Eis uma ideia que pairou na Conferência “Ciências
e ações para a proteção das espécies – Novas Arcas de Noé para o Século XXI”,
que decorreu na Casina Pio IV, na Cidade do Vaticano, de 3 a 14 de maio, em que
os participantes debateram “Ciências e ações para proteção das
espécies”, tendo como pano de fundo a temática da encíclica papal Laudato si’.
A este
respeito, a Pontifícia Academia das Ciências difundiu um comunicado em que
assume que a predita encíclica do Papa Francisco, sobre o cuidado da Casa Comum, “representa uma forte crítica ao
consumismo moderno e aos seus efeitos catastróficos sobre a biodiversidade”,
nos adverte “para a ecologia do planeta em via de extinção e ressalta a
necessidade de que a ciência e a política se empenhem com as autoridades
religiosas e morais para rever a situação atual e propor estratégias conjuntas
voltadas a mudar a trajetória da humanidade”.
Como
resposta a essa crítica a Pontifícia Academia das Ciências declara que, “em linha
de princípio, todas as principais religiões do mundo se esforçam para respeitar
e preservar a natureza e podem concordar ações comuns para esse objetivo”.
Por outro
lado, esclarece que o subtítulo “Arcas de
Noé para o Século XXI” se refere à história bíblica da inundação destrutiva
e a Noé que salva a humanidade e as espécies com a sua arca, segundo uma ordem
de Deus (Gn 6-9). E, considerando a necessidade e a vantagem de
incrementar a criação de novas arcas de Noé com vista à preservação das espécies,
explicita:
“O nosso interesse comum pela natureza leva-nos, hoje, a preservar as
espécies nos jardins zoológicos e botânicos ameaçados pela destruição ambiental
provocada pelo homem, incluindo as mudanças climáticas e a relativa perda de
espécies. Neles, assim como nos museus de história natural, se podem estudar
espécies de vida em extinção e ou extintas, de modo que a conservação possa ter
uma base sólida.”.
Porém, o
referido Dicastério da Cúria Romana sabe que as indicadas “Arcas de Noé” poderão
não ser suficientes para prevenir completamente a ameaça de extinção de algumas
espécies mediante a criação e o estudo de ilhas de proteção. Em todo o caso,
está convicto de que “as comunidades mundiais que administram museus de
história natural, jardins zoológicos e botânicos, e que se empenham na pesquisa
neste campo, além de inspirarem milhões de visitantes, têm o potencial de se
tornarem aliados catalíticos e significativos no impulso mundial à proteção das
espécies e a conservação da natureza”.
Esta matéria
cabe no quando dos conteúdos da Pontifícia
Academia das Ciências, um organismo de âmbito internacional, multirracial na
composição e não-sectário na escolha dos membros e cujo trabalho compreende
seis grandes áreas: ciência fundamental;
ciência e tecnologia de problemas globais;
ciência para os problemas do mundo em
desenvolvimento; política científica;
bioética; e epistemologia.
Assim e
neste rol de desafios atuais, é de recordar que a Pontifícia Academia das
Ciências já se ocupou desses desafios, por exemplo, nas conferências “Humanidade sustentável, natureza
sustentável: a nossa responsabilidade” (de 2 a 6 de maio de 2014), ainda antes da publicação da encíclica Laudato si’ (o que pode
significar que a preocupação ecológica já estava a pairar na Academia antes da
encíclica, respondendo às preocupações dos papas polaco e alemão); “Ciência e
Sustentabilidade. Impacto dos conhecimentos científicos e da tecnologia sobre a
sociedade humana e sobre seu ambiente” (de 25 a 26 de novembro de 2016); “Extinção
biológica – Como salvar o mundo natural do qual dependemos?” (de 27 de
fevereiro a q de março de 2017); e “A saúde das pessoas e a saúde do planeta: a
nossa responsabilidade” (de 2 a 4 de novembro de 2017), com atenção particular às mudanças climáticas. Por
isso, é natural que, na linha da continuidade institucional e prudencial, a presente
conferência tenha recorrido às precedentes, às respetivas Declarações e às
consultas relacionadas com o tema, como por exemplo as Declarações de Assis (1986): mensagens sobre a humanidade e
sobre a natureza do ponto de vista do Budismo, do Cristianismo, do Hinduísmo,
do Islão e do Judaísmo – marco
simbólico do diálogo inter-religioso.
E o susodito
comunicado, produzido no decurso da Conferência assegura que “desde o início,
temos consciência de que o contexto mundial da extinção das espécies e da perda
de biodiversidade no Antropoceno [a época em que humanos
substituíram a natureza como a força ambiental dominante na Terra] é uma consequência das ações humanas, da concorrência
no uso de terra e água, das transformações ambientais mundiais e das mudanças
climáticas em particular, como debatido nas referidas Conferências da
Pontifícia Academia das Ciências”.
Durante as
conferências anteriores foi repetidamente calculado que cerca de um quinto de
todos os organismos não bacterianos estará em perigo de extinção nas próximas
décadas e que, daqui até ao final do século XXI, poder-se-ia chegar a perder
até a metade. Por isso, estes dados representam a base de partida da conferência
deste ano. E a ideia da conferência é reunir, sob a égide da Academia, as três
importantes comunidades que se ocupam de ciência e ação para a biodiversidade e
a proteção das espécies. Darão o seu contributo os representantes dos museus de
história natural, dos jardins zoológicos e dos jardins botânicos. Essas três
comunidades ocupam-se da pesquisa sobre a conservação e proteção das espécies,
bem como da comunicação e atividades educacionais, atingindo milhões de
pessoas, incluindo os jovens.
Combinando
empenho político, instrução pública e conservação das espécies, as comunidades
mundiais dos museus de história natural, dos jardins zoológicos e dos jardins
botânicos têm, em conjunto, elementos necessários para convocar as partes
envolvidas para um diálogo que desfruta os pontos de força da ciência e do
compromisso social e espiritual para propor ações que possam alcançar vastas
populações no mundo inteiro, sendo que “cada comunidade pode fazê-lo de um
ponto de vista diferente e complementar”. Neste sentido, o formato da
conferência ofereceu a cada uma das três comunidades a oportunidade de
apresentar as suas atividades de pesquisa e comunicação de vanguarda. “Todavia
– observou a Academia –, a conferência pretendeu também encontrar novas
sinergias entre essas comunidades por um maior impacto em termos de uma visão
coletiva do mundo e novas ações conjuntas para enfrentar o drama da extinção”. Com
os membros da Pontifícia Academia das Ciências, avaliou-se a possibilidade de
criar “Arcas de Noé” dos nossos tempos, estudaram-se os seus desafios, com
novas abordagens virtuais e práticas, envolvendo todos os credos.
***
O professor brasileiro Vanderlei Bagnato, membro da Pontifícia Academia das
Ciências e participante na Conferência, afirma que estamos a viver “uma Arca de Noé moderna”, um “novo
dilúvio, não de água, porém de desgraças ambientais”. Segundo o ilustre
académico, a Conferência
tem como ponto de referência a encíclica do Papa Francisco Laudato si’,
que “é um alerta à população sobre a
realidade ecológica” e é um “documento
de referência tanto do ponto de vista ambiental, quanto da extinção das
espécies no mundo”.
Atentando no
subtítulo “Arcas de Noé para o Século XXI”,
que se refere à história bíblica da inundação destrutiva e a Noé que salva a
humanidade e as espécies com a sua arca, segundo uma ordem de Deus, o professor
explicita que tal como “Noé recebeu a incumbência de salvar a humanidade depois
da catástrofe”, também nós hoje temos o mesmo problema, a nossa “catástrofe”,
que é a grande desordem causada pelos malefícios tanto a espécies animais,
quanto vegetais. Ora, se Noé percebeu que, para sobreviver, deveria salvar as
espécies, hoje, para “para a espécie humana se salvar – assegura o professor –,
procura-se salvar toda a biodiversidade ao seu redor”. Com efeito, este “novo
dilúvio” de desgraças ambientais pode levar à “catástrofe de espécies animais e
vegetais irrecuperáveis”, com consequências diretas para o homem.
***
A este
respeito, é digno de nota o artigo “A Arca de Noé do século XXI”, de Rachel Biderman, da Rede de Especialistas
em Conservação da Natureza, de 1 de outubro de 2018, no site Ciência e Clima (cf https://cienciaeclima.com.br/a-arca-de-noe-do-seculo-xxi/).
Diz a
especialista que não vale a pena dar ouvidos à falsa polémica em torno da
existência ou não das mudanças climáticas no planeta, pois a grande maioria dos
cientistas, que estudam e pesquisam nos institutos de maior reputação no mundo
todo, denuncia e corrobora as alterações do sistema climático. É certo que os
jornalistas estão à caça de polémica, mas vale a pena subestimar os
negacionistas, tal como valeria a pena “não dar ouvidos aos extremistas na
política e na guerra”, o que “poderia ser uma opção para impulsionar
democracias e economias mais saudáveis”. E Biderman explicita a
responsabilidade dos comunicadores:
“Abrir as principais vitrinas do mundo na média
impressa ou virtual é um ato de grande responsabilidade. Quem guarda essa chave
poderia pensar mais a sério antes de dar o palco para notícias cujas
consequências são destrutivas. Uso esse exemplo para chamar atenção do que
considero que deveria ser bem mais exposto na média do que a negação do
aquecimento global ou sensacionalistas em busca de média para sua projeção e
busca por poder.”.
Efetivamente,
“o cenário das mudanças climáticas é para valer”, como atestam “os estudos
publicados aos milhares”, bem como “os exemplos recentes de eventos climáticos
extremos, como as secas e incêndios na Grécia, Califórnia ou Portugal” e, este
ano (digo eu), o que se passou em Moçambique em março, na região
da Beira, e em abril na de Pemba, em termos de tornados. Ora, isto tem
consequências. Por exemplo, “as perdas globais por incêndios atingiram níveis
recorde ‘no ano passado’ (2017) – e isso
pode piorar à medida que a ameaça da mudança climática cresce”.
Refere a
grande seca no sudeste do país e a escassez hídrica que começa a bater às
portas dos brasileiros, sem que tenham “agido suficientemente para combater o
problema no curto e longo prazo” com reflexo na diminuição das colheitas
resultantes da produção agrícola.
Depois,
observa:
“Há cientistas que alegam que estamos
vivendo a 6.ª maior extinção de espécies da história, numa fase chamada de
Antropoceno – a época geológica em que humanos se tornam a principal causa de
alterações do planeta. Estamos perdendo espécies de plantas e animais em grande
escala, muitos dos quais sequer chegamos a conhecer.”.
Assim, “tornam-se
ainda mais urgentes as ações de conservação ambiental”, principalmente em
terras públicas (áreas protegidas) e privadas
(reservas
legais ou áreas de preservação permanente obrigatórias nas propriedades) e “é fundamental também restaurar áreas degradadas,
a fim de resgatar a capacidade de produção de alimentos, promover segurança
hídrica, reter carbono no solo e estocá-lo nas plantas”.
E destaca o
aspeto positivo, que apraz relevar:
“O lado bom da história é que vivemos um
grande despertar de atores que têm se dedicado à restauração florestal (ou de
outros tipos de vegetação) e à produção agropecuária sustentável, convencidos de
que ainda temos oportunidade de salvarmos algumas regiões e espécies no planeta
de uma devastação ainda maior”.
Considerando
que, do lado da conservação, se agudiza “a falta de investimento em parques e
áreas de conservação, pois o que é considerado bem público não tem recebido a
devida atenção, muito menos investimento”, interroga-se “donde virão as
sementes para o reflorestamento de áreas degradadas”, se as áreas preservadas
pegarem fogo ou sucumbirem às secas ou “donde virá a água para abastecimento e
produção, se comprometermos as áreas protegidas”.
E sugere que,
além dos governos, haja um forte compromisso do setor privado, para que se
possa “dar escala às ações para salvar espécies relevantes de fauna e flora
para as futuras gerações”. Na verdade, “muitas das ações necessárias podem
acontecer na forma de negócios, de micro a grande porte, gerando economia
relevante” e “os negócios de impacto social e ambiental, neste momento da
história, tornam-se peça chave para os desafios planetários”.
Estando a
humanidade a viver um momento “Arca de Noé”, impõe-se uma nova ecoeconomia e
uma nova forma de fazer política, implicando na causa os poderes, as religiões
e os cidadãos.
***
Por fim,
destaco o Congresso Internacional “Arca
de Noé: catástrofe e redenção”, na Universidade de Aveiro (Portugal), a 27 e 28 de setembro de 2018 – um evento
científico na sequência de congressos realizados nos últimos anos: 2015, “Caim e Abel: família e conflito”; 2016,
“Exodus: migrações e fronteiras”; e
2017, “Terra prometida: mitos e salvação”.
A iniciativa continuou, reforçou e promoveu a investigação em áreas
multidisciplinares, compreendendo a literatura, a cultura, a linguística e a
tradução, bem como as suas relações com outros domínios científicos,
literários, artísticos e culturais. Assim, as várias comunicações estenderam-se
pelas seguintes áreas temáticas: exegeses religiosas; hermenêutica
e tradição; mitos e
estereótipos; diálogos inter-religiosos; intertextualidades e interartes; discursos apocalípticos e salvíficos; ecocrítica; e
teorias
do fim do mundo.
Por se
aproximar da temática versada na conferência da Pontifícia Academia das
Ciências, transcreve-se, a título de exemplo, o resumo da comunicação de João de Mancelos, da UBI (Universidade
da Beira Interior),
sobre o filme “Tem calma, pá! O barco é
grande!” – a reinvenção do dilúvio em 2012, de Roland Emmerich:
“Realizado por Roland Emmerich (2012),
constitui um filme-catástrofe, subgénero do cinema de ação que teve o seu
esplendor nos anos setenta. O argumento, seguindo o paradigma de Syd Field, é
linear: o núcleo do planeta aqueceu, os terramotos ameaçam a Humanidade e as
águas oceânicas subiram. Para sobreviver ao dilúvio e à extinção em massa de
pessoas, fauna e flora, os cientistas constroem arcas gigantescas. Nesta
comunicação, o meu objetivo é analisar como o mito escatológico de Noé surge
simultaneamente aproveitado e subvertido neste filme de culto – tão mau que
chega a ser bom. Para tanto, recorro à teoria da adaptação cinematográfica, à
transposição intersemiótica e à intertextualidade e ao sentido de humor.”
(cf http://arcanoe.web.ua.pt/wp-content/uploads/2018/09/ARCA-NOE-2018_LivroResumos.pdf).
E, por focar
o drama da exploração migratória no Mediterrâneo, transcreve-se (também a
título de exemplo) o resumo
da comunicação de José
Cândido de Oliveira Martins, da UCP (Universidade Católica
Portuguesa), sobre “Poesia de Ana Luísa Amaral: entre o
apocalipse e a esperança”:
“Na extensa e reconhecida obra de Ana Luísa Amaral, os tópicos da
catástrofe e da redenção, com seus mais diversos matizes e variantes,
mostram-se profundamente estruturantes. Em vários dos seus livros, enraizada na
História, mas sobretudo muito atenta ao presente, essa tensão essencial está
presente, ainda que nem sempre de forma explícita e simultânea. Até chegarmos
ao particular de uma escrita poética mais recente, atenta à crise na Europa,
onde o Mediterrâneo se transforma no espaço de novas e dramáticas arcas de Noé completamente
à deriva, repletas dos ‘sem-nome’, num horizonte bem trágico e bem longe dos
míticos ‘mares de Homero’, escritor signo de uma cultura humanista que moldou o
mundo ocidental.” (cf id et ib).
***
Enfim, o
sistema de arcas de Noé está na agenda da comunidade científica, que urge
passar à agenda política, mas para todos e não para uma elite privilegiada.
Prosit!
2019.05.16 –
Louro de Carvalho
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