quarta-feira, 1 de maio de 2019

Uma encíclica para o desenvolvimento na era da globalização


Nação, Estado. Estado Nação” é o tema da Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências Sociais a decorrer no Vaticano de 1 a 3 de maio, com especialistas de todo o mundo que refletem sobre os perigos dos soberanismos e dos nacionalismos num encontro ilustrado com reflexões do Papa Francisco, que receberá em audiência os participantes no dia 2 de maio.
Segundo Federico Piana, o objetivo da Assembleia (extremamente atual) é lançar luz sobre os mecanismos que geram os nacionalismos e os soberanismos, que lentamente estão a tomar conta das sociedades em muitos países. 
O professor Stefano Zamagni, economista, presidente da Pontifícia Academia das Ciências Sociais, explicou ao Vatican News o sentido dos debates a realizar, ressaltando:
A linha da Igreja não é a de rejeitar o sentimento nacional. A Igreja nunca foi contra o conceito de nação, de identidade nacional, mas sim contra a sua degeneração, isto é, quando a ideia de nação se transforma em nacionalismo.”.
Assim, a Igreja assume o papel de “mostrar que é possível conciliar o conceito de nação com o de uma democracia avançada, que leve em consideração a forte globalização e interconexões entre os povos”. A não ser deste modo, os nacionalismos assumirão o controlo do devir, sufocando a liberdade, destruindo economias e impondo soberanismos disfuncionais.
A Pontifícia Academia de Ciências Sociais põe a nu a evidência do renascimento e do vertiginoso crescimento dos populismos, que estarão no centro dos debates e no contexto da análise do encontro poliédrico. Na verdade, para Zamagni, “os neopopulismos de hoje são caraterizados por razões específicas: as reações, imotivadas e irracionais, em relação à globalização e contra o aumento das desigualdades”.
E o distinto professor reconhece que os fenómenos que mobilizam os neopopulistas são verdadeiros, mas pensa que a reação é inadequada e piora “o mal que gostaria de erradicar”.
Mais: segundo Zamagni é a Europa o laboratório dos neopopulismos, atendo-nos ao que está a suceder no campo político e social como “um caso paradigmático”. E o professor discorre:
Pensemos nos casos da Polónia, da Hungria, dos países do antigo bloco soviético da Europa central: ali se invoca o nacionalismo aliado a soberanismos. E, quando o nacionalismo é somado a soberanismo, surgem problemas muito sérios. É preciso evitar que o poder político possa anular o poder da sociedade civil, aquelas expressões da sociedade civil chamadas  ‘corpos intermediários’, a Igreja incluída.”.
O caminho para combater os neopopulismos e os nacionalismos deformados pode ser encontrado no último capítulo da Carta Encíclica Social do Papa Bento XVI, a Caritas in Veritate, publicada em 2009, logo após a crise económica mundial – período em que os soberanismos começaram a ressurgir – que teve resultados dramáticos. E Zamagni observa:
O último capítulo propõe como linha de ação, uma poliarquia. Há dez anos ninguém prestava atenção a essa solução. Hoje, pelo contrário, é necessário recuperar a sabedoria presente na Caritas in Veritate. Mas o que o documento entende com ‘poliarquia’? Quer dizer a pluralidade dos centros de poder. As várias formas de poder, económico, político e social, não devem acabar nas mãos de poucos.”.
Diz temeroso Zamagni que acabarem as várias formas de poder nas mãos de poucos seria um revés perigoso para as nossas sociedades. E, nesta ótica, a Caritas in Veritate constituirá um antídoto contra os neopopulismos, desde que devidamente refletida e posta em prática.
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Na verdade, como refere em 2009 o site da Ecclesia, a encíclica social de Bento XVI versa um vasto conjunto de problemas da atualidade, em torno do “desenvolvimento humano integral”, numa conjuntura tão complexa como a que estamos a viver, em termos sociais e económicos, com diretas incidências na cultura e no direito. Começando por reler a encíclica Populorum progressio (Paulo VI, 1967), desenvolve mais os seguintes temas: o desenvolvimento humano no nosso tempo; fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil; desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, ambiente; a colaboração da família humana; e o desenvolvimento dos povos e a técnica. E, na conclusão, o Papa mostra-se convicto da conveniência da religião, no sentido mais essencial do termo, para a consolidação da sociedade humana, vincando:
Somente se pensarmos que somos chamados, enquanto indivíduos e comunidade, a fazer parte da família de Deus como seus filhos, é que seremos capazes de produzir um novo pensamento e desenvolver novas energias ao serviço de um verdadeiro humanismo integral”.
É um documento doutrinário relevante que atualiza duas das mais marcantes encíclicas dos últimos séculos. De facto, mergulha as suas raízes na Rerum Novarum, de Leão XIII e assume-se na continuidade da Populorum Progressio, de São Paulo VI, que já era considerada a Rerum Novarum da época contemporânea.
Nela sobressaem dois aspetos: a clarificação de que a doutrina social da Igreja (DSI) não se opõe à economia de mercado, nem impõe uma economia comandada, isto é, não é anticapitalista, como, por vezes, é interpretada por alguns; e a clareza da abordagem da falência das instituições multilaterais, das Nações Unidas às diferentes organizações de cooperação económica.
No centro da encíclica está o conceito de “responsabilidade”, pois “o desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos”. Assim, observa que atualmente o quadro do desenvolvimento é policêntrico, sendo errado atribuir as culpas da crise a um só fator e devendo nós libertar-nos das ideologias que simplificam, de forma artificiosa, a realidade e examinar com objetividade a espessura humana dos problemas.
Bento XVI assume que a doutrina da Rerum Novarum e da Populorum Progressio tem hoje de atender à realidade da globalização, cujos processos, se “adequadamente concebidos e geridos, oferecem a possibilidade de uma riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido”. Porém, gerir a globalização não é limitá-la, nem deixá-la expandir aleatoriamente, nem compensar os seus efeitos perversos. Por isso, o Papa alemão se manifestava contra a “filantropia dos povos desenvolvidos” como se alguns povos estivessem condenados à pobreza.
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Aquando da publicação da Caritas in Veritate, Dom Manuel Clemente era Bispo do Porto e, a 5 de novembro, fez uma abordagem da Encíclica no encontro sobre “Filosofia do Direito” na Universidade Lusófona do Porto. Daí se respigam alguns dados pertinentes.
Começou por afirmar que, “para nos entendermos mutuamente como humanidade comum, em realização solidária e progressiva”, é de admitir que “nenhuma ambição particular nos basta”, mas que “somos motivados por uma transcendência provinda duma realidade tão outra como atrativa de todos, ou seja absolutamente pessoal”, a que se dá o nome de Deus e que os cristãos reconhecem presente em Jesus de Nazaré. Assim o Papa assegurava:
A maior força ao serviço do desenvolvimento é um humanismo cristão que reavive a caridade e que se deixe guiar pela verdade, acolhendo uma e outra como dom permanente de Deus”.
Partindo do Papa Montini, carateriza Bento XVI o desenvolvimento como realidade humana (pessoal e interpessoal) excluindo a mera acumulação. E dizia Manuel Clemente:
Nos anos sessenta vivíamos alguma euforia em relação a este tópico, quase acreditando na facilidade de atingirmos rápidas metas, mesmo em termos mundiais. Na primeira década do novo milénio e na atual crise financeira e económica, não nos manifestamos tão seguros e otimistas.”.
Ora, Bento XVI presta o serviço de resumir e retomar a proposta de São Paulo VI no que as suas reflexões de há quatro décadas têm de essencial e útil para perspetivarmos o futuro.
Com efeito, na Populorum progessio, São Paulo VI diz, antes de mais, que o progresso é, na origem e essência, uma vocação. E é este facto que legitima a intervenção da Igreja no quadro do desenvolvimento. Com efeito, se este tocasse só aspetos técnicos da vida humana e não o sentido da caminhada do homem na história juntamente com os irmãos, nem a individuação da meta de tal caminhada, a Igreja não teria motivo para falar sobre ele. Mas São Paulo VI, como antes Leão XIII, sentia-se na obrigação de cumprir um dever próprio da sua missão iluminando com a luz do Evangelho as questões sociais coevas, em atenção aos sinais dos tempos. Definir o desenvolvimento como vocação é reconhecer que ele nasce dum apelo transcendente e que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último. Esta visão constitui o coração da Populorum progressio, motiva as reflexões de São Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento, e constitui a razão principal da plena atualidade de tal encíclica.
O então Bispo do Porto, entre a “vastíssima temática” da Caritas in Veritate, elegeu para comentar, no susodito encontro, o atinente à comunidade internacional e ao “progresso” necessário da sua institucionalização, tendo em vista o desenvolvimento dos povos.
Na verdade, o Papa Bento equaciona, no âmbito da crescente interdependência mundial, a necessidade da urgente reforma da Organização das Nações Unidas e da arquitetura económica e financeira internacional, para possibilitar a real concretização do conceito de família de nações, bem como a urgência de “encontrar formas inovadoras para implementar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns”. Para tanto, tem de conseguir-se “um ordenamento político, jurídico e económico que incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos”. E, para obviar aos efeitos das crises económicas à escala mundial, bem como ao necessário desarmamento com vista à consecução de maiores equilíbrios, de segurança alimentar e de paz, e à garantia da salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios, “urge a presença duma verdadeira Autoridade política mundial”, já delineada por São João XXIII.
Tal Autoridade, regulada pelo direito, deve ater-se ao princípio da subsidiariedade e ao da solidariedade, orientar-se para o bem comum e comprometer-se na realização do autêntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores da caridade na verdade. E, devendo ser reconhecida por todos, terá de gozar de poder efetivo para “garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”, bem como da faculdade de fazer com que as partes respeitem as próprias decisões e as medidas coordenadas e adotadas nos diversos fóruns internacionais. É que, se isso faltar, o direito internacional, não obstante os grandes progressos realizados nos vários campos, correrá o risco de ser condicionado pelos equilíbrios de poder entre os mais fortes. Na verdade, “o desenvolvimento integral dos povos e a colaboração internacional exigem que seja instituído um grau superior de ordenamento internacional de tipo subsidiário para o governo da globalização e que se dê finalmente atuação a uma ordem social conforme à ordem moral e à ligação entre esfera moral e social, entre política e esfera económica e civil, que aparece já perspetivada no Estatuto das Nações Unidas” (cf CV, 67).
Assim, Manuel Clemente releva, no texto de Bento XVI, quatro pontos axiais: a implementação dum ordenamento geral e subsidiário para desenvolvimento dos povos e a colaboração internacional; a consolidação duma autêntica “autoridade política mundial”; a promoção efetiva da dignidade da pessoa humana, do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade na humanidade; e a atribuição dum poder efetivo e à altura dos fins enunciados à referida autoridade mundial.
Assim, o Papa alemão aplicou à vida internacional os quatro princípios da DSI – dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade –, que o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI), publicado pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz em 2004, apresenta como “verdadeiros e próprios gonzos do ensinamento social católico” (CDSI, n.º 160), definindo-os em referências várias. Sobre a dignidade humana, quer que “todos os programas sociais, científicos e culturais sejam orientados pela consciência do primado de cada ser humano”. Do bem comum, retoma a definição de ser “o conjunto das condições de vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”. Da subsidiariedade, diz que “todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda (subsidium), apoio, promoção e incremento em relação às menores”. E da solidariedade, releva a intrínseca sociabilidade da pessoa humana, a igualdade de todos em dignidade e direitos, o caminho comum dos homens e dos povos para uma unidade cada vez mais convicta.
A partir destes princípios (inspirados no que a humanidade tem concluído sobre si a partir da experiência acumulada e das atitudes e palavras de Jesus, em quem os cristãos e muitos outros têm encontrado motivação para o próprio comportamento pessoal e social), Bento XVI avalia positiva e prudencialmente a globalização.
E, citando o Catecismo da Igreja Católica (CIC), que define a prudência (virtude cardeal ou principal, com a justiça, a fortaleza e a temperança), como “virtude que dispõe a razão prática para discernir, em qualquer circunstância, o nosso verdadeiro bem e para escolher os justos meios para o atingir” (CIC, n.º 1806), Manuel Clemente assenta em que a pessoa humana é “o bem maior a respeitar e a promover em qualquer patamar da sociabilidade, nacional ou internacional” pelo que a prudência exige a observância do princípio da subsidiariedade, neste caminho inevitável e positivo de globalização institucional.
Dizendo o então Bispo do Porto que a encíclica requer tempo e cuidado na leitura, resta saber se essa leitura já foi suficientemente feita, refletida e aplicada, sobretudo se atendermos ao panorama deste mundo hodierno em que desenvolvimento e paz, equilíbrios socioeconómicos e sã convivência são pouco mais que uma miragem no deserto.
Ora, tendo sido a velocidade e o imediatismo de objetivos e lucros os verdadeiros responsáveis pelos problemas de hoje, com enorme prejuízo para os mais pobres (pessoas e países), não se deve querer resolver com igual vertigem a situação atual. É o tempo do reforço da solidariedade e de respeito ativo pelas pessoas “em todos os níveis da comunidade mundial”, da família à autarquia, desta ao Estado e deste ao Mundo, com a indispensável contribuição de todas as instituições culturais – incluindo das que veiculam o património religioso da humanidade – e de “todas as empresas e iniciativas sociais”.
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Por isso, é de saudar a Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências Sociais pelo que trará de reflexão e atualização da Caritas in Veritate dando a perceber o real valor desta joia teológica e económico-social do pontificado de Bento XVI na linha do imortal Leão XIII e do muito perspicaz São Paulo VI.
2019.05.01 – Louro de Carvalho

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