quinta-feira, 18 de abril de 2019

O que pedem os motoristas de matérias perigosas em greve

Desde as 0 horas do passado dia 15 os motoristas de transporte de matérias perigosas, de acordo com o respetivo pré-aviso, estavam em greve por tempo indeterminado para exigirem o reconhecimento da categoria profissional e, consequentemente, melhores condições salariais.
Entre os motoristas da Uber e outras plataformas de transporte alternativo, falava-se de “caos” iminente. E perspetivavam-se prejuízos no setor do turismo, neste período das miniférias férias da Páscoa. Com efeito, o panorama era de confusão: bombas sem combustível ou com enormes filas de automóveis um pouco por todo o país; condicionamentos nos serviços de transporte; aviões que têm de se abastecer em Espanha; limitações nas carreiras de autocarros públicos e privados; e dificuldades que impendem sobre a distribuição postal, a manutenção de geradores e de algumas centrais de produção de energia elétrica (as acionadas com combustível transportado pelos referidos motoristas), o serviço de policiamento, o serviço de apoio a clientes por parte das seguradoras, etc. Ou seja, a greve destes motoristas deixou o país à beira duma crise energética, um bloqueio que nem com os serviços mínimos requisitados pelo Governo para Lisboa e Porto parece estar perto de ficar resolvido.
Em Portugal, são mais de 800 os camionistas especializados em transportar matérias perigosas como materiais explosivos ou inflamáveis, combustíveis, químicos, radioativos e até mesmo oxigénio – o que põe em especial risco a vida dos próprios e de pessoas que possam ser afetadas por um acidente que ocorra com os seus camiões carregados deste tipo de matérias. 
O protesto foi convocado pelo SNMMP (Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas por tempo indeterminado, que reivindicam, tal como se disse já, o reconhecimento da categoria profissional específica, o que não está previsto no atual contrato coletivo, que só identifica a categoria mais geral de “Motorista de Pesados”. E os camionistas em protesto aduzem, com razão, que, se para transportarem materiais perigosos como inflamáveis ou químicos precisam de uma certificação específica (ADR) emitida pelo IMT (Instituto da Mobilidade e Transportes), que, para trabalharem, têm de renovar a cada 5 anos, ao passo que os outros camionistas não precisam, então deve ser-lhes reconhecida esta categoria específica com a consequente valorização salarial. Assim, com a exigência de categoria própria, os motoristas de matérias perigosas pedem uma diferenciação salarial em relação aos restantes condutores.
A categoria “Motorista de Pesados” prevê uma remuneração base de 630 euros, mas Francisco São Bento, presidente do SNMMP, referiu ao Observador que o salário base de motorista de matérias perigosas deve corresponder a dois salários mínimos nacionais (ou seja, 1200 euros). E o sindicato reclama adicionalmente, um reforço do subsídio de risco mensal, que atualmente está fixado nos 7,5 euros por dia, para refletir a maior exposição ao risco a que estes motoristas estão sujeitos no dia a dia. Mas as reivindicações vão um pouco mais além: o SNMMP quer mudanças nas regras do contrato coletivo de trabalho relativamente a horas extraordinárias e a horas de serviço realizadas à noite. Para o presidente do SNMMP, o contrato coletivo de trabalho assinado em setembro de 2018 retira aos trabalhadores “dois direitos fundamentais: a remuneração pelo trabalho extraordinário prestado e o trabalho noturno”.
O contrato coletivo estabelece que “o trabalhadores móveis afetos ao transporte internacional, ibérico e nacional terão de obrigatoriamente o direito a receber o correspondente a duas horas de trabalho suplementar” por dia, com a primeira hora extra a ser remunerada com um acréscimo de 50% e a segunda hora com o de 75%. Ora, da forma como o contrato está redigido, São Bento diz que isto significa que “um motorista que faça 11 horas de trabalho recebe o mesmo que um que faça 14 horas” e que deixa de ser possível, com fórmula das horas extraordinárias, acumular com o trabalho noturno.
Militares da GNR estiveram de prevenção em vários pontos do país para que os camiões com combustível pudessem abastecer e sair dos parques sem afetarem a circulação rodoviária. E militares houve que tiveram de conduzir camiões de transporte de combustível.
***
Como era expectável, esta greve dos motoristas foi aproveitada por alguns setores sociais e políticos como arma de arremesso contra o Governo, o que não é de todo justo, este braço de ferro é entre privados, cabendo ao Governo o papel de mediador intervindo diplomaticamente. É o que defende o Presidente do PSD Rui Rio, que, ao contrário de Assunção Cristas, não culpa o Executivo pelo “caos” nas bombas de combustível resultante da greve destes motoristas. Em declarações aos jornalistas, Rio frisou que o “braço de ferro” por detrás desta paralisação diz respeito ao setor privado, cabendo ao Governo agir apenas “como um diplomata” ao interferir e intermediar entre as partes de modo a que se chegue a um acordo. E explicitou:
Não vou atacar o Governo naquilo que o Governo não tem responsabilidades, porque não estaria a ser sério. Portanto, o que compete ao Governo fazer é intermediar no sentido de se chegar a um acordo e fazer a requisição civil, que já fez, para garantir os serviços mínimos.”.
O líder socialdemocrata frisou que espera do Executivo a “capacidade de intermediação” para que a greve termine o mais rapidamente possível, mas deixou claro que este “braço de ferro” não “depende do setor público”.
Ora, estas declarações de Rui Rio, além de serem opostas às do CDS, contradizem as do deputado Emídio Guerreiro, que disse que a “causa deste tipo de situações” é o facto de o Governo “gostar de tudo prometer e a todos prometer”, induzindo “um sentimento de desilusão por parte dos diferentes grupos profissionais”. Por isso, o parlamentar socialdemocrata concluiu:
O PSD insta ao Governo para que se sente rapidamente e que, em diálogo, resolva este problema. Os portugueses não podem continuar a padecer por força das incompetências do Governo.”.
Rio choca com a opinião da líder do CDS-PP, que não hesitou em culpar o Governo pelo “caos” instalado nos postos de abastecimento um pouco por todo o país. Aduziu a líder centrista:
“O Governo não sabe governar, não é capaz de prevenir problemas como este e, de repente, toda a gente se surpreende como é que o caos se instala em tão poucas horas no nosso país, por todo o lado”.
Entretanto, nem o próprio Governo está com o pensamento de Rui Rio. Na verdade, o braço de ferro é entre privados, mas atinge um setor estratégico nacional, como o dos combustíveis e a distribuição dos mesmos no quadro da rede energética nacional e estão em causa serviços cruciais para o funcionamento do país: forças armadas, unidades de saúde, policiamento, proteção civil e emergência médica, transportes públicos, tráfego aéreo, turismo – além dos direitos laborais de cuja garantia e exercício o Governo, enquanto órgão executivo do Estado não pode deixar de curar. Tanto assim é que o Governo já procedeu à requisição civil para garantir os serviços mínimos (que, dizem os governantes, foram violados no primeiro dia de greve), que estão claramente discriminados para as áreas de Lisboa e do Porto e já prometeu alargar os serviços mínimos a todo o território nacional, no que está a ser contrariado pelo sindicato respetivo, pelo que poder ter de recorrer à mediação arbitral. Tem reunido com a ANTRAM (Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias) e com o SNMMP para tentar terminar esta paralisação ou, ao menos, minorar os seus efeitos.
***
Obviamente a imprensa internacional deu conta da “crise energética” vivida em Portugal, à medida que os efeitos da greve ganhavam dimensão. Assim, Portugal foi notícia em relação às consequências da greve dos motoristas de matérias perigosas com títulos em órgãos de comunicação do Reino Unido, Espanha, Estados Unidos e França.
A edição online do dia 17 do Financial Times noticiava: “Greve de motoristas de camiões-cisterna desencadeia ‘crise energética’ em Portugal”. E escrevia:
O Governo português implementou medidas de emergência para salvaguardar o abastecimento de combustível para ambulâncias, aeroportos, bombeiros e outros serviços críticos, quando a greve de motoristas de camiões-cisterna entrava no terceiro dia”.
A Reuters titulava: “Crise energética de Portugal agrava-se com o arrastar da greve dos motoristas de camiões-cisterna de combustíveis”. E desenvolvia:
A escassez de energia em Portugal intensificou-se esta quarta-feira, com a greve dos motoristas a entrar no terceiro dia, no pior tumulto industrial do mandato de quatro anos do Governo socialista”.
A BBC apontava: “Escassez de combustível em Portugal com greve dos transportadores”. E, no site da cadeia britânica, lê-se:
Os postos de combustíveis estão a ficar secos em todo o país, apenas alguns dias depois de os motoristas terem começado uma greve nacional devido aos salários e condições [de trabalho].”.
O The Independent noticiava que “a greve de combustível atinge passageiros e condutores no início da corrida das viagens de Páscoa”. O The Sun alertava na sua edição online que “os britânicos que se dirigem para Portugal podem ver os seus voos cancelados ou desviados porque os aeroportos locais estão a ficar sem combustível”. E referia que “os passageiros que viajaram com a easyJet e a Ryanair já foram afetados por voos desviados ou cancelados”.
O jornal espanhol on line El Mundo também noticiava que “a greve de transportadores paralisa Portugal e põe em risco as deslocações da Semana Santa”, acrescentando que “metade dos postos de combustível portugueses estão secos e o preço disparou onde ainda há combustível”.
O The New York Times escrevia que os “postos de combustíveis portugueses estão a ficar secos”, com uma notícia da Associated Press, em que indica:
A greve de cerca de 800 motoristas de materiais perigosos provocou uma corrida para encher depósitos, encerrando centenas de postos de combustível”.
Já no dia 16, o Le Figaro noticiava que o Governo de Portugal recorreu à requisição civil de transportadores de combustível para fazer face à greve dos motoristas de matérias perigosas, “cuja greve levanta o risco de escassez em todo o país, em particular nos aeroportos”.
***
Entretanto, foi publicado o Despacho n.º 4204-A/2019, de 17 de abril, com efeitos imediatos, que define a rede especial de postos de abastecimento que integra a Rede Estratégica de Postos de Abastecimento (REPA), bem como as entidades prioritárias autorizadas a abastecer nos postos integrantes da REPA. Por outro lado, determina que a REPA integra os postos de abastecimento identificados no anexo ao despacho (são 310), que cobrem todo o território nacional, e que esses postos “ficam obrigados a reservar, para uso exclusivo das entidades prioritárias, e para cada tipo de combustível, pelo menos, uma unidade de abastecimento, nos termos do Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis, as quais devem ser inequivocamente assinaladas, nos termos do n.º 5 da Portaria n.º 469/2002, de 24 de abril.
Mais: os postos de abastecimento pertencentes à REPA ficam obrigados a reservar, para uso exclusivo das entidades prioritárias, uma quantidade de cada produto igual a:
a) 10 000 l de gasóleo, ou 20 % da sua capacidade de armazenagem de gasóleo, no caso dessa capacidade de armazenagem ser inferior a 50 000 l;
b) 4000 l de gasolina, ou a totalidade da capacidade de armazenagem se esta for inferior;
c) 2000 l de GPL-auto, ou 20 % da sua capacidade de armazenagem de GPL-auto, no caso dessa armazenagem ser inferior a 10 000 l.
E são entidades prioritárias: as Forças Armadas, as forças de segurança e os agentes de proteção civil; os serviços de emergência médica e transporte de medicamentos; as entidades públicas ou privadas que prestam serviços públicos, designadamente transporte coletivo de passageiros, recolha de resíduos e limpeza urbana, serviços de água, energia e telecomunicações; as entidades que asseguram o transporte de pessoas portadoras de deficiência; e outras entidades que solicitem a sua equiparação a entidade prioritária, mediante pedido à Secretária-Geral da Administração Interna da obtenção de autorização para este efeito, que será decidida no prazo máximo de 24 horas.
Para garantia do cumprimento do disposto no despacho, os postos REPA podem requerer a presença de elementos das forças de seguranças, nos termos do n.º 10 da Portaria n.º 469/2002, de 24 de abril. E, ainda, os postos REPA beneficiam de prioridade de abastecimento face aos restantes postos, devendo, para o efeito, promover-se o destacamento das forças de segurança necessárias para assegurar o seu abastecimento.
***
Na manhã de hoje, dia 18, a greve foi dada por terminada e a situação de abastecimento ficará regularizada em breve, mantendo-se a vigência da REPA enquanto e sempre que for necessário.
Com efeito, o SNMMP assinou com a ANTRAM um princípio de acordo. Não é um acordo fechado, mas um protocolo escrito em que as partes se comprometem a negociar alterações ao acordo coletivo de trabalho em vigor com vista a responder às reivindicações dos trabalhadores.
Ora, as partes concordam em iniciar uma negociação coletiva (a fechar antes do fim do ano) “que promova e dignifique a atividade de motorista de mercadorias perigosas. Em causa, está a “individualização da atividade no âmbito da tabela salarial”, a revisão do “subsídio de risco”, a existência de “formação especial”, a atribuição de “seguros de vida específicos” e a promoção de “exames médicos específicos”. As negociações terão lugar no Ministério das Infraestruturas e Habitação, cabendo ao Governo a mediação das negociações e a vigilância face às questões que afetam esta atividade.  E, para garantir o início das negociações e em conformidade com a exigência da ANTRAM, o SNMMP cessa, com efeitos imediatos, a greve geral dos motoristas, que teve início no dia 15 de abril, lê-se num dos pontos.
O cimento que cola este protocolo negocial é a “boa-fé” e as partes prometem “guardar confidencialidade quanto ao teor das negociações”. Ou seja, a intenção é só divulgar à comunicação social o acordo final, guardando reserva em torno dos “acordos de princípio” que forem sendo alcançados e que terão de ser respeitados pelo sindicato e pela associação durante todo o processo negocial. E o Governo registará todas as reuniões em ata, comprometendo-se as partes a garantir a dinâmica das negociações, respondendo e apresentando contrapropostas ao longo do processo. E, no decurso das negociações, “as partes comprometem-se a diligenciar pela criação e manutenção de um clima de diálogo e paz social, mantendo o diálogo como forma de resolução de diferendos ou divergências entre as partes até ao fim das negociações”.
***
Há, de facto, profissões cujo risco, melindre e responsabilidade postulam atenção especial. 
Ficará Marcelo satisfeito com o Governo, já que lhe exigia maior intervenção no caso?
Enfim, deste lado, voltou o contributo para a paz social e laboral.

2019.04.18 – Louro de Carvalho


Sem comentários:

Enviar um comentário