terça-feira, 30 de abril de 2019

CGD: cruzamento de faltas de memória com acusação de ‘nesciência’


António de Sousa presidia ao Conselho de Administração da CGD (Caixa Geral de Depósitos) quando Almerindo Marques, um dos membros daquele Conselho, se demitiu por discordância da política de concessão de crédito do banco público. Em audição na 2.ª CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) à gestão da CGD, o antigo presidente descredibilizou as críticas, aduzindo que aquele ex-administrador não participava nas reuniões do Conselho de Crédito:
Almerindo Marques não tinha nenhum pelouro de crédito. Não sei sequer se alguma vez foi a algum Conselho de Crédito. (…) Ele próprio dizia – e era verdade – que estava muito ocupado porque tinha a responsabilidade de todo o backoffice. Não quer dizer que todos os administradores fossem sempre, mas havia dois que normalmente não iam: Almerindo Marques e Vítor Fernandes [responsável pelo pelouro dos seguros].”.
Assim, para António de Sousa, a base das críticas estava no que diziam àquele administrador “outros diretores ou pessoas que ele respeitava dentro do banco”, o que julgou suficiente para acusar a administração de falta de rigor na concessão de crédito e, por conseguinte, antes de se demitir em 2002, transmitir estes alertas por cartas ao BdP/Banco de Portugal (então liderado por Vítor Constâncio), ao Ministério das Finanças (liderado por Guilherme d’Oliveira Martins) e ao Presidente da República (Jorge Sampaio).
No final de março passado, na audição de Vítor Constâncio, o ex-governador do BdP afirmou não se recordar da carta que lhe foi entregue por Almerindo Marques alertando para problemas na concessão de crédito. “Não me lembro – disse – Isso terá sido quando? Há 12 anos? Tanto papel que recebi, tanto relatório que li” – entre 2000 e 2010.
Sousa confessou ter sabido da existência das cartas, apesar de nunca as ter visto fisicamente, porque lhe foi dada a conhecer tanto por Oliveira Martins como por Constâncio (este falou-lhe duma carta, que não mostrou: sabia o que se passava na CGD), com quem tinha “contactos frequentes”.
Os contactos com o BdP, segundo António de Sousa eram constantes, especialmente com os departamentos de supervisão bancária e com o então vice-governador do banco central, António Marta que já faleceu.
Porém, Sousa disse à CPI não se lembrar do teor da carta em questão. E, questionado sobre se havia pressões para a concessão de créditos apesar do risco elevado, rejeitou que tenha havido critérios políticos e reconheceu que pode ter havido critérios estratégicos para conquistar clientes (sublinhei).
Esta desvalorização dos alertas de Marques revela a desatenção com que a CGD era gerida, pois, sempre que surgem alertas em relação a atos duma administração, eles devem ser estudados a nível da sua veracidade e do seu teor.
Ora, na CGD parece ter acontecido um pouco de tudo: produção de falta de memória a muita gente; gente que ultrapassou os pareceres do Conselho de Crédito sem aduzir razões que validassem as decisões em contrário; gente que ia às reuniões só para fazer número que garantisse o quórum; gente que aceitava pacificamente que, estando algum administrador na reunião do Conselho de Crédito, este não emitisse parecer que o contraditasse (o que Sousa denomina de consenso); administradores que cediam a objetivos de política governamental (embora não o assumam); administrações que se moviam mais pela obesidade da carteira de clientes ou do sucesso concorrencial sem o suficiente cálculo prudencial dos riscos; gente que não aceitou pacificamente a criação do departamento de gestão de risco; e gente que não exigia fundamentação nas atas que aprovavam os créditos em causa.            
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Sousa, ao chegar à liderança do banco estatal em março de 2000 (que manteve até 2004),  criou o departamento de gestão de risco do banco, que na altura ficou a liderar. Mas agora sublinha:
O risco na banca portuguesa, e em geral na altura, não tinha a importância que veio a ter, em consequência da crise financeira. (…) Como qualquer alteração profunda numa organização, inevitavelmente criou ondas de choque e reações substanciais. A criação de um departamento que ia ter a possibilidade de contrapor não foi igualmente bem aceite por toda a gente dentro da instituição. É normal porque havia uma estrutura instalada e era relativamente novo em Portugal.”.
Ora, justamente em relação à existência e eficácia desse departamento é que a deputada socialdemocrata Margarida Mano questionou António de Sousa se, face aos desenvolvimentos que impulsionou no atinente à gestão de risco, tinha ficado surpreendido que o conselho de administração tenha ignorado os pareceres do departamento de risco na concessão de crédito. Com efeito, segundo as conclusões da auditora EY no relatório sobre a gestão do banco entre 2000 e 2015, a CGD aprovou a concessão de 13 créditos que mereceram parecer desfavorável da Direção Global de Risco, sem que a administração tenha apresentado qualquer justificação para essa decisão. E estas 13 operações, a maioria das quais com o aval de António de Sousa ou de Carlos Santos Ferreira, acabaram por resultar em perdas de 48 milhões de euros. Nas avaliações das operações de reestruturação, mereceram chumbo, mas avançaram na mesma e o banco perdeu quase dez vezes mais.
A isto, o antigo presidente justificou que havia “conversas frequentes” entre administração e gestão risco que acabavam, maioritariamente, por chegar a consenso. E explicou:
Num banco, a responsabilidade é do conselho de administração e tem de ter capacidade última de tomada de decisão. Já se questionou se o parecer de risco deve ou não ser vinculativo. Não deve porque a responsabilidade é do conselho de administração.”.
E acrescentou:
O relatório da EY foca-se muito nas operações e, muitas vezes, não só pode analisar só uma operação, mas a relação complexa com o cliente”.
É óbvio que ninguém exige que um parecer dum departamento de consulta seja vinculativo, mas – Sousa sabe-o – impedi-lo, condicioná-lo ou ultrapassá-lo facilmente sem apresentar razões de monta, escudando-se na responsabilidade da administração, é superficial e pode vir a ser perdulário. É caso para perguntar para que se criam tais departamentos. 
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Também a falta de memória atacou José Pedro Cabral dos Santos, ex-diretor do negócio de grandes empresas da CGD, que não se recorda de qual foi o administrador que defendeu o avanço da concessão de créditos de 350 milhões de euros à Fundação José Berardo contra a opinião expressa pela Direção-Geral de Riscos do banco público. Na verdade, esta direção-geral, na avaliação que fez ao negócio em 2007, manifestou-se contra a operação por causa da inexistência dum aval e pelas reduzidas garantias associadas. Mas o crédito avançou.
Presente na segunda CPI à recapitalização e gestão da CGD, Cabral dos Santos explicou, pelo recurso à memória, que a operação fora aprovada por se ter considerado que “se podia prescindir do aval em função da qualidade das contas da Fundação José Berardo”. Todavia, pressionado por Virgílio Macedo, deputado do PSD, o ex-diretor não conseguiu precisar quem é que defendeu que se prescindisse do aval. Nem mesmo, quando o deputado lhe quis avivar a memória recordando-lhe que nas reuniões que debateram o crédito a Berardo, em sede de Comissão Alargada de Crédito da CGD, estavam presentes, entre outros, Armando Vara, Francisco Bandeira, Santos Ferreira ou Celeste Cardona, conseguiu Cabral dos Santos lembrar-se de quem defendeu, de forma legítima, as operações.
O mesmo ex-diretor da CGD já tinha explicado que nem sempre cabia à sua direção emitir recomendações sobre operações que analisava, como foi o caso dos créditos a Berardo. E disse:
Nas situações em que a Direção-geral de Empresas tinha uma atuação reativa – ou seja, análises a eventuais negócios a pedido dos clientes –, a única coisa que se fazia era emitir pareceres para que o conselho [alargado de crédito] decidisse”.
Sublinhando que na altura não existia qualquer regra em vigor no banco que exigisse um rácio de cobertura de 120% em garantias, pelo que se considerou que o rácio de 105% era suficiente para ‘blindar’ a operação, disse que o grande problema foi a queda brutal dos títulos do BCP. Assim, como lembrou aos deputados, dada a queda das ações do BCP compradas por Berardo, a CGD acabou por exigir 11 reforços de garantias ao empresário até junho de 2008, mas que o “acumular da desvalorização” destes títulos continuou, levando ao “primeiro incumprimento de juros da Fundação José Berardo em novembro de 2008”.
E Cabral dos Santos, embora admita que Joe Berardo era um cliente que sempre teve grande atenção da parte da Caixa, recusou que este cliente tenha tido acesso a qualquer tipo de tratamento privilegiado no banco. São estas as suas palavras a este propósito:
Que eu conheça, a Metalgest e a Fundação nunca tiveram qualquer privilégio de tratamento na Caixa, muito menos à margem das regras”.
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Há, no meio de tido isto uma acusação/desculpa de António de Sousa ao seu antecessor: “administradores não entenderam bem o que estavam a assinar” em operação ruinosa da CGD
Refere-se à “Boats Caravelas”, uma das operações mais ruinosas, iniciada em 1999, quando o banco era presidido por João Salgueiro. Porém, o seu sucessor António de Sousa provisionou (“imparizou”) a totalidade do montante do valor (447 milhões de euros) e as perdas ascenderam a 340 milhões em 2005/2006. Agora diz que houve administradores que aceitaram a operação sem compreenderem a complexidade e risco associados. Tratava-se de um credit default swap, ou seja, um contrato celebrado entre a CGD e o banco suíço Crédit Suisse em que as duas instituições dividiam o risco sobre a carteira de ativos. Como explicou o antigo presidente da Caixa, a operação significava que a CGD tomava instrumentos, as obrigações “Boats Caravela”, que continham um conjunto de créditos. Na primeira tranche, a perda era responsabilidade do Crédit Suisse. No nível intermédio, a mezzanine, a responsabilidade passava para a Caixa e, na última, era novamente da instituição internacional. E Sousa refere:
O problema aconteceu logo no início porque acabou logo [atingindo o limite máximo rapidamente] e a responsabilidade passou para a CGD. Porque é que se faz uma operação destas? Porque pelo meio o que havia era o pagamento de uma taxa de juro substancial que permitia ter lucros para compensar outras operações que tinham dado prejuízo.”.
Aliás, também foi esta a conclusão da EY. Com efeito, apesar de a operação ter sido começada em dezembro de 1999, é feita referência às “Boats Caravela” no relatório da auditora à gestão do banco público entre 2000 e 2015 devido ao impacto que veio a ter nas contas. A EY explicou que os motivos inerentes à operação são meramente contabilísticos, com a necessidade de eliminar uma menos valia potencial transitória numa carteira de obrigações de taxa fixa. E acrescentou que houve uma tomada de operação com um risco elevado, sem evidência de análise de suporte nem conhecimento para os riscos inerentes à operação – do que resultou uma perda de 340 milhões de euros.
Embora não diga quem terá sido o ideólogo da operação, porque a mesma nunca lhe foi explicada quando sucedeu a Salgueiro, Sousa adianta apenas saber que “foi feita num prazo relativamente curto” e que não sabe se foram analisados os riscos inerentes a esta operação.
Durante a audição, Sousa afirmou que, em quase todos os conselhos onde esteve, “as decisões finais acabaram por ser consensuais” entre o que chegava do parecer do risco e da decisão do conselho alargado de crédito. Isto porque em muitas operações se faziam acertos para a aprovação de alguns dos financiamentos. E recorda que muitas das operações da Caixa derivaram de um ambiente decorrente de algumas privatizações. “A CGD foi o banco português que mais financiou operações de privatização” – disse.
A este respeito a posição da CGD no BCP voltou à baila e António de Sousa sublinhou que a participação de 8% que o banco público teve no BCP “teve importância, era possível, mas penalizou o rácio de capital da CGD”. E disse que foram operações que fizeram parte de uma estratégia do Governo em utilizar a Caixa para a defesa dos centros de decisão que aconteceram em vários governos. Mas, “temos de ter consciência que isso tem custos pesados” – observou.
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De quem assegura que não houve pressões políticas só pode dizer-se que não sabe que a estratégia do Governo é política. Aliás, um gestor público deveria saber que as privatizações resultaram de opção ou de imposição política. Ora quem não sabe, quem não se lembra é inimputável. Ora, se a procissão continuar como começou e como está (Sousa foi o primeiro líder da CGD a ser ouvido; a seguir, virão outros), a CPI cai no buraco, apesar das denúncias de Almerindo Marques, do antigo ROC e do antigo presidente do Conselho Fiscal – boas exceções.
E anda o negro dum trabalhador ou pequeno empresário – branco ou de cor – a fazer o pino ante dirigentes locais da CGD para mostrar que é digno do crédito e paga pela medida grande se não cumprir atempadamente! Há portugueses bem mais iguais que outros…
2019.04.30 – Louro de Carvalho 

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