sobre seu ambiente” (de 25 a 26 de novembro de 2016); “Extinção biológica – Como salvar o mundo natural do qual dependemos?” (de 27 de fevereiro a q de março de 2017); e “A saúde das pessoas e a saúde do planeta: a nossa responsabilidade” (de 2 a 4 de novembro de 2017), com atenção particular às mudanças climáticas. Por isso, é natural que, na linha da continuidade institucional e prudencial, a presente conferência tenha recorrido às precedentes, às respetivas Declarações e às consultas relacionadas com o tema, como por exemplo as Declarações de Assis (1986): mensagens sobre a humanidade e sobre a natureza do ponto de vista do Budismo, do Cristianismo, do Hinduísmo, do Islão e do Judaísmo – marco simbólico do diálogo inter-religioso.
E o susodito comunicado, produzido no decurso da Conferência assegura que “desde o início, temos consciência de que o contexto mundial da extinção das espécies e da perda de biodiversidade no Antropoceno [a época em que humanos substituíram a natureza como a força ambiental dominante na Terra] é uma consequência das ações humanas, da concorrência no uso de terra e água, das transformações ambientais mundiais e das mudanças climáticas em particular, como debatido nas referidas Conferências da Pontifícia Academia das Ciências”.
Durante as conferências anteriores foi repetidamente calculado que cerca de um quinto de todos os organismos não bacterianos estará em perigo de extinção nas próximas décadas e que, daqui até ao final do século XXI, poder-se-ia chegar a perder até a metade. Por isso, estes dados representam a base de partida da conferência deste ano. E a ideia da conferência é reunir, sob a égide da Academia, as três importantes comunidades que se ocupam de ciência e ação para a biodiversidade e a proteção das espécies. Darão o seu contributo os representantes dos museus de história natural, dos jardins zoológicos e dos jardins botânicos. Essas três comunidades ocupam-se da pesquisa sobre a conservação e proteção das espécies, bem como da comunicação e atividades educacionais, atingindo milhões de pessoas, incluindo os jovens.
Combinando empenho político, instrução pública e conservação das espécies, as comunidades mundiais dos museus de história natural, dos jardins zoológicos e dos jardins botânicos têm, em conjunto, elementos necessários para convocar as partes envolvidas para um diálogo que desfruta os pontos de força da ciência e do compromisso social e espiritual para propor ações que possam alcançar vastas populações no mundo inteiro, sendo que “cada comunidade pode fazê-lo de um ponto de vista diferente e complementar”. Neste sentido, o formato da conferência ofereceu a cada uma das três comunidades a oportunidade de apresentar as suas atividades de pesquisa e comunicação de vanguarda. “Todavia – observou a Academia –, a conferência pretendeu também encontrar novas sinergias entre essas comunidades por um maior impacto em termos de uma visão coletiva do mundo e novas ações conjuntas para enfrentar o drama da extinção”. Com os membros da Pontifícia Academia das Ciências, avaliou-se a possibilidade de criar “Arcas de Noé” dos nossos tempos, estudaram-se os seus desafios, com novas abordagens virtuais e práticas, envolvendo todos os credos.
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O professor brasileiro Vanderlei Bagnato, membro da Pontifícia Academia das Ciências e participante na Conferência, afirma que estamos a viver uma Arca de Noé moderna”, um “novo dilúvio, não de água, porém de desgraças ambientais”. Segundo o ilustre académico, a Conferência tem como ponto de referência a encíclica do Papa Francisco Laudato si’, que “é um alerta à população sobre a realidade ecológica” e é um “documento de referência tanto do ponto de vista ambiental, quanto da extinção das espécies no mundo”.
Atentando no subtítulo “Arcas de Noé para o Século XXI”, que se refere à história bíblica da inundação destrutiva e a Noé que salva a humanidade e as espécies com a sua arca, segundo uma ordem de Deus, o professor explicita que tal como “Noé recebeu a incumbência de salvar a humanidade depois da catástrofe”, também nós hoje temos o mesmo problema, a nossa “catástrofe”, que é a grande desordem causada pelos malefícios tanto a espécies animais, quanto vegetais. Ora, se Noé percebeu que, para sobreviver, deveria salvar as espécies, hoje, para “para a espécie humana se salvar – assegura o professor –, procura-se salvar toda a biodiversidade ao seu redor”. Com efeito, este “novo dilúvio” de desgraças ambientais pode levar à “catástrofe de espécies animais e vegetais irrecuperáveis”, com consequências diretas para o homem.
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A este respeito, é digno de nota o artigo “A Arca de Noé do século XXI”, de Rachel Biderman, da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, de 1 de outubro de 2018, no site Ciência e Clima (cf https://cienciaeclima.com.br/a-arca-de-noe-do-seculo-xxi/).
Diz a especialista que não vale a pena dar ouvidos à falsa polémica em torno da existência ou não das mudanças climáticas no planeta, pois a grande maioria dos cientistas, que estudam e pesquisam nos institutos de maior reputação no mundo todo, denuncia e corrobora as alterações do sistema climático. É certo que os jornalistas estão à caça de polémica, mas vale a pena subestimar os negacionistas, tal como valeria a pena “não dar ouvidos aos extremistas na política e na guerra”, o que “poderia ser uma opção para impulsionar democracias e economias mais saudáveis”. E Biderman explicita a responsabilidade dos comunicadores:
Abrir as principais vitrinas do mundo na média impressa ou virtual é um ato de grande responsabilidade. Quem guarda essa chave poderia pensar mais a sério antes de dar o palco para notícias cujas consequências são destrutivas. Uso esse exemplo para chamar atenção do que considero que deveria ser bem mais exposto na média do que a negação do aquecimento global ou sensacionalistas em busca de média para sua projeção e busca por poder.”.
Efetivamente, “o cenário das mudanças climáticas é para valer”, como atestam “os estudos publicados aos milhares”, bem como “os exemplos recentes de eventos climáticos extremos, como as secas e incêndios na Grécia, Califórnia ou Portugal” e, este ano (digo eu), o que se passou em Moçambique em março, na região da Beira, e em abril na de Pemba, em termos de tornados. Ora, isto tem consequências. Por exemplo, “as perdas globais por incêndios atingiram níveis recorde ‘no ano passado’ (2017) – e isso pode piorar à medida que a ameaça da mudança climática cresce”.
Refere a grande seca no sudeste do país e a escassez hídrica que começa a bater às portas dos brasileiros, sem que tenham “agido suficientemente para combater o problema no curto e longo prazo” com reflexo na diminuição das colheitas resultantes da produção agrícola.
Depois, observa:
Há cientistas que alegam que estamos vivendo a 6.ª maior extinção de espécies da história, numa fase chamada de Antropoceno – a época geológica em que humanos se tornam a principal causa de alterações do planeta. Estamos perdendo espécies de plantas e animais em grande escala, muitos dos quais sequer chegamos a conhecer.”.
Assim, “tornam-se ainda mais urgentes as ações de conservação ambiental”, principalmente em terras públicas (áreas protegidas) e privadas (reservas legais ou áreas de preservação permanente obrigatórias nas propriedades) e “é fundamental também restaurar áreas degradadas, a fim de resgatar a capacidade de produção de alimentos, promover segurança hídrica, reter carbono no solo e estocá-lo nas plantas”.
E destaca o aspeto positivo, que apraz relevar:
O lado bom da história é que vivemos um grande despertar de atores que têm se dedicado à restauração florestal (ou de outros tipos de vegetação) e à produção agropecuária sustentável, convencidos de que ainda temos oportunidade de salvarmos algumas regiões e espécies no planeta de uma devastação ainda maior”.
Considerando que, do lado da conservação, se agudiza “a falta de investimento em parques e áreas de conservação, pois o que é considerado bem público não tem recebido a devida atenção, muito menos investimento”, interroga-se “donde virão as sementes para o reflorestamento de áreas degradadas”, se as áreas preservadas pegarem fogo ou sucumbirem às secas ou “donde virá a água para abastecimento e produção, se comprometermos as áreas protegidas”.
E sugere que, além dos governos, haja um forte compromisso do setor privado, para que se possa “dar escala às ações para salvar espécies relevantes de fauna e flora para as futuras gerações”. Na verdade, “muitas das ações necessárias podem acontecer na forma de negócios, de micro a grande porte, gerando economia relevante” e “os negócios de impacto social e ambiental, neste momento da história, tornam-se peça chave para os desafios planetários”.
Estando a humanidade a viver um momento “Arca de Noé”, impõe-se uma nova ecoeconomia e uma nova forma de fazer política, implicando na causa os poderes, as religiões e os cidadãos.  
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Por fim, destaco o Congresso Internacional “Arca de Noé: catástrofe e redenção”, na Universidade de Aveiro (Portugal),  a 27 e 28 de setembro de 2018 – um evento científico na sequência de congressos realizados nos últimos anos: 2015, “Caim e Abel: família e conflito”; 2016, “Exodus: migrações e fronteiras”; e 2017, “Terra prometida: mitos e salvação”. A iniciativa continuou, reforçou e promoveu a investigação em áreas multidisciplinares, compreendendo a literatura, a cultura, a linguística e a tradução, bem como as suas relações com outros domínios científicos, literários, artísticos e culturais. Assim, as várias comunicações estenderam-se pelas seguintes áreas temáticas: exegeses religiosas; hermenêutica e tradição; mitos e estereótipos; diálogos inter-religiosos; intertextualidades e interartes; discursos apocalípticos e salvíficos; ecocrítica; e teorias do fim do mundo.
Por se aproximar da temática versada na conferência da Pontifícia Academia das Ciências, transcreve-se, a título de exemplo, o resumo da comunicação de João de Mancelos, da UBI (Universidade da Beira Interior), sobre o filme “Tem calma, pá! O barco é grande!” – a reinvenção do dilúvio em 2012, de Roland Emmerich:   
Realizado por Roland Emmerich (2012), constitui um filme-catástrofe, subgénero do cinema de ação que teve o seu esplendor nos anos setenta. O argumento, seguindo o paradigma de Syd Field, é linear: o núcleo do planeta aqueceu, os terramotos ameaçam a Humanidade e as águas oceânicas subiram. Para sobreviver ao dilúvio e à extinção em massa de pessoas, fauna e flora, os cientistas constroem arcas gigantescas. Nesta comunicação, o meu objetivo é analisar como o mito escatológico de Noé surge simultaneamente aproveitado e subvertido neste filme de culto – tão mau que chega a ser bom. Para tanto, recorro à teoria da adaptação cinematográfica, à transposição intersemiótica e à intertextualidade e ao sentido de humor.” (cf http://arcanoe.web.ua.pt/wp-content/uploads/2018/09/ARCA-NOE-2018_LivroResumos.pdf).
E, por focar o drama da exploração migratória no Mediterrâneo, transcreve-se (também a título de exemplo) o resumo da comunicação de José Cândido de Oliveira Martins, da UCP (Universidade Católica Portuguesa), sobre “Poesia de Ana Luísa Amaral: entre o apocalipse e a esperança”: 
Na extensa e reconhecida obra de Ana Luísa Amaral, os tópicos da catástrofe e da redenção, com seus mais diversos matizes e variantes, mostram-se profundamente estruturantes. Em vários dos seus livros, enraizada na História, mas sobretudo muito atenta ao presente, essa tensão essencial está presente, ainda que nem sempre de forma explícita e simultânea. Até chegarmos ao particular de uma escrita poética mais recente, atenta à crise na Europa, onde o Mediterrâneo se transforma no espaço de novas e dramáticas arcas de Noé completamente à deriva, repletas dos ‘sem-nome’, num horizonte bem trágico e bem longe dos míticos ‘mares de Homero’, escritor signo de uma cultura humanista que moldou o mundo ocidental.” (cf id et ib).
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Enfim, o sistema de arcas de Noé está na agenda da comunidade científica, que urge passar à agenda política, mas para todos e não para uma elite privilegiada.  
Prosit!
2019.05.16 – Louro de Carvalho

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