“Nação, Estado. Estado Nação” é o tema da
Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências Sociais a decorrer no
Vaticano de 1 a 3 de maio, com especialistas de todo o mundo que refletem sobre
os perigos dos soberanismos e dos nacionalismos num encontro ilustrado com
reflexões do Papa Francisco, que receberá em audiência os participantes no dia
2 de maio.
Segundo Federico Piana, o objetivo da Assembleia (extremamente
atual) é lançar luz sobre os mecanismos que geram os
nacionalismos e os soberanismos, que lentamente estão a tomar conta das
sociedades em muitos países.
O professor
Stefano Zamagni, economista, presidente da Pontifícia Academia das Ciências
Sociais, explicou ao Vatican News o
sentido dos debates a realizar, ressaltando:
“A linha da Igreja não é a de rejeitar o
sentimento nacional. A Igreja nunca foi contra o conceito de nação, de
identidade nacional, mas sim contra a sua degeneração, isto é, quando a ideia
de nação se transforma em nacionalismo.”.
Assim, a
Igreja assume o papel de “mostrar que é
possível conciliar o conceito de nação com o de uma democracia avançada, que
leve em consideração a forte globalização e interconexões entre os povos”.
A não ser deste modo, os nacionalismos assumirão o controlo do devir, sufocando
a liberdade, destruindo economias e impondo soberanismos disfuncionais.
A Pontifícia
Academia de Ciências Sociais põe a nu a evidência do renascimento e do
vertiginoso crescimento dos populismos, que estarão no centro dos debates e no
contexto da análise do encontro poliédrico. Na verdade, para Zamagni, “os
neopopulismos de hoje são caraterizados por razões específicas: as reações,
imotivadas e irracionais, em relação à globalização e contra o aumento das
desigualdades”.
E o distinto
professor reconhece que os fenómenos que mobilizam os neopopulistas são
verdadeiros, mas pensa que a reação é inadequada e piora “o mal que gostaria de
erradicar”.
Mais:
segundo Zamagni é a Europa o laboratório dos neopopulismos, atendo-nos ao
que está a suceder no campo político e social como “um caso paradigmático”. E o
professor discorre:
“Pensemos nos casos da Polónia, da Hungria, dos países do antigo bloco
soviético da Europa central: ali se invoca o nacionalismo aliado a
soberanismos. E, quando o nacionalismo é somado a soberanismo, surgem problemas
muito sérios. É preciso evitar que o poder político possa anular o poder da
sociedade civil, aquelas expressões da sociedade civil chamadas ‘corpos
intermediários’, a Igreja incluída.”.
O caminho
para combater os neopopulismos e os nacionalismos deformados pode ser
encontrado no último capítulo da Carta Encíclica Social do Papa Bento XVI, a Caritas
in Veritate, publicada em 2009, logo após a crise económica mundial – período
em que os soberanismos começaram a ressurgir – que teve resultados dramáticos.
E Zamagni observa:
“O último capítulo propõe como linha de ação, uma poliarquia. Há dez
anos ninguém prestava atenção a essa solução. Hoje, pelo contrário, é
necessário recuperar a sabedoria presente na Caritas in Veritate. Mas o
que o documento entende com ‘poliarquia’? Quer dizer a pluralidade dos centros
de poder. As várias formas de poder, económico, político e social, não devem
acabar nas mãos de poucos.”.
Diz temeroso
Zamagni que acabarem as várias formas de poder nas mãos de poucos seria um
revés perigoso para as nossas sociedades. E, nesta ótica, a Caritas in
Veritate constituirá um antídoto contra os
neopopulismos, desde que devidamente refletida e posta em prática.
***
Na verdade, como refere em 2009 o site
da Ecclesia, a encíclica social de
Bento XVI versa um vasto conjunto de problemas da atualidade, em torno do
“desenvolvimento humano integral”, numa conjuntura tão complexa como a que
estamos a viver, em termos sociais e económicos, com diretas incidências na
cultura e no direito. Começando por reler a encíclica Populorum progressio (Paulo VI, 1967), desenvolve mais os seguintes temas: o desenvolvimento humano no nosso tempo; fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil; desenvolvimento dos povos, direitos e
deveres, ambiente; a colaboração da
família humana; e o desenvolvimento
dos povos e a técnica. E, na conclusão, o Papa mostra-se convicto da
conveniência da religião, no sentido mais essencial do termo, para a
consolidação da sociedade humana, vincando:
“Somente se pensarmos que somos chamados,
enquanto indivíduos e comunidade, a fazer parte da família de Deus como seus
filhos, é que seremos capazes de produzir um novo pensamento e desenvolver
novas energias ao serviço de um verdadeiro humanismo integral”.
É um documento
doutrinário relevante que atualiza duas das mais marcantes encíclicas dos
últimos séculos. De facto, mergulha as suas raízes na Rerum Novarum, de Leão XIII e assume-se na continuidade da Populorum Progressio, de São Paulo VI,
que já era considerada a Rerum Novarum
da época contemporânea.
Nela
sobressaem dois aspetos: a clarificação de que a doutrina social da Igreja (DSI) não se opõe à economia de mercado, nem impõe uma
economia comandada, isto é, não é anticapitalista, como, por vezes, é
interpretada por alguns; e a clareza da abordagem da falência das
instituições multilaterais, das Nações Unidas às diferentes organizações de
cooperação económica.
No centro da
encíclica está o conceito de “responsabilidade”, pois “o desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da
pessoa e dos povos”. Assim, observa que atualmente o quadro do desenvolvimento
é policêntrico, sendo errado atribuir as culpas da crise a um só fator e
devendo nós libertar-nos das ideologias que simplificam, de forma artificiosa,
a realidade e examinar com objetividade a espessura humana dos problemas.
Bento XVI
assume que a doutrina da Rerum Novarum
e da Populorum Progressio tem hoje de
atender à realidade da globalização, cujos processos, se “adequadamente
concebidos e geridos, oferecem a possibilidade de uma riqueza a nível mundial,
como antes nunca tinha acontecido”. Porém, gerir a globalização não é
limitá-la, nem deixá-la expandir aleatoriamente, nem compensar os seus efeitos
perversos. Por isso, o Papa alemão se manifestava contra a “filantropia dos
povos desenvolvidos” como se alguns povos estivessem condenados à pobreza.
***
Aquando da publicação da Caritas in
Veritate, Dom Manuel Clemente era Bispo do Porto e, a 5 de novembro, fez
uma abordagem da Encíclica no encontro sobre “Filosofia do Direito” na Universidade Lusófona do Porto. Daí se respigam alguns
dados pertinentes.
Começou por afirmar que, “para nos entendermos mutuamente como humanidade
comum, em realização solidária e progressiva”, é de admitir que “nenhuma
ambição particular nos basta”, mas que “somos motivados por uma transcendência
provinda duma realidade tão outra como atrativa de todos, ou seja absolutamente
pessoal”, a que se dá o nome de Deus e que os cristãos reconhecem presente em
Jesus de Nazaré. Assim o Papa assegurava:
“A maior força ao serviço do desenvolvimento
é um humanismo cristão que reavive a caridade e que se deixe guiar pela
verdade, acolhendo uma e outra como dom permanente de Deus”.
Partindo do Papa Montini, carateriza Bento XVI o desenvolvimento
como realidade humana (pessoal e interpessoal) excluindo a mera
acumulação. E dizia Manuel Clemente:
“Nos anos sessenta vivíamos alguma euforia em relação a este tópico,
quase acreditando na facilidade de atingirmos rápidas metas, mesmo em termos
mundiais. Na primeira década do novo milénio e na atual crise financeira e
económica, não nos manifestamos tão seguros e otimistas.”.
Ora, Bento XVI presta o serviço de resumir e retomar a proposta
de São Paulo VI no que as suas reflexões de há quatro décadas têm de essencial
e útil para perspetivarmos o futuro.
Com efeito, na Populorum progessio, São Paulo VI diz, antes de mais, que o
progresso é, na origem e essência, uma vocação. E é este facto que
legitima a intervenção da Igreja no quadro do desenvolvimento. Com efeito, se
este tocasse só aspetos técnicos da vida humana e não o sentido da caminhada do
homem na história juntamente com os irmãos, nem a individuação da meta de tal
caminhada, a Igreja não teria motivo para falar sobre ele. Mas São Paulo VI,
como antes Leão XIII, sentia-se na obrigação de cumprir um dever próprio da sua
missão iluminando com a luz do Evangelho as questões sociais coevas, em atenção
aos sinais dos tempos. Definir o desenvolvimento como vocação é reconhecer que
ele nasce dum apelo transcendente e que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o
próprio significado último. Esta visão constitui o coração da Populorum progressio, motiva as reflexões
de São Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento, e
constitui a razão principal da plena atualidade de tal encíclica.
O então Bispo do Porto, entre a “vastíssima temática” da Caritas in Veritate, elegeu para comentar,
no susodito encontro, o atinente à comunidade internacional e ao “progresso”
necessário da sua institucionalização, tendo em vista o desenvolvimento dos
povos.
Na verdade, o Papa Bento equaciona, no âmbito da crescente interdependência
mundial, a necessidade da urgente reforma da Organização das Nações Unidas e da arquitetura económica e financeira
internacional, para
possibilitar a real concretização do conceito de família de nações, bem como a
urgência de “encontrar formas inovadoras para implementar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir também às
nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns”. Para tanto, tem de
conseguir-se “um ordenamento político,
jurídico e económico que incremente e guie a colaboração internacional para o
desenvolvimento solidário de todos os povos”. E, para obviar aos efeitos
das crises económicas à escala mundial, bem como ao necessário desarmamento com
vista à consecução de maiores equilíbrios, de segurança alimentar e de paz, e à
garantia da salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios, “urge
a presença duma verdadeira Autoridade política mundial”, já delineada por São João XXIII.
Tal Autoridade, regulada pelo direito, deve ater-se
ao princípio da subsidiariedade e ao da solidariedade, orientar-se para o bem
comum e comprometer-se na realização do autêntico desenvolvimento humano
integral inspirado nos valores da caridade na verdade. E, devendo ser
reconhecida por todos, terá de gozar de poder efetivo para “garantir a cada um
a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”, bem como da
faculdade de fazer com que as partes respeitem as próprias decisões e as
medidas coordenadas e adotadas nos diversos fóruns internacionais. É que, se
isso faltar, o direito internacional, não obstante os grandes progressos
realizados nos vários campos, correrá o risco de ser condicionado pelos
equilíbrios de poder entre os mais fortes. Na verdade, “o desenvolvimento
integral dos povos e a colaboração internacional exigem que seja instituído um
grau superior de ordenamento internacional de tipo subsidiário para o governo
da globalização e que se dê finalmente atuação a uma ordem social conforme à
ordem moral e à ligação entre esfera moral e social, entre política e esfera
económica e civil, que aparece já perspetivada no Estatuto das Nações Unidas” (cf CV, 67).
Assim, Manuel Clemente releva, no texto de Bento XVI, quatro pontos
axiais: a implementação dum ordenamento geral e subsidiário para
desenvolvimento dos povos e a colaboração internacional; a consolidação duma
autêntica “autoridade política mundial”; a promoção efetiva da dignidade da
pessoa humana, do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade na
humanidade; e a atribuição dum poder efetivo e à altura dos fins enunciados à
referida autoridade mundial.
Assim, o Papa alemão aplicou à vida internacional os quatro princípios da
DSI – dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade –,
que o Compêndio
da Doutrina Social da Igreja (CDSI), publicado pelo Conselho Pontifício
Justiça e Paz em 2004, apresenta como “verdadeiros
e próprios gonzos do ensinamento social católico” (CDSI, n.º 160), definindo-os em referências várias. Sobre a dignidade
humana, quer que “todos os programas
sociais, científicos e culturais sejam orientados pela consciência do primado
de cada ser humano”. Do bem comum, retoma a definição de ser “o conjunto das condições de vida social que
permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente
a própria perfeição”. Da subsidiariedade, diz que “todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda (subsidium), apoio, promoção e incremento em relação às
menores”. E da solidariedade, releva a intrínseca sociabilidade da pessoa
humana, a igualdade de todos em dignidade e direitos, o caminho comum dos
homens e dos povos para uma unidade cada vez mais convicta.
A partir destes princípios (inspirados no que a humanidade tem concluído sobre si a
partir da experiência acumulada e das atitudes e palavras de Jesus, em quem os
cristãos e muitos outros têm encontrado motivação para o próprio comportamento
pessoal e social), Bento
XVI avalia positiva e prudencialmente a globalização.
E, citando o Catecismo da Igreja Católica (CIC), que define a prudência (virtude cardeal ou
principal, com a justiça, a fortaleza e a temperança), como “virtude que dispõe a razão prática para
discernir, em qualquer circunstância, o nosso verdadeiro bem e para escolher os
justos meios para o atingir” (CIC, n.º 1806), Manuel Clemente
assenta em que a pessoa humana é “o bem
maior a respeitar e a promover em qualquer patamar da sociabilidade, nacional
ou internacional” pelo que a prudência exige a observância do princípio da
subsidiariedade, neste caminho inevitável e positivo de globalização
institucional.
Dizendo o então Bispo do Porto que a encíclica requer tempo e cuidado na
leitura, resta saber se essa leitura já foi suficientemente feita, refletida e
aplicada, sobretudo se atendermos ao panorama deste mundo hodierno em que
desenvolvimento e paz, equilíbrios socioeconómicos e sã convivência são pouco
mais que uma miragem no deserto.
Ora, tendo sido a velocidade e o imediatismo de objetivos e lucros os
verdadeiros responsáveis pelos problemas de hoje, com enorme prejuízo para os
mais pobres (pessoas e países), não se deve querer resolver com
igual vertigem a situação atual. É o tempo do reforço da solidariedade e de
respeito ativo pelas pessoas “em todos os níveis da comunidade mundial”, da família
à autarquia, desta ao Estado e deste ao Mundo, com a indispensável contribuição
de todas as instituições culturais – incluindo das que veiculam o património
religioso da humanidade – e de “todas as empresas e iniciativas sociais”.
***
Por isso, é de saudar a Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das
Ciências Sociais pelo que trará de reflexão e atualização da Caritas in Veritate dando a perceber o
real valor desta joia teológica e económico-social do pontificado de Bento XVI
na linha do imortal Leão XIII e do muito perspicaz São Paulo VI.
2019.05.01 –
Louro de Carvalho
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