quarta-feira, 10 de abril de 2019

A vida tem várias dimensões, mas a verdade é que só temos uma vida


Quem o diz é o Primeiro-Ministro a propósito da necessidade de conciliar a vida profissional, pessoal e familiar. E acrescenta que “ou conseguimos conciliar essas dimensões ou a vida fica incompleta”. Tudo isto foi afirmado na apresentação do programa “3 em Linha”, apresentado na tarde de 5 de dezembro de 2018, cujas medidas foram concebidas para entrarem em vigor neste ano de 2019, segundo a então Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, que adiantou aos jornalistas que o Governo já estava mesmo a trabalhar em algumas delas.
Ora, o grande objetivo do programa “3 em linha” é promover a conciliação da vida profissional, pessoal e familiar. E, entre as medidas propostas, está o alargamento da licença parental inicial exclusiva do pai de 15 para 20 dias, a majoração do montante do abono de família em função da idade, nos primeiros 6 anos de vida, e a criação de um projeto-piloto para a adoção de medidas promotoras desta conciliação por parte de empresas públicas e privadas.
António Costa, que proferiu as suprarreferidas asserções, aproveitou para apelar a um “esforço coletivo” para concretizar este objetivo, nomeadamente ao nível da contratação coletiva, e esclareceu que “este não é um desafio só para esta legislatura, é coletivo e para a próxima década. E Vieira da Silva, anotando que “este programa não se esgotará este ano, nem sequer nos anos mais próximos”, assinalou que é um trabalho a fazer de modo “profundamente transversal”, isto é, com o envolvimento de “todas as áreas governativas.
À saída da apresentação, este governante acrescentou que “seguramente” todas as medidas relativas às licenças parentais e aos investimentos em equipamentos sociais entram em vigor em 2019, havendo outras propostas que carecem de discussão com os parceiros sociais para avançarem, nomeadamente no atinente à definição da conciliação em causa como objetivo da contratação coletiva.
E, quanto à linha de apoio financeiro prevista para as PME (pequenas e médias empresas) que fomentem a conciliação da vida pessoal, familiar e profissional, a então Ministra da Presidência avançou que não havia ainda um montante definido, o qual dependerá do número de empresas que se candidatarem.
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Também a nova lei comunitária, aprovada em Bruxelas, no passado dia 4 de abril, estabelece uma norma mínima de 10 dias úteis de licença de paternidade para o pai (ou um segundo progenitor equivalente, se reconhecido pela legislação nacional) por ocasião do nascimento de um filho, que deve ser paga ao nível da compensação em caso de baixa por doença.
Na verdade, o Parlamento Europeu (PE) aprovou, na passada quinta-feira, com 490 votos a favor, 82 contra e 48 abstenções, a nova diretiva, já acordada com o Conselho (Estados-membros), sobre a conciliação entre a vida profissional e familiar, com a qual a UE (União Europeia) espera que seja fomentada a utilização de licenças para assistência à família por parte dos homens.
O texto atualiza também as normas mínimas sobre a licença parental pelo nascimento ou adoção de uma criança, mantendo o atual direito a 4 meses de licença, mas com 2 meses não transferíveis entre os progenitores. Prevê que os Estados-membros fixem “a um nível adequado” a remuneração ou o subsídio do período mínimo de licença parental não transferível, tendo em conta que o gozo da licença parental conduz frequentemente a perda de rendimento familiar e que a pessoa da família com maiores rendimentos (geralmente o homem) só pode gozar esta licença “se for suficientemente bem remunerada, tendo em vista a manutenção de um nível de vida decente”. E, por outro lado, o novo texto legislativo, uma iniciativa no quadro do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, introduz um direito individual à licença de cuidador.
Assim, cada trabalhador terá direito a, pelo menos, 5 dias úteis de licença por ano para prestar cuidados pessoais ou apoio a familiar ou a pessoa que viva no mesmo agregado familiar, que necessite de cuidados ou apoio significativos por razões médicas graves.
Faz notar o PE que se prevê um aumento contínuo das necessidades de cuidados na UE, devido ao envelhecimento da população e consequentes limitações relacionadas com a idade. As novas regras reforçam também o direito dos progenitores e dos cuidadores a solicitarem regimes de trabalho flexíveis, como o teletrabalho. E a diretiva incentiva os Estados-membros a avaliarem se as condições de acesso e as regras relativas ao exercício do direito à licença de paternidade, à licença de cuidador e aos regimes de trabalho flexíveis devem ser “adaptadas a necessidades específicas”, tais como as de pais solteiros, pais adotivos, pais com deficiência, pais de crianças com deficiência ou vítimas de doença prolongada, ou pais em circunstâncias especiais, como as relacionadas com nascimentos múltiplos e nascimentos prematuros.
Agora, a diretiva será adotada pelo Conselho, tendo a partir daí os Estados-membros três anos para a transporem para a legislação nacional.
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será isto suficiente para a inversão das tropelias que se cometem assiduamente contra o direito do trabalho e das condições laborais que assolam os trabalhadores, sobretudo as mulheres? Não bastam leis facilitadoras contra leis cada vez mais opressoras e as praticas à revelia das leis. É preciso reforçar a fiscalização e acabar com as impunidades. é chocante a leitura dum texto de Ana Pago no Life do DN (https://life.dn.pt/comportamento/porque-esta-o-trabalho-a-deixar-nos-doentes/), de 8 de abril, sob o título “Porque está o trabalho a deixar-nos doentes?”.
diz ela que se vive fazendo mil coisas sem que o dia chegue para tudo, o que se repercute na saúde e se torna inevitável. E poderia denunciar a invasão dos tempos de folga, noites, fins de semana, hora de refeição e férias com e-mails, sms e telefonemas.  
Os sintomas de doença são vários e não se fazem esperar, surgindo mesmo antes de a jornada laboral começar. Jeffrey Pfeffer, autor do livro Dying for a Paycheck (Morrendo por um Salário), especialista em comportamento organizacional e professor na Universidade de Stanford (EUA), disse, em entrevista à BBC, que isso é natural, pois “o trabalho se tem tornado desumano” e “está a matar as pessoas e ninguém se importa.
A psicóloga social Fátima Lobo, professora do Centro Regional de Braga da UCP (Universidade Católica Portuguesa) na área da Psicologia do Trabalho e das Organizações, denunciando a falta dum modelo integrador e multifatorial de diagnóstico e de intervenção, é perentória a sublinhar:
A toxicidade do trabalho não reside na sua natureza e sim no modo unilateral de implementação de medidas que visam, primordialmente, o bem-estar financeiro da organização”.
Estribada na pesquisa do psiquiatra francês Christophe Dejours, responsável pelo Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação em Paris (um dos raros a estudar a relação entre trabalho e doença mental), anota que a avaliação de desempenho se transformou no pretenso remédio para todos os males das empresas, “quando sabemos que não o é e muito menos para todos os males”.
É certo que o trabalho provoca algum sofrimento, enquanto concita o envolvimento do trabalhador, mas é diferente do provocado pelas condições de injustiça que induzem a depressão e o desespero. E Fátima Lobo, para quem as organizações tóxicas são preditoras de doença nos colaboradores e podem levar à morte, refere que “a experiência de Dejours na France Télécom [suicidaram-se ali 60 funcionários se entre 2006 e 2009] veio alertar para a necessidade de repensar o trabalho a partir das dinâmicas internas da empresa”. E Jeffrey Pfeffer, além dos suicídios, conta no seu livro a história real de Kenji Hamada, de 42 anos, empregado num escritório em Tóquio, que trabalhava 75 horas semanais e estava há 40 dias sem folgar quando morreu de ataque cardíaco (um caso entre os milhares que ocorrem em todo o mundo mercê da carga laboral excessiva e de doenças potencialmente fatais decorrentes de stress prolongado).
O referido investigador de Stanford observa:
Existem provas de que as longas jornadas, demissões e falta de planos de saúde geram enorme insegurança económica, conflitos familiares e doenças”.
E lamenta que as empresas ignorem as suas responsabilidades para com os trabalhadores. Com efeito, pouquíssimas se preocupam em avaliar como maus ambientes causam estragos profundos na saúde (em quem adoece e nas contas de quem paga os cuidados, incluindo os próprios empregadores). Por sua vez, Fátima Lobo, considerando que “a economia está a determinar e a condicionar toda a atividade humana, associada a uma psicopatologização do trabalhador”, alerta para o facto de andarmos à procura das patologias de quem trabalha, em vez de tentarmos identificar as patologias organizacionais (fatores económicos acima de tudo, falta de equipas de trabalho e de trabalho em equipa, salários injustos, desorganização, desmotivação, carga horária excessiva) que permitiriam resolver os atuais problemas. Por isso, assegura:
A solução teria de ser política, filosófica, social e organizacional, porém falta coragem, a par de uma política nacional e europeia, para se repensarem as questões do trabalho”.
E, prevendo que continuaremos a estruturar as vidas em função do modelo que subalterniza a dignidade da pessoa, acusa:
Esta falta de visão integradora é responsável não só pelos riscos psicossociais dos trabalhadores, como stressburnout, mas também pela baixa taxa de natalidade, violência doméstica, abandono dos idosos e outros problemas”.
O psicólogo clínico Vítor Rodrigues, familiarizado com esta selva diária, frisa que tudo isto sucede “porque somos ensinados a ser competitivos na esfera económica, social, no mundo do consumo, e esses estados de guerra não são compatíveis com o bem-estar interior” e observa:
Às tantas, as pessoas entram em depressão porque dão tudo, privam-se da família, do que lhes é mais importante, e acabam na mesma a sentir-se humilhadas, agredidas e prejudicadas por outros”.
Também os vários estudos da Escola de Saúde Pública de Harvard indicam que, em casos de stress intenso e prolongado, a subida do cortisol aumenta a fome e os desejos de alimentos ricos em açúcares e gorduras saturadas, que dão resposta emocional à tensão, mas prejudicam tudo o resto. E fazem do stress, o principal responsável por doenças laborais, obesidade, depressão, perda de memória, AVC, doenças cardiovasculares, falta de sono, queda de cabelo e outros distúrbios.
José Soares, professor catedrático de fisiologia na Universidade do Porto, considerando que, “entre cansaço extremo, reuniões que só nos fazem perder tempo e quase dois turnos laborais por dia, importa reconhecer que “o modo como se está a trabalhar é disfuncional” e afirma:
Estamos sistematicamente online, trabalhamos longas horas, sofremos uma enorme pressão para atingir objetivos, viajamos com frequência. Isto tem um preço para a organização e para a pessoa”.
Por via disso, escreveu Reload – Menos Stress, Melhor Performance (da Porto Editora) para mostrar como empresas e colaboradores podem aplicar os princípios do treino de atletas de alto rendimento para serem, simultaneamente, mais equilibrados e produtivos. E diz que “temos de encontrar fórmulas que nos impeçam de levar o corpo e a mente aos extremos”. E a sua fórmula compõe-se dos seguintes atos: recuperar (recover), aceitando a disfunção para sair do quadro de fadiga crónica; reabastecer (refuel), consumindo alimentos que potenciem a capacidade intelectual; repensar (rethink) o que faz de nós melhores pessoas a todos os níveis; e reenergizar (reenergize) com exercício que estimule as funções cognitivas.
Vítor Rodrigues, considerando que a sociedade está a deixar de saber hierarquizar valores, o que faz com que se perca a realização individual, outro gap que nos mata enquanto pessoas, diz:
Costumo dizer que o medo é o pior conselheiro. Temos medo do que possa acontecer, medo de não darmos o rendimento ou que pensem mal de nós. E isso impede-nos de fazer diferente.”.
Por isso, como reconhece Ana Pago, choramos, adoecemos, mas nem assim deixamos de escolher o mesmo a cada manhã. Tudo por medo da mudança, dos chefes, da perda de emprego, da precariedade ou da retaliação em nos criarem desconforto. E diz a articulista:
Pressionamo-nos a fazer mais, mais depressa, a achar que nunca chega, mas não podemos viver obcecados nem escravizados pelo trabalho.”.
E, sob o signo da carreira, dificilmente nos sobram horas para termos vida pessoal e familiar. E, por medo, deixamos de fazer com brio o que era razoável. Ora, cabe, em última análise, a cada um recuperar o controlo dos seus dias. Para tanto, a articulista propõe:
- Auto-organização, traçando, a curto prazo, um plano de trabalho consistente, exequível e equilibrado, de forma a ser eficiente sem comprometer a sua vida pessoal.
- Observação da justa medida, pois “nunca é necessário trabalhar mais horas para se atingirem melhores resultados, pelo contrário: reduzir o tempo de trabalho permite uma maior margem de criatividade, que se traduz em concentração redobrada, energia, entusiasmo e qualidade de resultados.
- Bom uso do tempo, decidindo gastá-lo, sem o desperdiçar, de acordo com o valore relativo de cada uma das tarefas.
- Priorizações de acordo com as metas a atingir e sabendo gerir a reposta às várias solicitações.
- Manutenção do foco, fazendo uma coisa de cada vez, começando pelas mais simples e investindo nas mais importantes, ganhando confiança e primando pela eficiência.
- E estabelecimento de rotinas diárias, pois quantas mais se criarem, mais eficaz será o desempenho.
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Por fim, cabe denunciar as alterações maléficas introduzidas em 2015 ao Código do Trabalho, de algumas das quais resulta a determinação de que a baixa médica por doença prolongada suspende o vínculo laboral do trabalhador com o empregador. E vai daí a conclusão (abstenho-me de pormenores) de que o trabalhador que esteve de baixa por doença prolongada pode não ter direito a férias e ao respetivo subsídio se a 1 de janeiro ainda não estava ao serviço, sendo que só terá esse direito após 6 meses de serviço ou de outro modo, terá direito a 2 dias por cada mês de trabalho. É demasiado mau. Mas ainda pior foi aplicar tal doutrina a trabalhadores da administração pública entrados nos quadros antes de 2015, nivelando tudo pelo pior.
Sendo que não foi alterada então a Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que aprova o LGTFP (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), mantém-se em vigor o seu art.º 15.º
Assim, o Dinheiro Vivo, de 29.11.2017, citando o acórdão n.º 0109/17 do STA-1.ª Secção, de 28 de setembro de 2017, refere:
O Supremo Tribunal Administrativo entende que os funcionários públicos admitidos até 2005 não veem as férias reduzidas em caso de baixa prolongada”.
O acórdão produzido pelo STA e que agora (naquele dia 29 de novembro de 2017) foi conhecido, refere que o disposto na legislação que abrange os trabalhadores do chamado regime social convergente (que inclui os funcionários admitidos até 31 de dezembro de 2005 e que ingressaram ainda através do antigo vínculo por nomeação) leva a concluir que as faltas por doença destes trabalhadores “ainda que superiores a 30 dias não determinam quaisquer efeitos sobre as férias”. Precisa o acórdão:
A ausência de especial que se refira aos efeitos das faltas por motivo de doença dos trabalhadores integrados no regime social convergente relativamente a férias (…) impõe, de acordo com os ditames da interpretação jurídica, a conclusão de que as faltas por doença daqueles trabalhadores ainda que superiores a 30 dias não determinam quaisquer efeitos sobre as férias”.
Este entendimento não se aplica nem aos trabalhadores do setor privado, nem aos funcionários públicos com vínculo mais recente. Para estes, quando a baixa se prolonga para além de 30 dias, o contrato de trabalho é suspenso.
O trabalho é um direito, um valor e não uma tortura. É preciso atender ao bem da saúde, Não?!
2019.04.10 – Louro de Carvalho

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