É uma das muitíssimas entradas no
denominado Dicionário de Expressões e
Frases Latinas, do Padre Félix, compilado
por HENERIK KOCHER (cf http://www.padrefelix.com.br/fr_lat_i7.htm).
E
integra um segmento textual dos vv 358-360 da Ars Poetica (designação dada por
Quintiliano à Epistola ad Pisones),
de Quintus Horatius Flaccus.
Eis
a transcrição, tradução e comentário, segundo a edição da Arte Poética, de Horácio, com Introdução, Tradução e Comentário de K. M. Rosado Fernandes, da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa (Editorial Inquérito
Limitada, Lisboa):
“(…) et idem / indignor quandoque bônus dormitat Homerus; uerum operi longo
fas est obrepere somnum”.
“(…) e eu mesmo me indigno todas as vezes que dormita o bom Homero: contudo,
é natural que, na descrição de tão grande assunto, alguma vez nos domine o sono”.
“358-360:
Mesmo Homero, o mais perfeito dos poetas e que deve ser o modelo de todos,
também se engana por vezes. Horácio faz-se eco das críticas da escola
alexandrina de Zoilo (a quem chamavam “o chicote de Homero”), que, na obra do grande épico,
descobria um sem número de incoerências e de erros. Estas afirmações provinham
sobretudo do desconhecimento científico da língua homérica que parecia, com
efeito, fugir às regras da língua jónica.
A imagem
de que era o sono o causador desses deslizes, já aparece nalguns autores, que
ligavam a mesma imagem a outros escritores: Cícero, apud Plut., Cícero, 24,
justificava assim os erros de Demóstenes, e Quintiliano, Inst. Or., 1, 24:
relata as duas justificações, a de Cícero referente a Demóstenes e a de Horácio
respeitante a Homero.
Que Homero era considerado o
príncipe dos poetas é a convicção de Horácio nos vv 141-152 da mesma obra, como
se vê a seguir:
“Dic
mihi, Musa, uirum, captae post têmpora Troiae
qui mores hominum multorum uidit et
urbes”,
Non fumum ex fulgore, sed ex fumo dare lucem
cogitat, ut speciosa dehinc miracula promat,
Antiphaten Scyllamque et cum
Cyclope Charybdim. 145
Nec reditum Diomedis ab interitu Meleagri,
nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo;
semper ad euentum festinat et in médias res
non secus ac notas auditorem rapit, et quae
desperat tractata nitescere posse relinquit, 150
atque ita mentitur, sic ueris falsa remiscet,
primo ne mediam, médio ne discrepet imum.
“Fala-me,
ó Musa, do varão que, após os tempos da conquista de Troia, cidades e costumes
viu de tantos homens”. Não pretende tirar fumo de
um clarão, mas sim de fumo tirar luz, para daí colher brilhantes prodígios: Antífates,
Cila e Caríbdis com o Ciclope. Não inicia o retorno de Diomedes pela morte de
Meleagro, nem a guerra de Troia pelos dois ovos; sempre se apressa para o desenlace e
arrebata o ouvinte para o meio da ação, como se esta lhe fosse conhecida, e
deixa de lado a matéria que ele sabe não poder brilhar. De tal modo cria
ficções, de tal modo mistura fábulas com a verdade, que nem o meio destoa do
princípio nem o fim do meio.
Entretanto, muitas referências a expressões e frase latinas exibem
variantes da que está vertida em epígrafe e que vem enquadrada na obra didática
de Horácio, como foi explanado.
O próprio dicionário acima referenciado faz as seguintes entradas
com as convenientes remissões de umas para as outras. Por exemplo:
Em relação à
letra Q,
388. Quandoque
bonus dormitat Homerus. Até o bom Homero às vezes cochila (dormita). Até o sábio se engana.
Vide: Aliquando bonus dormitat Homerus. Aliquando dormitat
et Homerus. Dormitat et Homerus. Indignor quandoque
bonus dormitat Homerus. Interdum etiam
bonus dormitat Homerus. Qui enim nimium
invigilat, interdum dormitat.
Em relação à letra
A,
1346. Aliquando
bonus dormitat et Homerus. Até o bom Homero às vezes
cochila (dormita). Até o sábio se engana. Aliquando
dormitat et Homerus. Até Homero às vezes cochila (dormita). Vide: Dormitat
et Homerus. Indignor quandoque bonus dormitat
Homerus. Interdum etiam bonus dormitat
Homerus. Quandoque bonus dormitat Homerus. Qui enim
nimium invigilat, interdum dormitat.
***
Estes considerandos podem ser feitos a propósito da
obra de grandes mestres, que de vez em quando na fluência discursiva também se
enganam. Recordo que um pregador, ao falar da cura dos leprosos, dizia que Jesus
mandara mostrarem-se aos sacerdotes, pois, como eram os sacerdotes que tinham a
competência para declarar a “greve”, também tinham competência para declarar a
cura. É óbvio que os sacerdotes declaravam o estado de lepra e não a greve. E o
sacerdote tentou emendar a mão dizendo que a lepra do pecado é a maior greve
que o povo faz contra Deus. Um conferencista disse com à vontade: “isto não é
como temos façado”, em vez de dizer “feito”.
Enfim, em bom pano cai a nódoa, como sói dizer-se.
Mas recentemente lembrei-me disto a propósito do
pertinente comentário do colega Manuel Sousa, que diz, da “Nova Gramática do Latim”, do professor Frederico Lourenço, que “é
um excelente livro para quem ‘sabe latim’, ‘ineficiente livro’, para quem tem
veleidades autodidatas” (não escreve segunda a nova ortografia). E tem razão. Mas Manuel Sousa não é um autodidata,
pois, como diz outro colega, Evaristo Miguel, até detetou um erro na página 313, “que, possivelmente, passaria
despercebido a qualquer um de nós”. E a mim, que fiz uma leitura relativamente
atenta do livro, não o detetei.
E diz Manuel de Sousa – e bem – que “a aprendizagem do
Latim é sistemática, implica tradução e retroversão, ao lado uma da outra, o
que não acontece neste livro” e que “o aluno quer é aprender Latim”.
Considera o livro bom “como proposta de integração”. Entretanto,
refere que a pura e simples extinção do som ‘V’ causará estranheza aos latinistas
escolásticos, menos familiarizados com a pronúncia restaurada. E dá o exemplo
da palavra ‘vulgus’, escrita e pronunciada uulgus. Porém, reconhece que “é o caminho seguido por todos os grandes
latinistas estrangeiros”, sendo “irónico que os grandes especialistas da
língua e cultura romanas não façam parte dos países novilatinos”, e que “são sobretudo as Universidades de
Princeton, Oxford e os nórdicos e anglo-saxões que mantém viva a língua de
Cícero e Santo Agostinho”.
Por seu turno, o também já referido colega Evaristo Miguel
confessa com humildade que “saber Latim” lhe parece que “nenhum de nós sabe
propriamente, embora tenhamos umas (boas) bases”, mas continua
interessado no Latim por verificar que, no dia a dia, “continua a ser útil” e
porque admira “a lógica, a trama, a liberdade do texto, a economia (?)
duma língua nascida e, depois, apurada, há mais de 2.000 anos, e que ainda hoje
se mantém viva e é analisada e estudada”, é tão marcante a ponto de “só, em
termos de numeração”, os árabes lhe terem passado a perna.
Reconhece dar mais importância à versão “ad sensum” que à tradução
“ad litteram”, pois a primeira “permite não ter a necessidade de traduzir de
forma perfeita e completa”, o que exige o recurso ao dicionário, sendo
suficiente que “se perceba o sentido”.
Limita-se a tolerar a pronúncia restaurada, mas recorda que, em
Roma, as lápides, colunas, paredes, etc., (…) em Igrejas, Fórum, Palácios,
Museus, por norma o “u” era substituído por “v” (Pivs Qvintvs).
Por outro lado, refere que “a pronúncia ´’à italiana’ também poderá ser
discutível, mas, foi na Itália que mais se falou o Latim de Cícero (Kiquero?), Horácio (Horatio?), etc...”. Por isso, infere
que “talvez os italianos estejam mais perto da verdadeira pronúncia”. E verifica a importância dada ao
latim na cidade de Berlim e na Roménia (Romania, para os antigos romanos).
***
Ora, Manuel Sousa detetou efetivamente um erro de
Frederico Lourenço na página 313 da Nova
Gramática do Latim. Com efeito, num exemplo de transformação de ablativo
absoluto em oração subordinada de sentido equivalente, deixou o nome em ablativo
quando as formas participiais que integram o pretérito perfeito do conjuntivo
da voz passiva estão bem colocadas em nominativo: senatus haberi ante Kal. Febr. per legem Pupiam, id quod scis, non
potest, neque mense Februario toto nisi perfectis aut reiectis legationibus
(O senado não
pode reunir, como sabes, antes das calendas de fevereiro, por causa da Lei
Púpia, nem em todo o mês de fevereiro, a não ser que tenham sido completados ou
adiados os assuntos referentes às embaixadas). Com a transformação oracional, ficou: (…) nisi perfectae sint aut
reiectae legationibus – quando deveria ter ficado (…) nisi perfectae
sint aut reiectae legationes. Porém, no segundo exemplo, Lourenço não
errou.
Quanto ao resto, começo por falar da pronúncia do
latim, um verdadeiro problema. Quando era aluno de latim, a gramática falava de
três tipos de pronúncia: a tradicional (portuguesa), em uso nos colégios e liceus; a romana (italiana), nos seminários e universidades pontifícias; e a
restaurada, nas universidades. E aquela que eu era obrigado a seguir era a
romana. Quando passei a lecionar no ensino público, tive que adotar a pronúncia
restaurada, mantendo a romana na esfera eclesiástica. Só me aborrecia que me
dissessem que a única pronúncia científica era a restaurada e a contradição
espelhava-se na comparação com as línguas atuais, dando o exemplo de “Caesar,
aris”. Diziam-me que em alemão ficou Keller. E eu retorquia: “E, em Russo, é
Tsar, Czar ou Csar; em italiano, é Tchesar; e, em português, é César”. Lá se ia
à vida a autoridade para o som de ‘K’ ou de ‘ai’ para ‘ae’! Mas lá me iam
convencendo com as alegadas onomatopeias decorrentes de alguns textos… E teve
de ser e sem problemas de maior.
Por isso, julgo elucidativa a nota de António Freire
na 4.ª edição da Gramática Latina, pg
15:
“Dá-se esse nome [pronúncia restaurada] à pronúncia do latim literário
do tempo de Cícero e de Virgílio. Essa pronúncia tem sido, tanto quanto
possível, restaurada e é adotada hoje
em quase todas as Universidades nacionais e estrangeiras. No Congresso de
Avinhão, em 1956, formulou-se o voto de que esta pronúncia fosse por todos
adotada; e, de facto, no Congresso de Lião, em 1959, quase todos os
congressistas a adotaram.”.
Assim, não fazia qualquer sentido aprender no liceu uma pronúncia
e ter de adotar outra na universidade. E a pronúncia restaurada generalizou-se
e diminuiu a frequência dos cursos de latim, apesar da renovação do seu ensino.
É o tecnicismo e o facilitismo em ação em detrimento das humanidades.
Quanto ao uso do ‘u’ e do ‘v’, como do ‘i’ e do ‘j’, devo referir
que vi muitos textos com ‘v’ quando o som é consoante e ‘u’ quando e vogal –
tanto na grafia com maiúsculas como como minúsculas. E vi menos com ‘j’ e ‘i’
nas mesmas circunstâncias. Há, porém, que referir que estas consoantes ‘v’ e ‘j’
são as denominadas consoantes ramistas, porque alegadamente inventadas por
Petrus Ramus no século XVI e vulgarizadas no século XVIII.
Nos textos latinos e nos antigos das línguas românicas, ‘u’ é
vogal e consoante em carateres minúsculos, como “uulgus”, “iuuentus”; mas é
grafado ‘V’ e carateres maiúsculos, como “PAVLUS”, “VERGILIVS”. Por conseguinte,
é natural que nos epitáfios, inscrições e quejandos apareça ‘V’ em vez de ‘U’. Em
suma, Petrus Ramus não inventou o ‘V’ (maiúsculo),
mas inventou o ‘v’ (minúsculo) e o ‘U’ (maiúsculo) e especificou o uso do ‘u’ (vogal) e do ‘v’ (consoante), bem como o uso do ‘U’ (vogal) e do ‘V’ (consoante). Quanto ao ‘I’ (maiúsculo) e ‘i’ v’ (minúsculo), Ramus restringiu o seu uso
para o emprego do som vogal, como em “Ingenium”, “genitor”, “idem”, “felix”; e
inventou o ‘J’ (maiúsculo) e o ‘j’ v’ (minúsculo) para palavras como “Jesus”, “Juventus”,
“abjicio”, “jaceo”… Mas a onda, de há uns anos a esta parte, é reescrever os
textos com ‘u’ e ‘i’, mantendo-se o ‘V’ consoante no início de frase ou em
caixa alta.
A tradução “ad sensum” tem vantagens como resposta à
idiossincrasia da língua de destino, ao passo que a tradução “ad litteram” é
mais fiel ao texto-fonte, mas desde que não se caia no literalismo, pois deve
perceber-se que há idiotismos no latim a que não corresponde o idiotismo da língua
de destino. E dou um exemplo: não faz qualquer sentido traduzir o provérbio latino
“Hoc opus, hic labor est” por “esta é
a obra, este é o trabalho”. Efetivamente, ficamos mais no sentido latino se
traduzirmos por “aqui é que a porca torce
o rabo”. Obviamente que não traduzo “ad sensum” as primeiras palavras da “Aulularia” como sentido que lhes deu
Plauto (Só Gil Vicente o faria bem): “Ne quis miretur qui sim paucis eloquar”. Assim, a nova Tradução da
Bíblia, da responsabilidade da CEP, quer ser literal sem ser literalista!
A aprendizagem do latim tem de ser sistemática exigindo em paralelo
com a gramática muitos exercícios de tradução e retroversão. E esses podem ser
integrados no compêndio de gramática (alguns o fazem, mas o volume do livro aumenta ou os exercícios são
poucos), como podem ser fornecidos à
parte. Por exemplo, A. Freire, para lá da gramática, editou “Retroversão Latina ou Exercícios Latinos” e “Scripta Latina”. E
G. Zenoni, além da gramática, editou “Exercícios de Morfologia Latina” e “Sintaxe Latina”.
Não conhecia a Gramática
Latina, do Padre João Ravizza, um grande livro. Com a informação que os
amigos deram, guardei-a em impressão Pdf
e já fiz uma leitura apressada. E, apesar da sua nomenclatura estar mais próxima
da nomenclatura brasileira, penso que me será muito útil.
Aliás, como todos os caminhos vão dar a Roma, o importante é que se
multipliquem as vias do incremento e renovação do ensino do latim. Elas não o
esgotam e podem, na linha da complementaridade, servir bem a causa.
Recordo que Frederico Lourenço entende que se estuda latim para
colher o conteúdo e o sabor dos textos, discorrer sobre eles e ficar a perceber
melhor a nossa língua. Não obstante, há um núcleo de estudiosos que estudam
latim para bem o falar e o escrever. Que o digam os membros da fundação Latinitas no Vaticano e os principais documentos
conciliares e pontifícios.
Enfim, gosto de ler os vários e-mails dos colegas e com eles venho
aprendendo muito. E o José Cerca, que conheci numa formação no âmbito da Universidade de Verão em 2009, promovida
pela Reitoria da UP, mantém-se um bom pontífice.
2019.04.04 –
Louro de Carvalho
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